As mulheres são objeto de profundo escrutínio do pensamento de Machado de Assis ao longo de toda sua obra. Outro traço marcante é que debaixo das “boas maneiras” sociais burguesas do Segundo Império brasileiro, seus narradores empreendem o esforço de “desmascarar, investigar, experimentar, descobrir o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das mais esquisitas componentes da personalidade” (CANDIDO, 1968, p. 3), o que cria um complexo de ambiguidades subjetivas e sociais. Uma terceira característica notável é a reinterpretação dos gestos presentes nas conversas, posturas corporais e olhares, de modo a incitar o engendramento de um duplo mundo, que não é menos real – pois que está sempre posta a possibilidade de ele destruir a vida dos envolvidos nas diversas situações. Ora, “O real pode ser o que parece real” (CANDIDO, 1968, p. 8).

Diante disso, interessa-nos saber: que lugar as mulheres ocupam na realidade oculta dos gestos bisbilhotados de Machado em seus escritos iniciais? Quem são elas? Como elas agem em meio a esse cenário? Para fazer um esboço dessa análise, concentraremos nossos esforços em dois textos da década de 1860, a saber, Queda que as mulheres têm pelos tolos e Confissões de uma viúva moça. No primeiro, parte-se do princípio, supostamente cientificamente investigado e imparcial, de que a qualidade que faz as mulheres escolherem seu objeto de amor é a toleima, própria dos “homens tolos”, diferentemente dos “homens de espírito”. No segundo, que é um conto, uma mulher tornada viúva recentemente confessa a uma amiga sobre o início de um romance com outro rapaz logo antes da morte de seu marido, o que acabaria por desprestigiá-la e fazê-la perder todo o seu brio. Nossa hipótese é a de que há uma mudança nos tons dos textos do ponto de vista de Machado de Assis: a mulher, na passagem do primeiro para o segundo escrito, passa a ser sujeito de responsabilidade, ainda que muito restrita, em vista do patriarcado.

De antemão, cabe salientar que as mulheres na obra do escritor não existem em si e por si mesmas. Elas “nascem e se desenvolvem a partir de um sujeito que as concebe e alimenta, na teia de seu discurso. […] São resultado de um processo discursivo e estão impregnadas dos valores que organizam o ponto de vista de seu criador” (RIBEIRO, 1997, p. 2). São escassas as mulheres efetivamente pobres em suas obras. Via de regra, as mulheres dos estratos sociais medianos e mais abastados adquiriam a educação das primeiras letras, um pouco de francês para a conversação elegante e, sobretudo, sabiam noções de bordado e traços de agulha. Além disso, elas não trabalhavam fora de casa naquele tempo – salientamos o “fora de casa”, uma vez que os trabalhos doméstico e reprodutivo são sim um trabalho (FEDERICI, 2019), porém não remunerado. Pois,

 

as mulheres tiveram que se converter no ideal asséptico do binômio mãe/esposa da vida doméstica e familiar que emergiu no século XIX – única possibilidade dentro da lógica patriarcal – garantindo assim o sucesso da sociedade burguesa e da consolidação do capitalismo. (MONTEIRO, 2002, p. 71).

 

A toleima dos homens determina as mulheres

 

No ensaio intitulado Queda que as mulheres têm para os tolos, publicado em 1861, Machado visa esmiuçar a tese de que é uma tendência que as mulheres se apaixonem pelos tolos em detrimento dos homens de espírito. Os homens tolos são aqueles que, sem escrúpulos, porém revestidos de “sangue frio e segurança” (MACHADO DE ASSIS, 1861, p. 3), importunam as mulheres, vigiam-nas e espiam-nas.

Com robusta confiança em seus predicados, mostram a certeza de serem amados, mesmo antes de terem provas. Tampouco sofrem demais diante das quebras de expectativas românticas, porque vivem de modo a substituir uma relação por outra.

Diferentemente, os homens de espírito são homens sábios, com aptidão para o conhecimento e a filosofia, tais como Platão, Alcibíades, Turenne, La Rochefoucauld, Molière. Contudo, em suas relações com as mulheres, eles vacilam, por serem tímidos e temerosos demais quanto ao modo de se portar na frente delas. Eles não conseguem gozar de uma felicidade completa, porque

 

Num olhar, numa palavra, num gesto, acha ele mil nuanças imperceptíveis, desde que se trata de interpretá-las contra si. Esquece os encômios que levemente o tocam, para lembrar-se somente de uma observação feita ao menor dos seus defeitos e que bastante o tortura. […] Como a sua sensibilidade especial sabe descobrir o encanto das criancices frívolas, dos invisíveis atrativos, dos nadas adoráveis! (MACHADO DE ASSIS, 1861, p. 4, grifos nossos).

 

Sendo assim, para o infortúnio do escritor ele mesmo, “os tolos triunfam, e os homens de espírito falham, resultado importante e deplorável” (MACHADO DE ASSIS, 1861, p. 7).

E as mulheres? Bem, se o objeto de escolha incide sobre e determina o sujeito que escolhe, é correto afirmar que as mulheres, para o autor, em geral, também são tolas. Raríssimas são as mulheres de espírito (não mencionadas neste texto, mas esse arquétipo é identificável em outros, como veremos adiante). Além disso, elas “não são senhoras de si próprias; que nelas tudo é instinto ou temperamento, e que, portanto, elas não podem ser culpadas de suas preferências” (MACHADO DE ASSIS, 1861, p. 7, grifos nossos). Ou seja, as mulheres são rebaixadas à inferioridade de espírito, aproximadas ao animal que não antropos, pois não são dotadas de racionalidade, própria dos seres humanos por excelência. E, não sendo animais racionais, não são passíveis de culpa nem de responsabilidade – ocupam, portanto, uma posição infantil, de quem não consegue dizer por si mesma. Desse modo, Machado mostra-se em continuidade com o patriarcalismo de sua época e também com a história da filosofia e da literatura, que, salvo raras exceções, é gozosa com a opressão feminina.

 

Para a mulher: primeiro, cobiça; depois, virtude

 

No conto Confissões de uma viúva moça, Eugênia, a personagem principal – mulher de traços firmes e imperiosa sobre o marido, com quem teria se unido por um “resultado de um cálculo e de uma conivência” (p. 9) – envia cartas a sua amiga e confidente Carlota, para contar-lhe a lição que houvera aprendido e que, com sorte, poderia servir de auxílio a quem mais passasse pela situação em questão. Aquela, tendo ido a uma noite ao teatro na companhia do marido, percebeu que havia um moço que lhe olhava furtiva e insistentemente. Sobre esse encontro, ela narra:

 

Somos todas vaidosas da nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte mais ou menos arriscada por um homem. Há, porém, uma maneira de fazê-la que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por perigosa. É o que se dava naquele caso. O meu admirador insistia de modo tal que me levava a um dilema: ou ele era vítima de uma paixão louca, ou possuía a audácia mais desfaçada. Em qualquer dos casos não era conveniente que eu animasse as suas adorações. (MACHADO DE ASSIS, 1865, p. 4, grifos nossos).

 

Após muito elucubrar sobre o ocorrido, inesperadamente, o rapaz desconhecido envia a ela uma carta redigida, permitimo-nos dizer, ao modo dos homens tolos, que sabem como abordar uma moça, na perspectiva machadiana. A epístola parece à mulher casada como os olhos da serpente infernal que incita Eva a desobedecer a Deus e cometer o pecado original bíblico, “Se Eva tivesse feito outro tanto à cabeça da serpente que a tentava, não houvera pecado” (MACHADO DE ASSIS, 1865, p. 6).

Ao indagar-se sobre como e por que alguém teria lhe mandado a carta, ela se considera uma mulher respeitável, pois bem casada, i.e., casada com um homem rico. Tomada por culpa ao recebê-la, demonstra afeto ao marido assiduamente, agarrando-se à “ideia do dever” (MACHADO DE ASSIS, 1865, p. 6). Fica às voltas com a possibilidade de estar traindo o marido, ainda que de modo incipiente – via olhares e correspondências. Tal culpa pode ser identificada na seguinte passagem:

 

Senti uma lágrima rolar-me pela face. Não era a primeira lágrima de amargura. Seria a primeira lágrima do pecado? […] Não era o coração que se empenhava, era a imaginação. A imaginação perdia-me; a luta do dever e da imaginação é cruel e perigosa para os espíritos fracos. Eu era fraca. O mistério fascinava a minha fantasia (MACHADO DE ASSIS, 1865, p. 7).

 

O rapaz, chamado Emílio, era um moço tipicamente galanteador, de olhares magnéticos, maneiras elegantes e delicadas, o que o distinguia de outros rapazes, na descrição da narradora. Machado confere lugar privilegiado aos olhares, sendo estes um

 

insubstituível instrumento de comunicação entre os homens, mais completo e eficaz que a palavra. Em certos momentos, a linguagem dos olhos pode mesmo contradizer o significado das palavras e revelar o que elas silenciam. Numa sociedade que recomendava à mulher a contenção do comportamento, natural que à linguagem do olhar coubesse a expressão do que a jovem era obrigada a guardar dentro de si (BERGAMINI, 2008, p. 5).

 

Mesmo sofrendo com a atração por Emílio, Eugênia faz o esforço de permanecer fiel ao marido. Ela recusa à desonra de fugir com o possível adúltero, constatando depois que ele era um “sedutor vulgar” (p. 19). Logo após a derradeira conversa com este moço, seu marido chegara em casa enfermo e assim passou alguns dias até morrer. Emílio a acompanhara durante as celebrações fúnebres e depois enviou a Eugênia uma carta dizendo que iria partir e que, ao fim e ao cabo, não era homem de casamento, revelando-se, portanto, um homem tolo.

No final do conto, a narradora, que no início tinha uma conduta cobiçosa e vaidosa, mostra-se uma “mulher de espírito”, virtuosa, pois se arrepende de seus pecados – por ter, de algum modo, traído o marido – e pede perdão a Deus no final, clamando por redenção. Ela diz: “Mas eu creio que caro paguei o meu crime e acho-me reabilitada perante a minha consciência. Achar-me-ei perante Deus?” (p. 19). Com esse ato, Machado de Assis apresenta seu otimismo cristão, que depositava no casamento a solução para os conflitos sociais do homem (de gênero masculino).

 

*   *   *

 

Com efeito, o casamento representava no século dezenove uma possibilidade às mulheres de reconhecimento e elevação da posição social, e por isso era estimado nas análises machadianas. Eugênia, no conto examinado, enquadra-se nessa descrição. É a mulher a responsável pela manutenção da moral no âmbito privado e a quem cabe encarnar a decisão ética. No âmbito privado é que as coisas estariam em ordem, em contrapartida ao caos da vida social, o que nos permite afirmar que as personagens femininas ocupam papel absolutamente fulcral em suas obras. Essa vida social era o lugar por excelência dos homens, que tinham direito à política, ao conhecimento e à palavra.

Este quadro marca uma ruptura com o primeiro texto, Queda que as mulheres têm pelos tolos, no qual elas são tidas como seres inferiores aos homens, impossibilitadas de terem algum tipo de responsabilidade. Ao que tudo indica, as mulheres continuam a ser uma imagem do desejo masculino, ainda que desenhadas dentro das próprias limitações do horizonte cultural machadiano. Nesse sentido, foi possível identificar uma nuance entre as obras do autor, que timbrava os subentendidos que sutilmente chocavam a moral familiar, “tendo a mesma elegância felina e menos devassidão de espírito” (CANDIDO, 1968, p. 4), em contraste com o naturalismo ascendente, com suas descrições fisiológicas e animalescas da vida humana.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BERGAMINI, Denise Lopes. As mulheres no conto de Machado de Assis. Juiz de Fora, Darandina Revista Eletrônica, v. 1, nº 2, pp. 1-17, outubro de 2008.

CANDIDO, Antonio. Esquema Machado de Assis. 1968. Disponível em: http://paginapessoal.utfpr.edu.br/mhlima/Esquema_Machado_de_Assis.pdf/at_download/file. Acesso em: 20/01/2020.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo, Elefante, 2019.

MACHADO DE ASSIS. Queda que as mulheres têm para os tolos. 1861. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/131_3c8cea5509d680ffc00f882219bb9e7f. Acesso em: 20/01/2020.

MACHADO DE ASSIS. Confissões de uma viúva moça. 1865. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obra=16927&co_midia=2. Acesso em: 20/01/2020.

MONTEIRO, Juliana. O feminino traumático: ou sobre sereias, esfinges e abelhas. In: Trauma: Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro, Circuito, 2002. Pp. 62-87.

RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres em Machado de Assis: um desejo masculino… Ipotesi: Revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, vol. 1, nº 1, 1997, pp. 37-47.

 

 

 


Créditos na imagem: Constantin Guys, La Loge de l\’opéra, s/d.

 

 

 


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