para Veronica Stigger
Quando estive em Sevilha / João Cabral já
tinha ido embora. / Quando estive em Sevilha /
me despedia de um amor de outrora / aurora da
minha vida, / infância, idade / universitária. /
Quando estive em Sevilha era inverno. / As
laranjas de rua eram duras, secas, / amargas,
empedradas. / Quando estive em Sevilha / os
livreiros alfarrabistas, as confeitarias, / os
livros e os confeitos / adoçaram meus sentidos,
olhos, mãos e boca. / Quando estive em
Sevilha chegava de Madrid / de trem Ave. Em
Sevilha não vi o Nordeste brasileiro. / Em
Sevilha eu vi Quixote, eu vi Cervantes. /
Em Sevilha, pela janela do comboio, / vi o
Cerrado, / histórias exemplares. / Moralidades.
I
A torrada Petrópolis da Confeitaria Manon me lembrou a tosta da cidade do Porto. A média escura, a meia de leite. Na Rua D’Ouvidor, hoje, tomei meu pequeno almoço.
O Rio de Janeiro continua lindo, sujo e fedido. É sem dúvida uma cidade portuguesa. Aos olhos de um bárbaro estrangeiro, é mais hospitalar e cordial do que São Paulo, cidade fundada por jesuítas e bandeirantes. Cidade macota. Cidade de violência tão perversa e cruel como a de São Sebastião crivado de balas.
Depois do café da manhã, na Confeitaria Manon, fui para a Biblioteca Nacional. Lá, fiz a recolha de dados para análise de diários. Pela manhã um diário pessoal que já havia lido. À tarde, outro.
O singular entremeado do gênero, do lugar-comum. A menina de 14 anos narra festa junina na escola. A descrição que ela faz é de tudo aquilo que conhecemos.
O bisavô narra festa junina. A descrição dele, com mais detalhes, vocabulário e colorido, é de tudo aquilo que conhecemos.
Ela tem a vida pela frente. Ele pelas costas. Ela promete viver. Ele diz que o bisneto o conhecerá por meio de suas memórias, as quais ele chama de Reminiscências. Diz ao bisneto que ele viveu num mundo que o neto não encontrará.
Eu me sinto no meio. Não apenas porque os leio, os diários, a menina e o bisavô, mas porque parece que não vou conhecer um mundo que virá. Mas, isso é um lugar. Um lugar antigo. Não apenas o da brevidade da vida, da transitoriedade, mas porque contemporâneos sempre somos de algo, de alguma coisa.
No meio da manhã e da tarde, teve o almoço. Saboroso. No vegetariano e com boa conversa. Almocei em companhia de Phellipe Marcel. Eram os pesquisadores de diários e de enciclopédias numa prosa bem corriqueira.
Agora à noite, serão as beterrabas. Elas me esperam para virar salada sem se preocuparem com o mundo em que vivem, nem com o mundo em que não viverão.
Hoje, eu diria: ao vencedor as beterrabas.
A rua D’Ouvidor guarda ainda um charme oitocentista.
II
Hoje, após ter trabalhado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde li dois dos diários de minha pesquisa, Diário de um Estudante, de Joaquim Inojosa e Viajando – coisas de meu diário, de Martim Francisco Ribeiro de Andrada, fui à Praça XV, exatamente ao Paço Imperial, onde a exposição sobre Maria Bethânia está ainda (até setembro) em cartaz[1].
Tinha o desejo de ir à Rua sete de Setembro onde há uma sorveteria italiana, recomendada por Tatiana Ribeiro. Não fui. Fui ver Bethânia, nhen nhen nhen, que me chamou por eu estar nas imediações.
Bem que achei que veria mais coisas, mas do que vi gostei. Ela está representadíssima no primeiro pavilhão do Museu. Há uma atmosfera que tem a ver com Dona Maria Bethânia. Há algumas instalações, mas a que me apeteceu mais foi uma com papéis pendurados onde é possível ler receitas de comidas brasileiras.
Senti-me, lá, atraído, como se atraído por seu canto eu fora. De lá fui, ao invés de ir à sorveteria, à confeitaria Cavé, cuja doçaria conventual portuguesa praticamente me fez ganhar muitas calorias.
Na Cavé, comecei por comer uma coxinha com requeijão. Passei, em seguida, ao doce. Escolhi primeiro um doce chamado Ferradura, de massa leve de pão doce com recheio de creme de ovos.
Quando meu expresso duplo chegou, a dúvida para escolher o segundo doce imperava. Meu paladar e meus olhos balançavam por um singelo pastel de natas, ou por um pastel de amêndoas ou por Mil Folhas, ou por um doce de nome Jesuíta.
Claro que escolhi o Jesuíta. Tinha que comer um Jesuíta. Ainda disse para a atendente: Jesuítas são ótimos. Muito comestíveis. Índios do Brasil dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX que o digam.
A balconista ficou sem graça. Talvez não tenha me entendido. Mas, a moça que acabara de devorar um doce com recheio de ovos sabia o que eu dizia. Ela se riu.
Terminei meu café me lembrando de que, no diário de Ribeiro de Andrada, ele registra muitas páginas sobre Iguape, mesmo viajando pela Europa durante a Primeira Guerra.
Martim Francisco Ribeiro de Andrada, terceiro deste nome, critica a monstruosidade da guerra comparando-a com as barbaridades e descasos do governo de São Paulo nos anos 10 do século XX. Por meio de seu diário, estive em Iguape hoje, mas sem ela, que foi comigo lá há semanas.
Melancolia adoçada, eu paguei a conta e saí.
Lá fora, por onde andei, o Rio de Janeiro me pareceu menos agressivo. Eu estava apaziguado, mas com alguns quilos a mais no corpo, não apenas na mochila. Tinha também os olhos cheios de esperança, de uma cor que mais ninguém possui.
III
Hoje foi dia de Bolo Rei. Na Confeitaria Manon, eu peço um bolo rei pequeno para viagem. Uma das atendentes me diz não ter:
– Apenas rosca, senhor.
Outro atendente diz ter:
– Mas lá dentro, senhor.
Eu pergunto o preço, se está fresco.
– Sim, está.
– Vou levar.
Levo.
O atendente, enquanto embala a iguaria festiva do dia de colocar os três Reis Magos no presépio e logo depois desmontar o presépio, o bolo da efeméride, da epifania, me diz que há uma surpresa dentro do bolo. Quem a encontrar terá sorte o ano todo.
Digo que eu que vou achar porque comerei sozinho. Ele faz cara de espanto:
– Não vai repartir? Não vai compartilhar?
Eu rio, afirmando que sim. Mas, digo meio malandramente, malandreco, como se diz em Portugal:
– Eu que vou achar a surpresa.
Indago:
– Qual é a surpresa?
Ele responde:
– Sur-pre-sa.
Saio da confeitaria levando todo meu cansaço do dia, minhas retinas cheias de imagens e a câmera de meu celular com umas 50 fotografias na memória. Pego o metrô na Carioca, chego ao Largo do Machado e subo Santa Teresa de 507 Silvestre-Prazeres, vendo de um lado uma luz amarelada intensa no céu; do outro lado, cinza.
A moça linda sentada ao meu lado ouve música no celular. Eu tento um contato em vão para chamar sua atenção para aquela luminosidade dividida. Mais ou menos dá certo.
O 507 sobe lento fazendo curvas incertas como desceu pela manhã. Estranhei a velocidade. Cedo havia alguma operação policial no trajeto. Cheguei a me imaginar tendo que me abaixar para driblar uma bala perdida. Será que era novamente alguma blitz? Ou era cansaço sobre borracha? Eu mesmo?
Pela manhã, preguiça. No fim da tarde, cansaço. Chego à casa de Tatiana e de Henrique, mas antes passando pela casa de Bia e de Marcelo. Entro na casa deles. Não os vira, praticamente, desde que cheguei ao Rio dia 29 do mês passado. Durante a conversa revelo ter na mochila um Bolo Rei, pequeno, comprado na Manon. Vamos fazer a feste de Reis?
Eles aceitam. Proponho ao Marcelo colocar Tim Maia de trilha sonora da festa. Faço a paródia hoje é dia de Bolo Rei. Comemos com café. Bia não. Ela come abacaxi.
Era nítida em nossos olhares a expectativa de quem encontraria a surpresa assada junto com a iguaria. Talvez tanto eu quanto Marcelo do bolo comíamos já em excesso. Queríamos mesmos era achar a surpresa.
Quando Marcelo pareceu satisfeito, já sem vontade de comer, eu olhei para uma das laterais do bolo, para o figo cristalizado em cima e pensei:
– Ali, é ali.
Sugeri à Bia que pegasse ao menos o figo, que era fruta e estava gostoso. Ela não quis mesmo. Eu cortei a última fatia que comi.
Bingo!
Nela, estava a tal surpresa, a epifania.
Era uma medalha representando o Menino Jesus de Praga. Mas, a figura quem nos revelou foi Henrique, que segundo Bia sabe tudo.
O bolo da festa do menino veio da Confeitaria Manon, do menino que mora em mim. Foi dado ao menino e a seus amigos. Quem ganhou a sorte para o ano foi o menino que mora em mim. Mesmo isso tendo sido em janeiro de 2020, aquele dia foi dia de Bolo Rei. Dia de menino presentear menino, dia de todo menino é um rei.
NOTAS
[1] Este texto, assim como o texto acima, foi escrito em uma primeira versão em 2015. Era um tempo em que se podia andar pelas ruas das cidades e se podia tomar refeições em confeitarias, restaurantes etc., porque não havia peste.
Créditos na imagem: Vista da entrada da Confeitaria Manon, na Rua do Ouvidor. Reprodução. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Confeitaria_Manon
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “156”][/authorbox]
Eduardo Sinkevisque
Related posts
Notícias
História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
Qualis Periódiocos:
A1 História / A2 Filosofia
Acesse a edição atual da revista