Cães

0

 

Os cães palacianos / brincam / como se não cheirassem / a

cães / nem se cheirassem / como cães que são. / Os cães

palacianos choram / e andam em roda / enquanto a

nobreza joga / se distraí e rompe / o tédio. / Os cães

palacianos / em pelagem preta e branca / e creme /

contrastam com as vestimentas / azuis e rosas / pastéis. /

Mais do que os cães palacianos / os outros aduladores /

abanam os rabos. / Abanam não por que os rabos não os

possam abanar. / Abanam por suas funções / etimológicas.

/ Os cães etimológicos / apenas ladram / não mordem

Joões Cabrais.

1

 

Hoje, ao chegar ao ponto de ônibus onde pego condução para voltar para casa, havia, e eu as avistei de longe, duas cadelas de rua deitadas. Avistei mesmo dois cães. Ou algo esparramado no chão que, de primeiro achei ser uma pessoa, ao me aproximar, naquele meu passo estou carregando um mamute, vi se tratar de dois cães, que aos poucos botei reparo serem duas cadelas[1].

Visão formada, signo arbitrário formado, animais empíricos no ponto, comecei a conversa com elas:

– Vocês vão pegar ônibus também? Para onde vão? Cadê seu dono?

Uma delas era uma baixote, mistura de raças. A outra mais peluda, de patas mais compridas, pelos grossos e cara simpática.

Pensei serem companheiras. Andarem juntas.

Elas abanaram seus rabos, aduladoras que são. Quase pularam em mim. Fizeram menção de pular.

Acho que cães também fazem menções.

Elas me pediram água e comida. Talvez guarida elas me pedissem.

Voltaram a deitar na sombra formada pela cobertura do ponto de ônibus conforme a localização do sol àquela hora.

Fiz a hipótese de terem parado ali para descansar e se refrescar, interrompendo a andança que faziam.

Cães de rua estão, quando não apressados, sempre andando, buscando, inquirindo, perquirindo.

Vontade bem eu tive de trazer as cadelas para casa, mas não trouxe. De uma maneira ou de outra o dia teve seu refresco à sombra das cadelas de rua e nos chocolates que, ainda que quentes, ganhei de uma aluna.

Um dia de cão transformado em refresco de cadelas e em doçura de moça. Agora, a quinta-feira é um afeto fora de lugar, como essa quentura de verão em outubro passado da metade.

 

2

 

Fosse pintor, hoje ao invés de contar do morador de rua e de seu cão, com quem conversei rapidamente, fazia uma representação pictórica.

Não fui talhado para artes plásticas. Esculpi-me escritor. Assim me inventei.

O homem descia uma ladeira com um carrinho de supermercado cheio de seus pertences (sua casa móvel) e o cão o acompanhando passo a passo:

– É seu cão? Perguntei.

– Sim. Respondeu-me.

– Ele come carne todo dia e eu ovo. Confidenciou-me o homem.

Disse:

– Não duvido.

Elogiei a beleza do bicho. O cara me contou que à noite enquanto ele dorme, o cão o protege, não deixa que o roubem, nem que o machuquem.

– Muito bem! Exclamei.

– Você já teve outro cão antes?

– Sim. Esse tem dois anos. Se chama Max. Ele me disse.

Uma encruzilhada em que fez o morador de rua e seu cão virarem à esquerda e eu seguir em frente nos distanciou ao ponto de eu me despedir deles de longe, mas os votos de boa sorte foram mútuos.

Não era um tipo satírico com seu cão Menipo. não era um homem-bicho como cantou em poema Manuel Bandeira. Era um homem e seu companheiro, seu amigo.

Também durmo com meu cão. E ele de mim mesmo me protege. O fato de ele existir, de viver comigo, de dormir comigo me põe inteiro, põe-me em pé, fazendo com que nem afeto mendigue.

Meu cão não come carne. Come ração, frutas e, eventualmente, um osso que distraia seus dentes. De mim me protege. E isso é ouro. E isso é tudo.

 

3

 

Tiago e seu Jack Russel Terrier sobem a rua onde moro em passos largos. Tiago de fones de ouvidos nos ouvidos. O cão dele de língua de fora. Do outro lado da calçada os vejo.

Não sei o nome do menino. Sei que o cão é um Jack Russel Terrier que, pelo formato de corpo e pelagem branca e marrom, tem sido um dos cães que teria, assim que passar o luto por Pqno.

Vou ao supermercado comprar a proteína que assarei no Natal. Ela necessita ficar descongelando na parte baixa da geladeira até dia 24, quando a colocarei no forno.

Passo na quitanda, eu já descongelando, mais do que isso esbaforido derretendo. Quase estou chegando em casa, no portão mesmo do sobrado, vejo Tiago descendo a rua onde moro sem o cão. Diminuo o passo para calhar de encontrar com ele e perguntar do cachorro. Diminuo o passo porque àquela altura já sou um mamute da era glacial pós-degelo.

Na sacola o peru de Natal, que quero comer a la Mário de Andrade. Com duas farofas. Uma gorda, de miúdos. Outra seca, crocante.

Tiago de fones de ouvido nos ouvidos não entende que pergunto do cão. Retira os fones, repito a pergunta:

– E o cão? Eu vi você subir com ele, agora desce sem?

O menino, fosse gente abjeta, paulistanos do meu entorno, gente típica do lugar, poderia dizer que eu não tinha nada com isso. Meu santo é forte. É quase Natal. Sei que ele topou a conversa. Foi aí que ele me disse se chamar Tiago e o cão Apolo.

Disse a ele onde eu morava. Ele me disse onde ele morava. Falamos de cães que tivemos.

Tiago me contou já ter levado Apolo para casa, saído de novo, ido ao supermercado e estar voltando. Ele fez 3 coisas e eu apenas 2 quase no mesmo tempo. Diferenças de idade e de carroceria e de potência.

Ontem foi Lucas, numa saia justa e eu de O Homem Nu. Hoje, Tiago, outro evangelista. Não sei o leitor, mas esse sábado, essa conversa, aquele menino e aquele cachorro, aliado tudo isso à água de coco que bebo ao vento em meu escritório, me botam comovido como o diabo. O peru, coitado, descongelando na parte baixa da geladeira.

 

 

 


Notas

[1] Esta crônica tripartite foi escrita, em uma primeira versão, quando se podia ir às ruas sem restrições sanitárias e quando eu tinha cão de companhia. Hoje, a pandemia continua a matar pessoas e não tenho mais cão. O poema-epígrafe eu escrevi no ano passado quando o ex-Chanceler Ernesto Araújo proferiu asneiras em uma cerimônia de formatura de alunos do Rio Branco, diplomatas, que espero atuem diametralmente opostos ao negacionismo delirante de Araújo.

 

 

 


Créditos na imagem: reprodução.

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

No comments

Veja: