No âmbito da comunicação, é possível encontrarmos discursos favoráveis para a construção da narrativa histórica e social, seja por meio de imagens, áudios, filmes, etc… Exemplos como as séries Game of Thrones (2011) e The Crown (2016) tendem a dimensionar uma realidade histórica por meio de ficções que aproximam o espectador ao conteúdo histórico. Contudo, em alguns casos, estes discursos podem cair no problema da história unívoca e reproduzirem narrativas a partir de um único viés. No caso de alguns jornais impressos é comum a utilização de recursos humorísticos, a fim de promover a interação com a narrativa social de algum evento ou fato, como por exemplo os cartuns, as caricaturas e as charges.

A charge, palavra que vem do francês charger (carregar, exagerar), consiste em representações humorísticas que tendem a caricaturar um fato, uma personagem ou evento social. A tradição chargista está bem presente na França. Ela pode ser datada do Período Revolucionário de 1789 e Pós-Revolucionário. Segundo o historiador George Minois (2003), a função da charge é a dessacralização, o rebaixamento dos antigos valores, mestres e ídolos. Os principais recursos que ela utiliza são a ironia e a ridicularização. Dessa forma, as charges se propõe a construir um discurso exagerado, que superdimensiona ou distorce um determinado tema, a partir dos interesses e das intenções de quem as elabora. O humor, a ironia e a ridicularização são recursos utilizados na linguagem midiática afim de construir sentidos nesses meios, como, por exemplo, em charges de cunho político ou caricaturas de personagens famosas, tal como aquelas veiculadas pelo jornal Charlie Hebdo.

A presença do humor nos meios midiáticos, principalmente nas charges, é apresentada por meio da sátira, “uma das expressões do cômico que esteve presente desde a antiguidade” (TAVEIRA, 2013, p. 47). Por meio deste recurso, tende-se a criar a sensação do riso satírico no leitor, a fim de denunciar ou expor algum fato ou evento.  Assim, o riso, instrumentalizando a hipérbole, presente no jornalismo impresso, satiriza e ironiza a realidade a que o chargista pretende se referir. Neste caso, um jornal que se utiliza de ilustrações a fim de promover o humor satírico é o jornal parisiense Charlie Hebdo, que tem ampla circulação no território francês. Por meio do humor gráfico, isto é, linguagem verbal ou não verbal que questionam, recusam ou exageram as realidades do mundo, transformando em outras representações. O jornal Charlie Hebdo utiliza, em suas charges, temáticas religiosas, culturais, políticas e econômicas para promover este riso satírico nos leitores.

O Charlie Hebdo é um periódico semanal que aborda conteúdos internos da sociedade francesa, mas abre espaço, também, para a crítica de assuntos exteriores. Tem como fonte fundamental as matérias críticas às religiões das mais diversas matrizes, seja o Cristianismo, seja o Islamismo ou Judaísmo. Possui uma linguagem áspera e forte. O periódico iniciou suas atividades em 1970 e mantém seu funcionamento até a atualidade. Em 07 de Janeiro de 2015, foi alvo de extremistas islâmicos e 12 de seus cartunistas – entre eles, o diretor Charb (Stéphane Charbonnier) – foram mortos. Tal ato, assumido pelo Estado Islâmico, em 2015, tinha por objetivo romper com a circulação de imagens pejorativas da religião islâmica.  As charges, de cunho xenofóbico, como por exemplo, a representação do profeta Maomé sendo decapitado por um membro do Estado Islâmico ou então a representação do Corão sendo fuzilado por balas, nos anos de 2013 e 2014, tendem a construir uma imagem distorcida e equivocada, exclusivamente violenta, do mundo muçulmano por meio da utilização de recursos humorísticos impressos. Nesta concepção, as charges tendem a construir e perpetuar uma imagem estereotipada do Islã. Esta seria baseada em políticas imperialistas, que estão na base de um discurso eurocêntrico, tal como aponta Edward Said (2007).

Em outras palavras, a circulação dessas charges teria contribuído para a manutenção do ódio ao Islã e o avanço da violência contra as culturas e a religião muçulmanas. Na França, a islamofobia se explícita, no século XXI, como condutas violentas e radicais contra uma crescente população francesa, principalmente por uma razão religiosa e étnica. Em 2016, o jornal El País,[1] publicou uma reportagem onde os atos de islamofobia triplicaram neste mesmo ano, principalmente contra os ataques jihadistas[2] em Paris em janeiro e novembro. Além disso, segundo a mesma reportagem, em 2013, foram registrados 133 ataques islamofóbicos, enquanto no ano de 2015 foram notificadas mais de 400 agressões (físicas e psicológicas). Assim, as charges do período de 2013 a 2015 de Charlie Hebdo teriam contribuído para o fomento de um cenário xenofóbico, ao publicar diversos periódicos, onde encontravam-se imagens escarnecedoras do Islã. Por sua vez, uma onda de violência se seguiu, explicitando as dificuldades e os preconceitos no que tange à população muçulmana francesa. Esse panorama encontraria seu ápice nos ataques realizados contra os cartunistas, como uma resposta ao acirramento de um ambiente xenofóbico e desigual. Assim, os muçulmanos sustentam o fardo de serem estereotipados como terroristas, mulheres com véus e possuírem uma religião pautada na violência e no radicalismo.

Em 2014, durante a presidência de François Hollande, segundo O Estado de São Paulo,[3] foi validado no senado francês a proibição do uso do véu islâmico (hidjab) em locais da França sob a justificativa de que o uso do véu fere os princípios republicanos do país e de sua ordem social. Tal medida não apenas reprime uma prática religiosa, mas aplica uma coerção e supressão da liberdade de expressão, principalmente voltada às mulheres muçulmanas. Com o sucessor de Hollande, Emmanuel Macron, podemos identificar o recrudescimento da xenofobia na França, pois o partido Frente Nacional que, historicamente, defende um discurso de aversão aos estrangeiros e imigrantes, ganhou um espaço crescente nos últimos anos.

Neste âmbito xenofóbico, as comunidades muçulmanas sofrem com as políticas coercitivas impostas pelo governo, além de serem alvo de divulgações desrespeitosas e preconceituosas das charges do jornal Charlie Hebdo. No campo da comunicação, o jornal promoveu o avanço das condutas islomofóbicas na Europa, servindo assim, como um porta voz da intolerância, atacando e perseguindo uma população muçulmana que compõem 10% dos cidadãos franceses (El Pais), mas que ainda se mantém à margem da sociedade francesa. As charges, nesse caso, não devem ser interpretadas apenas como uma sátira de cunho humorístico, mas sim de representações agressivas e violentas a pessoas historicamente oprimidas dentre do espaço francês. A ridicularização do Islã tem servido a uma escalada da violência e à promoção de discursos extremistas contra a comunidade muçulmana, cujos frutos são mais atos de violência e ódio. Portanto, suas imagens excedem o limite da liberdade de expressão, pois ampliam a aversão contra um determinado grupo: os muçulmanos franceses.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CHARLIE HEBDO. França. Disponível em: <https://charliehebdo.fr/>. Acesso em: 08 dez. 2020.

OLIVEIRA, Paola Lins de. O caso das charges de Maomé e o debate público europeu sobre as relações entre “islamismo” e “ocidente”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, p. 261-267, 2009.

SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SANTOS, Priscila Silva dos. O Estudo da Islamofobia através dos meios de comunicação. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 79-90,10 de nov.2016. Semestral. Disponível em: www.habitus.ifcs.ufrj.br&gt: Acesso em: 09 de nov. 2020.

TAVEIRA, Caroline Gonçalves. Humor e crítica no Seminário Bundas. Extraprensa, São Paulo, v. VII, n. 13, dezembro 2013.

 

 

 


NOTAS

[1] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/internacional/1451510403_463522.html>. Acesso em: 14/12/2020

[2] Entende-se por jihadistas líderes religiosos que defendem e utilizam da violência para justificar, afirmar e propagar um islamismo pautado na violência, interligado a política.

[3] Disponível em: <http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,senado-da-franca-proibe-o-uso-

de-veus-islamicos-em-publico,609814-> Acesso em: 08/12/2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Manifestantes contra a islamofobia marcham em Paris – AFP. Reprodução. Disponível em: https://istoe.com.br/milhares-de-pessoas-marcham-na-franca-contra-a-islamofobia/

 

 

 


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