A universidade somente terá verdadeira excelência, e em âmbito nacional, caso as Ciências Humanas e Sociais obtenham nova centralidade no processo de reestruturação universitária.
Aloísio Teixeira [1].
A Universidade Federal do Rio de Janeiro completou um século no último dia 7 de setembro desse ano de 2020, e o processo de interiorização da UFRJ em Macaé comemorou 10 anos de implantação. Estas datas redondas ensejam uma boa oportunidade para refletirmos sobre aspectos locais dominantes no cenário político pedagógico atual. Destaca-se o relativo atraso na abertura de cursos em Ciências Humanas e Sociais, permanecendo sem perspectiva no âmbito da interiorização recente. Apenas um curso de pós-graduação lato sensu em Humanidades funcionou até 2017, sem confirmação de abertura de nova turma.
Nesse breve texto pretendemos apresentar reflexões sobre o refluxo das Humanidades no contexto de avanço do negacionismo científico contemporâneo. Buscamos algumas hipóteses que expliquem aspectos desses retrocessos que culminaram com o fim do projeto interdisciplinar projetado inicialmente para o Campus da UFRJ em Macaé.
Além de recuperar aspectos históricos ligados à memória da instituição, propomos uma reflexão sobre os obstáculos epistemológicos para o avanço de uma nova Ciência interdisciplinar evoluindo para uma perspectiva transdisciplinar necessária para o século XXI (Prigogine, 1984). Trata-se de uma breve contribuição reflexiva para a compreensão de fatores locais, regionais e nacionais que colaboram, ou colaboraram, para a configuração atual de um cenário adverso. Cenário que foi consolidado com a aprovação, no último dia 7 de outubro, do regimento interno da nova unidade administrativa do Campus da UFRJ-Macaé; no qual se consagrou a apologia da multidisciplinaridade e da fragmentação epistemológica[2].
Em texto elaborado por ocasião do Seminário de comemoração dos 100 anos da UFRJ, apresentamos uma comunicação intitulada As Humanidades no Campus UFRJ Macaé: breve estudo de caso.[3] Iniciamos aquele ensaio histórico com a mesma epígrafe que abrimos a presente reflexão, pois, com o passar do tempo, as perdas se somaram. Perdemos Aloísio Teixeira, em falecimento prematuro, e estamos testemunhando o sepultamento final de suas ideias e inspirações universitárias mais fecundas no processo de interiorização vigente [4]. Aloísio Teixeira em sua trajetória acadêmica como economista sempre defendeu a necessidade de fortalecer e promover as Ciências Humanas e Sociais. Todavia, desafortunadamente no Campus Macaé suas palavras e ideias não se concretizaram durante sua gestão, oito anos se passaram, desde sua morte, e a realidade vem contrariando seus melhores prognósticos.
No entanto, a proposta de abertura de um curso em Ciências Humanas no Campus UFRJ Macaé foi propalada desde o início da incipiente implantação do primeiro projeto de interiorização da UFRJ. Recursos para a execução do projeto tiveram aportes do programa REUNI[5], direcionados para os munícipios do Norte Fluminense desde o ano de 2006. Todavia, passados mais de 14 anos de expectativas da comunidade local, diversos fatores concorreram para dificultar a criação de um curso regular em Ciências Humanas e Sociais. Uma análise histórico-institucional mais aprofundada já foi apresentada no texto anterior, citado acima. Porém para entendermos aspectos da realidade local é preciso abrir para uma mirada mais amplificada.
Recentemente foi publicado no The Guardian matéria jornalística, complementada por reflexões de intelectuais, sobre o fechamento de cursos em Humanidades no Reino Unido[6]. Também encontramos outras matérias sobre a orientação ministerial do governo japonês no mesmo sentido, propondo o fechamento de cursos em Ciências Humanas e Sociais, naquele país asiático[7]. Os motivos alegados pelos tecno-burocratas baseiam-se na ideia de que estes cursos teóricos não promovem a razão prática e instrumental, deixando de contribuir para o avanço tecnológico e científico.
Numa vaga de dimensões globais, detectamos que o avanço do negacionismo científico está associado a negação da cientificidade das Humanidades. O cenário mundial é adverso, possuindo alguma conexão de sentido com a realidade local aqui referida. Soma-se ao incremento da razão instrumental, em detrimento da razão crítica, a ascensão do conservadorismo, negacionismo e obscurantismo. Em nosso país, a reforma do Ensino Médio[8] vem confirmar essa tendência de desvalorização das Licenciaturas e dos Estudos Básicos, priorizando a dimensão tecnocrática e pragmática da vida profissional – com foco no treinamento e adestramento dos estudantes para o “mercado” -, priorizando a formação de tecnólogos, e não a formação dita “cidadã”, e tampouco o “espírito crítico”.
É sabido que no âmbito local, até 2014, existiram projetos não exitosos de criação de cursos na área de Ciências Humanas na UFRJ Macaé. Essa realidade começou a mudar a partir da elaboração de um projeto de Pós-Graduação Lato Sensu designado Humanidades na Contemporaneidade[9]. Este projeto obteve êxito institucional na sua aprovação interna e contou com a participação de docentes de outras instituições de ensino superior do município e região. Porém, o curso teve apenas uma turma efetiva. No transcorrer dos anos de 2016 e 2018, foram ministradas as disciplinas em módulos e concluídas as monografias. A partir de 2019 após afastamento do coordenador da primeira turma, assumiram a gestão membros do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade / NUPEM/UFRJ, do polo Barreto. Contudo, ainda não há previsão de abertura de Edital para nova turma.
Nas últimas três décadas a cidade de Macaé cresceu com base em investimentos na indústria de extração do petróleo, gás e derivados. O petróleo ainda é um combustível fóssil de grande demanda no mercado mundial. Contudo, tal complexo industrial passa por um momento crucial: até quando o petróleo, e o gás, permanecerá matriz energética dominante? Não nos cabe aqui arriscar prognósticos. Porém, o que fazer para que a cidade não fique à mercê das flutuações desse mercado? Como garantir um futuro menos dependente dessa monocultura extrativista? No passado, o Norte Fluminense ficou marcado pela produção extensiva da cana-de-açúcar. A cana migrou para São Paulo; hoje maior produtor nacional. Restou pouco da história de riqueza e opulência dos fazendeiros locais. É preciso recuperar a memória histórica de modo crítico para não se repetir os erros do passado.
Ao recuperarmos a epígrafe desse breve texto, nas palavras de Aloísio Teixeira, vemos a necessidade de conservar esse espírito integrador, promovendo a reunificação epistemológica necessária. O projeto do Campus UFRJ-Macaé continua fraturado; sem as Humanidades não teremos uma Universidade plenamente fundada no conceito constitucional: pesquisa, ensino e extensão. É preciso sublinhar que Aloísio Teixeira não só invocava a integração das Humanidades no concerto universitário, mais propugnava uma “nova centralidade no processo de reestruturação universitária”. Não se trata simplesmente de integrá-las, mas colocá-las no centro de um debate ético, político e epistemológico fundamental.
Ao concluir esse texto, retorna a tela a indagação norteadora: o que explica o atraso e a demora na implantação das Humanidades no Campus UFRJ-Macaé? Como entender, consequentemente, o malogro do projeto de interdisciplinaridade nesse Campus? Como compreender as dificuldades de avanço do projeto epistemológico original? Podemos sugerir algumas trilhas: a) Dificuldade de articulação dos docentes da área de Humanas no Campus; b) Refluxo das Humanidades no contexto das decisões burocráticas ministeriais locais e internacionais; c) Predomínio da vertente tecno-científica e unidimensional; d) Hegemonia da razão instrumental em detrimento da razão crítica; e) Arrefecimento da continuidade e incremento do projeto de expansão universitária; f) Crise econômica atual; g) Pandemia da Covid-19.
Ao que parece, todos esses fatores em concorrência colaboram para a perda do entusiasmo pela continuidade do projeto de implantação plena da Universidade em Macaé. Mas, nenhum deles isoladamente esgota ou tem peso maior no processo de estancamento e procrastinação do estabelecimento das Humanidades, e tampouco no bloqueio do avanço do programa interdisciplinar. Esses aspectos em conjunto colaboraram de modo drástico para a paralisação de um projeto fecundo. Tornaram-se obstáculos políticos, administrativos e epistemológicos que terão que ser enfrentados por novas estratégias de ação coletiva e institucional. Entretanto, as novas medidas implementadas indicam que a situação tende a se tornar ainda mais difícil, com os obstáculos se solidificando e cristalizando num paradigma dominante compartimentado.
No decorrer do ano de 2020, a comunidade universitária local passou a debater e promover uma reconfiguração do Regimento interno no Conselho Deliberativo, propondo um novo nome para a nova unidade administrativa do Campus. No início do ano o Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade / NUPEM/UFRJ (polo Barreto), aprovou a manutenção de seu vínculo com o Centro de Ciências da Saúde da sede, na ilha do Fundão, desligando-se do Campus da UFRJ-Macaé; com aprovação no Conselho Superior da instituição (CONSUNI). Consequentemente, os cursos de bacharelado e licenciatura, e as pós-graduações vinculadas ao novo Instituto, deixarão de integrar o Campus UFRJ-Macaé. Concomitantemente, no polo universitário, os cursos de graduação passaram a elaborar um plano institucional para se tornarem Institutos, em número de seis (6), referente a cada graduação específica. Assim, o futuro Centro situado no Campus UFRJ-Macaé, será integrado por seis institutos disciplinares. No dia 25 de setembro de 2020, foi realizada uma consulta para a definição do nome do futuro centro. Entre três opções, o nome mais votado foi: Centro Multidisciplinar UFRJ-Macaé[10]. No dia 7 de outubro do mesmo ano pandêmico de 2020, foi aprovado pelo Conselho Deliberativo o novo Regimento do Campus UFRJ-Macaé, doravante designado com o novo nome[11].
Consideramos que estes fatos indicam que as bases do retrocesso se enraizaram, cristalizando um refluxo político e pedagógico preocupante. No momento em que os recrudescem os ataques negacionistas contra a Ciência, observamos a comunidade acadêmica recuar para o cientificismo ortodoxo positivista. Conceder posição ao paradigma clássico, obstruindo o avanço das Humanidades e estancando o processo de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, não nos parece ser a melhor estratégia de enfrentamento do obscurantismo negacionista. Na verdade, trata-se de capitulação temerária que terá consequências deletérias frente aos novos desafios do século XXI.
REFERÊNCIAS
CORREA, Alexandre Fernandes. As Humanidades no Campus UFRJ Macaé: breve estudo de caso. Portal de conferências: Seminário a UFRJ faz 100 anos. Rio de Janeiro, 2017: https://conferencias.ufrj.br/index.php/sufrj/sufrjcem/paper/view/1092
NEPOMUCENO, Vicente. Planejamento de Novas Estruturas Universitárias. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, 2009.
PRIGOGINE, Ilya. A nova aliança: metamorfose da ciência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.
RIBEIRO, Renato Janine. Humanidades: um novo curso na USP. São Paulo, Edusp, 2001.
NOTAS
[1] Aloísio Teixeira, Reitor da UFRJ (2003-11), por ocasião da expansão universitária e implantação do Campus Macaé, destacou a importância das Ciências Humanas e Sociais na Universidade, em artigo publicado na Revista Princípios, “A Universidade brasileira e os desafios do século XXI”, no qual delineou os caminhos que considerava importante para o debate sobre os rumos da instituição neste século. REVISTA PRINCÍPIOS – EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, pgs. 94-9: https://olhandodocampus.wordpress.com/2013/12/20/64/
[2] Grosso modo, Multidisciplinaridade: cada um no seu quadrado; Interdisciplinaridade: o mesmo propósito; Transdisciplinaridade: conhecimento sem fronteiras disciplinares.
[3] Seminário A UFRJ FAZ 100 ANOS (2018). Eixo 5 – história, memória e desenvolvimento institucional. As Humanidades no Campus UFRJ Macaé: https://conferencias.ufrj.br/index.php/sufrj/sufrjcem/paper/view/1092
[4] Dados biográficos de Aloísio Teixeira: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alo%C3%ADsio_Teixeira
[5] Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni): http://reuni.mec.gov.br/
[6] A propósito, a reflexão de Terry Eagleton publicada no diário britânico The Guardian. The death of universities. Link: https://www.theguardian.com/commentisfree/2010/dec/17/death-universities-malaise-tuition-fees
[7] Governo japonês recomenda que universidades do país fechem cursos de humanas: http://painelacademico.uol.com.br/painel-academico/5119-governo-japones-recomenda-que-universidades-do-pais-fechem-cursos-de-humanas; Governo japonês pede cancelamento de cursos de Humanas em universidades: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/governo-japones-pede-cancelamento-de-cursos-de-humanas-em-universidades-17506865
[8] Medida Provisória nº 748/2016 sancionada em 2017. Tornada lei, o texto teve 567 emendas de congressistas em temas polêmicos como a flexibilização do currículo obrigatório e a suspensão da obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física, etc. Mudanças no Ensino Médio por meio de Medida Provisória e sem consulta à sociedade gerou debates e protestos, causando ocupações em escolas de vários estados em 2016.
[9] Homologado na 14ª. Sessão Ordinária do Conselho Deliberativo do Campus UFRJ Macaé, 10/12/2014. Foi aprovado no Processo N. 001228/2015-1, no Conselho de Ensino para Graduados (CAAC/CPGP). Primeira turma aberta em 2016, com a conclusão das monografias encerradas em 2018.
[10] No tocante à escolha do nome do novo Centro, a votação no Conselho Deliberativo: Opção 1 – Centro UFRJ-Macaé – 4 votos; Opção 2 – Centro Multidisciplinar UFRJ-Macaé – 14 votos; Opção 3 – Centro Multidisciplinar de Macaé – 6 votos.
[11] Aprovado novo Regimento do Campus UFRJ-Macaé pelo Conselho Deliberativo: http://www.macae.ufrj.br/index.php/184-artigos-em-destaque/3125-aprovado-regimento-do-campus-ufrj-macae-pelo-conselho-deliberativo
Créditos na imagem: Nexo Jornal / Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2020/02/07/Por-que-negamos-fatos-que-contrariam-as-nossas-cren%C3%A7as
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Alexandre Fernandes Correa
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