À espera da curva

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A precariedade implica o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro.

Judith Butler, Quadros de guerra

 

 

Hoje, 25 de abril, completam-se quarenta dias de confinamento. As saídas ficaram restritas à compra de itens básicos e alimentos. Ontem, no grupo de whatsapp, recebi o informe da síndica com a confirmação do primeiro caso de covid-19 no condomínio, sem a identificação do morador contaminado. Como de costume, a luminosidade do céu neste sábado ensolarado na zona oeste do Rio é uma moldura indiferente a qualquer sensação de angústia. Da varanda, vejo o pátio do estacionamento lotado como nos feriados. A cena se repete todos os dias. Nas áreas comuns, circulam as funcionárias da limpeza, contratadas de empresa terceirizada. Além do uniforme, agora usam máscaras e luvas como arsenal obrigatório de proteção. As tarefas de remover o lixo, varrer, lavar e higienizar o espaço estão distribuídas entre o grupo. Observo aqui de cima o entra e sai compassado nos corredores do prédio. Cruzei com algumas delas nas duas vezes em que saí de casa e, em rápidas trocas de olhares, me intrigou o modo como aparentavam normalidade. Seriam adeptas da horda de negacionistas defensores do lema do desgoverno suicida do “Brasil não pode parar”?

Sabe-se que há uma dinâmica de distribuição desigual dos riscos da contaminação, mas quão ameaçador pode ser o novo coronavírus para essas vidas humanas que a argentina Maria Lugones classifica como “impossíveis”,[1] mulheres negras que enfrentam cotidianamente os efeitos da precarização nas linhas de frente do trabalho terceirizado? Para boa parte delas, também não se deve somar uma potencial exposição à violência doméstica como fator de agravamento dessa precarização?[2]

A constatação mais incômoda que nos impõe uma pandemia é a da vulnerabilidade individual e coletiva. Como toda origem pode ser reveladora, fui conferir no dicionário a etimologia latina da palavra “vulnerável”: vem de vulnerabilis que significa “o que pode ser ferido ou atacado”. É sempre mais fácil pensar na ideia de ferida como algo tangível que acomete os corpos físicos, como a doença, a morte ou a contaminação por um vírus. Mas há formas e dimensões simbólicas infinitamente mais perversas de se estar exposto. É neste sentido que a filósofa Judith Butler mobiliza a ideia de vulnerabilidade, cruzando-a com noção de precariedade, para definir uma condição humana universal que, para além das categorias identitárias e mapas multiculturais, manifesta-se sob formas desiguais e variáveis historicamente, segundo a classe, a cor da pele, o gênero e a sexualidade dos sujeitos. E são esses marcadores de condições politicamente induzidas que determinam “quais humanos contam como humanos” e explicam por que há vidas que não são reconhecíveis como valiosas ou passíveis de luto.[3]

Na esfera individual, por mais particulares que sejam as nossas angústias e experiências, elas estarão sempre implicadas em uma dinâmica de distribuição desigual do reconhecimento das vulnerabilidades no mundo social. Frente à crise global provocada pela covid-19, a dicotomia entre salvar vidas ou preservar a economia, repetida à exaustão pelos papagaios da falácia ultraliberal, tornou mais aguda e urgente a necessidade de projetarmos ações coletivas solidárias para enfrentar a precariedade induzida sobre vidas e corpos humanos que estão submetidos à fome, ao subemprego, à privação de direitos básicos e à exposição à violência, à doença e às pandemias. Como efeito das assimetrias nas condições de precariedade, essas populações constituem um contingente de vidas consideradas “destrutíveis”, passíveis de serem sacrificadas, dentro de uma lógica perversa que banaliza as perdas, convertendo-as em gráficos estatísticos.[4]

A apresentadora do telejornal acaba de anunciar o total de 4.016 mil mortes no Brasil.[5] Do lado de fora, os ruídos no corredor em frente à porta de entrada são da funcionária da limpeza no turno da tarde. Não posso ver o rosto, tampouco saber o nome, apenas conjeturar que se trata de alguém sobrevivendo, há muito, a condições precárias de trabalho e de existência. Neste momento, é inútil dizer que compartilhamos a vulnerabilidade das vidas humanas, enquanto nos assombra perceber o abismo letal dos direitos desiguais ao cuidado e proteção frente à curva acelerada da pandemia.

 

 

 


NOTAS

[1] LUGONES, Maria. Colonialidad y gênero. Tabula Rasa, n. 9, p. 73-101, jul.-dic., 2008.

[2] ASSUNÇÃO, Diana. A precarização tem rosto de mulher: a luta das trabalhadoras e trabalhadores

terceirizados da USP. São Paulo: Iskra, 2013.

[3] BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando uma vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2016.

[4] idem, p. 53.

[5] Dados disponíveis no site Ministério da Saúde do <covid.saude.gov.br> em 24/04/2020

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria da Gloria De Oliveira

Professora associada do Departamento de História/ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

4 comments

  1. Marcelo Teixeira 29 abril, 2020 at 09:51 Responder

    Triste constatação que esses vulneráveis sempre estiveram no nosso convívio e que a pandemia permitiu que fossem “enxergamos”. Porém essa visibilidade não trouxe qualquer vantagem para o grupo, composto por milhões. Infelizmente, apesar de otimista que sou, não acredito que ao término dessa tragédia pela qual estamos passando as pessoas se tornarão mais sensíveis e solidárias.
    Belo o seu texto Glória.
    Um beijo virtual aqui dos isolados no Itamar.

    • Gloria 29 abril, 2020 at 12:35 Responder

      obrigada pelo comentário, Marcelo. Concordo com a sua visão, a pandemia pode acabar, mas a tragédia que ela expõe vai continuar. Saúde para todos as criaturas aí no Itamar!

  2. Dinorah Araújo 1 maio, 2020 at 00:58 Responder

    Bela crônica, Glória Oliveira, um retrato da triste realidade da imensidão de pessoas cujos rostos não vemos e sequer sabemos os nomes, que vivem à mercê dos desígnios das classes dominantes, desde sempre, sendo que agora com a pandemia, a cruel banalização das suas vidas são potencializadas.

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