Meu livro Incidentes é da Guanabara. Capa azul como lembrava. Pequenos signos como hieróglifos, como grafites de caverna em amarelos e vermelhos. Manchas, desenhos que eram para ser figurativos, mas não os decifro, não os leio, não os entendo. Às vezes, penso que o signo é a morte da coisa. As orelhas e contracapa me explicam o livro de Barthes, o diário, o tom patético, de pathos, de homem apaixonado, apaixonante. São sons dissonantes. Esteve no Marrocos, deu aulas, se envolveu afetiva e sexualmente com alunos mais jovens. Morreu prematuro, no auge da fama. Isso importa? Ele não exporta isso. Não compro essa história do livro. Abro o livro para ler na cama. Com ele, dormir esta noite. Será uma noite apenas com Barthes. Que os leitores se cuidem. Que eu me cuide. Que Barthes, mesmo morto, se cuide. De imediato: esforço para fazer uma apropriação, uma apoderação que é apodreração do imediato, porque o imediato apodrece e não nos dá tempo, nem chances para rapto. Ele não escreve, pratica. Não está na esfera do discurso, mas na esfera do fazer. Isso em retórica é poiesis. É techné. Técnica. Ele faz o “romanesco” do Marrocos, não a transposição do Marrocos. O lugar é uma referência, mas não uma referencialidade. Poderia ser um romance, mas não chega a ser, por isso partes, pedaços, fragmentos, que vem do romanesco; porque esse, por “essência”, é fragmentário. Pode ser epigramático, porque picante, agudo, breve.
Incidentes porque incidem, são incidentais, como música que entra ao acaso, quase sem se perceber, porque acidental, não proposital, não programado, embora pensado; Incidentes pelo efeito que disso propõe. Pela incompletude, pelo rascunho, pelo transitório, fugaz, arbitrário, efêmero, anotado para ser aproveitado. Incidentes parece ser um diário idioletal. Vem do locutor de um idioleto. É fruto de algo vivido durante um prolongamento de tempo, mas por ser efêmero é fruto com duração de um dia. No meu caso, na minha leitura, fruto de uma noite. Desta noite.
“A luz do Sudoeste”: hoje, ontem, ele data, ele datou. Começo a pensar em mim enquanto o leio. Se fizesse um diário teria que datá-lo? Descreveria dia esplêndido? Comporia uma narrativa esplêndida, não descritiva. Investigação do que é e não é poético. Língua que resvala, chega próximo, chega perto. Fora do lugar, pensa o lugar. França/Marrocos. Volto a pensar em mim sempre fora de lugar, penso os lugares? Fora de mim, penso em mim. Queremos dizer sem língua. Sempre pensei o som, o som da palavra, de palavra; palavra. Escrevi diários que não eram diários, eram guiões, eram roteirões; coisas do gênero das memórias. Faço extratos, extravio, abstraio: “entro nessas regiões da realidade à minha maneira, isto é, com meu corpo; e meu corpo é minha infância, tal como a história fez. Essa história me deu uma juventude provinciana, meridional, burguesa”. Este eu é Barthes, não eu.
Trago para perto, me aproximo: “assim na idade que a memória se forma, aprendi das ‘grandes realidades’ apenas a sensação que me proporcionavam cheiros, fadigas, sons de vozes, corridas, luzes, tudo o que, do real, é de algum modo irresponsável e não tem outro sentido que não o de formar mais tarde a lembrança do tempo perdido”. Faço abstrações: “pois ‘ler’ uma terra é antes de tudo percebê-la segundo o corpo e a memória, segundo a memória do corpo. Creio que é esse vestíbulo do saber e da análise que está votado o escritor: mais consciente que competente, consciente dos próprios interstícios da competência. Por isso a infância é a via real pela qual conhecemos melhor uma terra. No fundo, só existe a Terra da infância”. Para ler, hoje, volto às marcas feitas a lápis. Minha terra não tem palmeiras. Tem paralelepípedos. Eu era palmípede. Engatinhava em chão de pedras, em chão de meninos. Minha terra é uma vila com casinhas geminadas. Cadeiras nas calçadas. Este eu sou eu, não Barthes.
“Incidentes”: o livro dentro do livro. Há incidentes que nomeiam a reunião de pequenos textos, partículas, partezinhas, e há incidentes capítulo composto de partículas. Mais do que fragmentos prefiro pensar na noção de partícula. Algo assim como cutícula em dedos, como metonímias na boca, metonímias de línguas. Estou com Barthes nas mãos. Ele gira entre anéis. Ele anela. Colho, pego, recolho: “um garoto … tem … o gesto que mostra o tipo”. A linguagem do corpo descreve caráter. A gestualidade é parte na partícula. Faz entender o todo. Generalização que se instaura por um tipo de leitura periférica. Meus olhos leem pelos cantos, pelos lados, pelos ângulos. Barthes flagrava a delicadeza. “Um jovem bem moreno, camisa creme-de-menta, calça verde-amêndoa, meias laranja e sapatos vermelhos, visivelmente muito macios”. Barthes veste o jovem para despi-lo. Deixa explícito o vestuário, implícito ao desnudamento. Com a língua, absorve creme de menta, verde amêndoa, laranjas. Com a exceção dos sapatos que tem cor, o restante tem sabor. As peças do vestuário se aproximam no paralelismo da maciez dos sapatos. Ele pisa em areia movediça. Afundo na cama. Quase durmo, quase sonho. Ando na maciez. Agarro a leitura com olhos.
O livro me escapa. Barthes escapou antes. Recolho, agora de vez, porque colho outra vez: “Um certo Ahmed, nas proximidades da estação, usa um pulôver azul-celeste com uma bela nódoa laranja na frente”. Quem usa pulôver hoje em dia? Que língua é essa que fala isso? Língua da tradução, língua da cronologia, da datação. Deve ser a bela infiel. Novamente Barthes compõe imagens com cores e sabores, porque a roupa é azul de céu com mancha fruta. Uma laranja não pode atingir o céu; mas, na subversão, a boca de Barthes, em desejo, toca às alturas. Colho, pego, recolho; tudo ainda no âmbito do “Incidentes” capítulo do livro homônimo: “repouso que só poderia ser captado por um pintor”. Barthes se refere ao repouso de mãos de certa pessoa, homem inativo, plácido, descrito em sua frente. Invejo o repouso do pintor, porque poesia silenciosa, muda. Repousar como em mão de pintor é repousar tão profunda e poeticamente que recuperaria meu cansaço d’alma de séculos. Agora não aspo porque não transcrevo, não copio, mas olho para o texto a dizer de jovem nascido na Argélia que fala francês, um pied-noir. Penso não ser a mesma coisa de um brasileiro, como eu, a falar português, nem um português nascido no Brasil. A relação colonial é diferente, as apropriações da língua também. Não sei o que argelinos fizeram com o francês, nem sei, no geral, o que brasileiros fizeram com o português. Tenho uma vaga noção, uma ideia. Saber, mesmo, sei o que faço com o português. Sei bem o que fazer com o vernáculo, com minha língua mãe. Matá-la em sonho freudiano, como ao pai. Almoçar com eles aos sábados e ser feliz. Meu português é brasileiro. Sei que em Portugal, para serem preconceituosos e xenófobos, dizem que brasileiros falam pretoguês. Esbarrei num “fazer amor” irrelevante, impertinente. Desconfio da tradução, mas mesmo assim amor não é algo a se fazer, feito, manufaturável. Amor é antropológico, construção. Não discuto amor. A passagem era sexual. No Marrocos, duvido que Barthes fez amor. Ele fez sexo. O anedótico no diário do Marrocos me fez pensar em Guimarães Rosa, por exemplo, no episódio da carona que Barthes dá, ouvindo que não se pode dar carona no Marrocos. Fiz a hipótese de ler Barthes em paralelo com Rosa dos prefácios de Tutaméia, anedotário, gênero não-gênero, coisa mais “Hipotrélico”. Seria um acúmulo de leituras, o cúmulo, talvez. Traria Luciano de Samósata de volta, porque em Rosa ele já esteve, está. Ao ler Barthes com Rosa, nesse caso, seria ler Barthes com Luciano. A cadeia seria Rosa-Luciano-Barthes-Rosa-Luciano. Isso seria um círculo de leitores, de leituras. Estou a falar de anedotário, convém lembrar. Depois, Luciano, provável lido por Rosa, era sofista, compunha discursos. Compôs muitos prefácios não prefácios, principalmente para textos de gêneros mistos, cínicos.
Não tenho paginado as referências do livro lido, livro com o qual lido, o que tenho lido. Nem citações, nem glosas, nem alusões. Isso que escrevo é uma leitura na cama, uma alucinação, um sonho. Por sua vez, penso que um leitor muito esperto de Barthes saberá do que estou dizendo. Mais uma partícula desta parte “Incidentes”, da homonímia: “Uma menina me pede esmola: ‘meu pai morreu. É para comprar um caderno etc.’ (O lamentável da mendicância e o ranço dos estereótipos)”. Aqui, é uma questão de síntese da miséria. Barthes não diz, mas eu digo: o estereótipo é uma mendicância de linguagem.
“No Palace está Noite”: o capítulo começa indicando confissão. O verbo do tópico frasal complexo é confessar. Estamos numa escrita confessional? Bem provável. Certamente não estamos num confessionário. Estamos numa escrita de “eu”. Duas coisas me despertam aqui: museus e lugar em que ele viu Beckett pela primeira vez. Quando Barthes diz que as belezas fazem sentido acompanhadas de pessoas, de gente, tendo a concordar; em teoria concordo. Não vou discorrer sobre o incômodo que sinto quando acompanhado. Isso vai parecer misantropia. Estou na cama. Desperto porque museus, para mim, abrigam mais do que espólios, fundos, acervos. Seriam diários tridimensionais? Certa vez, vi exposição de aluno de pintura. Ele fazia diário. Os desenhos de anotação, as notações são ou podem ser matéria para diaristas. O lugar do primeiro em Barthes me evoca um cinema pulgueiro em Santana. Ele virou shopping. Mesmo processo que Barthes narra-descreve ao falar dos teatros que viraram estacionamentos. Ruínas do tempo.
“Noites de Paris”. Última parte da leitura do livro. Livro de leitura. Em breve, estarei num regozijo. A tendência agora é ser menos citador. Penso em síntese do pensamento. Penso isso e sou fisgado pela ação de pensar de Barthes. A epígrafe de “Noites de Paris” é de Schopenhauer antes de morrer: ‘pois bem até que nós saímos bem’. Indicativo de que o predomínio é o do pensamento. Não posso encontrar unidade em textos partículas, epigramas, brevidades, mas faço a hipótese de que a partir daqui até o fim vamos pensar. Em 24 de agosto de 1979, Barthes pensou muito. Destaco duas vezes na mesma página. Sem mencionar que ele diz divagar, o que num certo sentido é prolongamento de pensamento, modo de pensar. Até o dia 28 de agosto do ano supracitado, a escrita vai ser sequencial, datável, diária. Há uma interrupção. Chega-se no dia 31. Nova interrupção. Chega-se no dia 2 de setembro até dia 12. Lacuna. Barthes esparsa dias 14 e 17. Meus olhos piscam. Preciso acordar. Os motivos para sequências e lacunas ainda não sei, nem sei se saberei. Confesso, não é a partícula estar em Paris que mais tem me agradado. Não falo de um critério de gosto propriamente, mas de subjetividade que balança. De afinidade ou identidade de discurso.
Começa a ficar evidente que me afino com “A luz do Sudoeste”, mas confessar é usar o verbo inicial da partícula em questão, é com essa partícula me afinar. Mas, em Paris … “ninguém para olhar”. Penso ser péssimo isso para um narrador dos grandes como Barthes, mais do que para um tarado da observação, para um clínico da observação, ou mero expectador. A pequena alegria do dia 25 de agosto de 1979, sentida pela emoção da dedicatória me deu muita vertigem para continuar a ler. Meu corpo está aqui. Há sequências e lacunas diárias ainda. “Noites de Paris” me parece parte mais narrativa. É breve, mas breve estendida. Poderíamos pensar em categorias ou espécies fragmentárias, partes, partículas, partezinhas. Os primeiros textos, os iniciais do Incidentes, são mais imagéticos, mais sintéticos; os últimos, os terminais são mais amplificados, escorridos. Ontem, sugeri a um casal que tinha que ir à uma festa, mas não queria, que os dois entrassem de costas, como se estivessem a sair. Que, ao invés de chegar e dizer: olá, como vai? Falassem: até logo, a festa estava ótima! Essa é a arbitrariedade da leitura a ler primeiros e últimos, inícios e fins. Em verdade, o efeito é o que conta. Barthes investiga/identifica tipo de discurso, discurso típico. Nomeia-o michê. Preciso dizer que fiz novas marcas a lápis no meu Incidentes, da editora Guanabara, não da Martins Fontes. Marquei novamente o livro: profanação do corpo. “Leitura na cama dos textos de Khomeini: aturdido! É tão ‘escandaloso’ que não ouso indignar-me: deve haver uma explicação racional para esse delírio anacrônico; seria muito simples rir disto. Enfim, o Paradoxo me chama”. Não disse que estava na cama com Barthes? Ele lê na cama. Leio na cama. Uma cama sobre uma cama. Duas camadas de leituras na cama. Cada vez que cochilei foi uma leitura inacabada.
Paro de ler. Não quero mais. Quero pensar, quero pensar que o “eu” em escritas chamadas de escritas do “ eu ” pode ser tópica, lugar apenas. Não necessita de tanta emoção barata (ou cara) romântica. A subjetividade pode ser técnica, não natural, luz naturalizada. Podemos não naturalizar a técnica, nem por isso baixar a qualidade afetiva, patológica, das paixões. Sou levado às datas: “excelente método para enxugar o desejo: o contrato a longo prazo; termina por si”. Meu exemplar do Incidentes está repleto de veneno. Sujo os olhos, sujo os dedos. Veneno em pó de uma medida preventiva que tomei contra traças, ácaros e outros bichos corrosivos, que corroem. Assepsia para não perder o livro, nem o lido. Exagerei na dose do pó. Ao virar a página, inundou-me. Tudo se confirma. Tudo em relação ao que disse antes. O inesperado, o surpreendente foi o veneno. Posso dizer que, antes de dormir, espirro com o veneno em pó do livro. Com Barthes espiro em fim do livro.
Créditos na imagem: Aquarela do escritor Roland Barthes.
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Eduardo Sinkevisque
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