“Processado por Wanessa, Rafinha Bastos faz piada com gravidez de Camilla Camargo” (Extra. Globo- 18/01/2019)

“Danilo Gentili é condenado a detenção por injúria contra deputada Maria do Rosário” (Estadão- 11/04/2019)

“Professor universitário é denunciado por assédio: “disse que se saísse com ele a nota era 10”’ (G1- 27/06/2019)

 

TEXTO LITERÁRIO!

 

“Ser engraçado não é para qualquer um, meu senhor!” Foi isso que disse a ele naquela noite. Eu juro a você que tentei dormir, me calar, assistir um filme, mas o silêncio tem me sufocado cada vez mais, não resisti e nem me arrependo! Quando é que as pessoas começaram a justificar racismo e machismo com humor? Ah por favor, um argumento desses chega a ser desrespeitoso com a própria graça. Porque é que ele não experimenta focar em outras qualidades? E nem me venha com essa história de que “não existe um limite para o humor”! Vou lhe contar o que aconteceu ontem à noite, e espero que você me entenda.

Você se lembra daquela palestra na empresa que eu queria assistir? Pois então, já começava a anoitecer, era possível observar quatro ou cinco estrelas no céu e a temperatura estava amena. Coloquei uma camiseta preta e uma saia lápis, você sabe como adoro usar saias e vestidos, no entanto faltava alguma coisa neste look. Sabe quando a roupa pede um assessório? Uma pulseira talvez, ou um colar… Ah claro! Faltava o turbante. Foi então que peguei o meu lenço preto e amarrei um turbante bastante volumoso em minha cabeça. Pronto, estava perfeito. Desci a rua do nosso apartamento e em 15 minutos já havia chegado à Empresa de Magia, o tema da palestra não condizia muito com o meu traballho e entrevistas com bruxas queimadas vivas, mas como este mago palestrante residia naquele reino de “Tão, tão distante”, tinha 105 anos de profissão, e além de tudo isso possuía a fama de ser engraçado, decidi conferir. Porque não? Poderia aprender algo novo e de quebra rir um pouco.

De fato o tema era novo para mim, mas engraçado aquele mago não era. E o que mais me incomodou não foram as piadas, foi a justificativa: “O mundo hoje anda muito chato, não podemos falar mais nada, não podemos fazer nenhuma piada, nenhum elogio, odeio o politicamente correto…” Eu sei que é estrutural, e eu sei também que em certa medida todos somos machistas e racistas… E quer saber?  Vá lá, um dia de cada vez, e se é sem intenção, que mal há em ser corrigido, pedir desculpas, pensar um pouco, repensar a frase, tornar-se um pouco melhor? Perceba, ele poderia ter simplesmente se desculpado e retornado ao tema, mas ele preferiu fazer outra piada. Não fiquei até o fim, não valeria a pena. Claro, a minha presença ali não faria a menor diferença para ele, eu sou uma mera bruxa aprendiz, e ele um mago já consagrado na Empresa de Magia. O que quis dizer é que não valeria a pena para mim, afinal a minha saúde mental precisa ter algum descanso. No caminho de volta para casa arranquei o turbante e o coloquei na bolsa, este foi o efeito que aquela palestra me causou de imediato. Sei que frases desta natureza têm sido ditas cada vez mais, e preciso confessar que, embora tenha me esforçado algumas vezes, não consigo entendê-las. Posso estar sendo injusta, mas gostaria muito que alguém me explicasse a funcionalidade destas piadas.

Ah, é claro que eu tenho bom humor, não é disso que se trata. Ao chegar em casa liguei o meu computador e entrei no you tube, comecei a assistir, pela milésima vez, a “Palestra Espetáculo de Ariano Suassuna”, este sim um sujeito engraçado! É certo que a idade e as experiências marcam uma frase ou outra de sua fala, mas morro de rir toda vez que assisto este autor maravilhoso dizer que um copo não deveria ser chamado de glass, ou então que uma oportunidade é tudo na vida. E me diga você, quem é que não riu da primeira vez em que assistiu o João Grilo (O Alto da Compadecida) dizer a clássica frase: “Eu não sei, só sei que foi assim”?

Chimamanda Nagozi Adichie, taí uma mulher engraçada. Nunca ouviu falar? Recomendo começar por uma palestra dela chamada “The danger of a single story”, é possível encontrá-la legendada no you tube. Poucas coisas valem tanto a pena quanto esta palestra, poucas pessoas têm tanta capacidade de tratar de um tema tão sério com tamanha leveza e bom humor. Você verá, são 20 minutos de “uma lagrima e uma gargalhada, uma lágrima e uma gargalhada”… Agora veja você, como uma mulher tão distante de mim geograficamente, que nem se quer imagina a minha existência, pôde falar tão bem sobre os meus problemas e a minha vida!? E eu pude entender tudo isso com lágrimas e sorrisos! A graça é mesmo uma arte e pode transformar o humano todos os dias, mas pessoas engraçadas não precisam de piadas machistas para fazer rir, e pessoas bem intencionadas não se incomodam em ter que reformular a própria piada.

Você me entende agora? E você consegue entender o real problema daquela frase? Ah por favor! Muito pior do que se desculpar por uma piada racista é ter que ouvi-la sendo uma mulher negra. E agora me diga você, qual de nós dois, eu ou ele, estava de “mi mi mi” nesta história? Foi nesse momento que decidi voltar até a Empresa de Magia. Enquanto andava a passos largos amarrava mais uma vez o meu turbante, enquanto secava minhas lágrimas colocava um sorriso em meu rosto, enquanto me preparava para retirar o silêncio da minha garganta, enchia o meu pulmão de coragem. Você já se sentiu assim? Cheguei ao fim da palestra e gritei absolutamente tudo o que estava me sufocando, todos me ouviram, e queria mais é que me ouvissem mesmo… E depois? Ficou tudo bem, voltei para casa e abri um vinho! Você acha que deveria ter evitado? Que este tipo de posicionamento pode me prejudicar? Você acha que ele poderia me lançar alguma espécie de magia branca? E por acaso você não leu o título deste texto, meu amigo? Não se preocupe, é literário e neste espaço destinado à literatura eu não preciso me calar, não preciso me contentar com o silêncio, não preciso engolir as palavras de raiva que teimam em se esconder, e tampouco precisarei retirar o meu turbante mais uma vez. Admita, a literatura é mesmo maravilhosa!

 

 

 


Créditos na imagem: Mr. Yue’s “The Sun, 2000″, acrylic work on canvas, Yue Minjun.

 

 

 

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