Nunca antes da hora

 

“O espetáculo é o sonho mau da moderna sociedade acorrentada que, afinal, não exprime mais que seu desejo de dormir”

Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo.

Por mais que seja difícil a vida de mães e pais nos primeiros meses da chegada de um filho, no que se refere a todas as surpresas dessa novidade, bebês dormindo são lindos. Ao longo do processo de crescimento, salvo exceções de todos os tipos, crianças dormem, também, lindamente. Não sei se quem inventou a expressão “o sonho dos inocentes” se referia a isso e, se foi, concordo que olhar uma criança dormir, seja quietinha em posição fetal, de bruços, de lado, desordenadamente, ou simplesmente espalhada na cama, de qualquer maneira é algo que transita entre o comovente e o belo.  Crianças dormem e isso é belo, de modo que quando de fato “desmaiam” fica até difícil de carregar no colo (porque ficam relaxadas e muito mais pesadas).

Acompanhei o processo de crescimento dos meus filhos pelo do peso deles nos braço. Muitas vezes, desde que eles nasceram, os levei para cama adormecidos; nos primeiros meses após amamentar e fazê-los arrotar – eram longas as noites picadas em todo processo que parece não ter fim quando estamos vivendo. Ao chegar de algum lugar a noite eu os via dormindo no carro, pesadamente. A beleza da cabecinha tombada de um lado, uma babinha escorrendo, os corpos entregues e um suor que a gente até acha cheiroso. Passados os anos ainda temos um ritual que se repete de modo ordinário: jantar, banho, pijama, leite, escovação de dentes, leitura e uma música da playlist que durante muito tempo foi a mesma, até que o filho mais velho indicou acréscimos. E assim fazemos, entra uma música, sai uma música, entre uma conversa, risadas e dormem. Um rito ordinário, seguro e eficaz, posso dizer.

Na minha juventude fui conhecida como alguém que dormia com facilidade. Ao longo do tempo quando já  morando sozinha morei próximo a um local onde ocorre a Feira Agropecuária de Goiânia, cuja festa anual atraia muita gente, com programação vasta e diversa de shows e eventos. No prédio em que morava, certo dia, ao subir no elevador com um morador, ele comentou como se incomodava com a música da festa. Disse-me que gostava do bairro mas odiava o período da “pecuária”, por causa dos barulhos dos shows que atravessavam as noites incomodando a todos.

Não pude fazer coro. Dei um cordial sorriso amarelo e segui até o meu andar pensando que eu nunca tinha me incomodado nenhum um dia sequer com barulho algum. Claro, assinei o abaixo assinado dos moradores do prédio, muito mais pelo coletivo do que exatamente por mim. As vezes fazemos o que temos que fazer pelos outros no entendimento do que importa ao coletivo.

Uma amiga companheira das baladas noturnas costumava ir para minha casa e dormir lá depois das noitadas. Muitas vezes dividíamos quarto de hotel viajando juntas. Ela cansou de brincar comigo perguntando o que tínhamos conversado na noite anterior, ainda na cama, quando chegávamos de algum lugar… sempre havia espaço para um comentário, risadas e eu sempre dormia antes no meio das conversas. Naquele tempo solidificava a minha imagem de dorminhoca. Com o tempo posso dizer que aprimorei a perícia.

Mas um dia isso teve fim. Eu me tornei mãe. Desde que o meu primeiro filho nasceu bastava um suspiro para que eu acordasse. No início, não pensei que isso estava acontecendo. Ouvia o barulho, levantava e, sem pestanejar, o pegava no colo, retirando-o do berço. Muitas vezes era um barulho apenas, ele estava dormindo, e, muitas vezes, eu devo tê-lo acordado por medo, receio, tensão, um sem fim de coisas que passam pela cabeça da gente. Cheguei a comprar a tal babá eletrônica, algo inútil e ridículo que jamais usei. E até hoje é assim. Acordo no menor sinal de barulho, nunca mais tive uma noite inteira de sono pesado, nunca mais acordei completamente reestabelecida e disposta. Posso contar nos dedos quando isso ocorreu depois da maternidade.

As crianças estão maiores e dormem a noite toda. Mas eu perdi a perícia: tomo chás, tento ler, vejo tevê. Percebi que não perdi a capacidade de dormir com barulhos, eles não me incomodam tanto. Mas o que me tirou a perícia foi coisa que acontece dentro, como se meu peito fosse um bar de periferia que nunca festa, um casal brigando aos sopapos, uma britadeira, uma orquestra tocando samba. É como se tudo se transformasse em urgência e o drama do mundo mantivesse a minha janela aberta iluminando o quarto com um sol.

Meu sintoma de insônia foi a primeira coisa que apareceu quando outros já tinham se colocado: eu comecei a perder chaves e um dia cheguei a trancar a própria chave do carro dentro do carro. Depois, comecei a chorar mais facilmente do que eu recorrentemente fazia. Depois comecei a tropeçar. Um dia caí feio, de um jeito que eu nem sabia que era possível. E por último a insônia, coisa que chegou de mansinho, no começo, apenas atrasando mais que o normal o tempo em que eu ficava virando para lá e para cá na cama, procurando uma posição ideal.

Hoje me valho de tudo: chás, banho, escureço o quarto, coloco um cheiro de lavanda, deixo os lençóis sempre muito lavados e agradáveis, invisto em bons pijamas, ligo o ar condicionado, faço terapia de óleos essenciais e ainda assim, nem todos os dias eu consigo dormir aquele sono que um dia me foi dado de modo tão fácil. Parece que é isso que se chama de vida adulta. É isso que se chama de falta de paz.

Como dormir num mundo em que a cada dia a catástrofes se assenta, a desumanização corrói o valor da vida, não sabemos mais o que comemos, desconhecemos a qualidade do ar, é pouco razoável acreditar na possibilidade de futuro? Como posso dormir diante do mundo que ofereço ao futuro dos meus filhos, dos meus sobrinhos, das crianças que existem? Num mundo que tem vacina e mesmo assim as pessoas morrem por falta de vacina, de atendimento, de UTI.

Não é por pessimismo e nem por falta de cansaço. Não adianta ficar se ver a tevê, sem assistir aos jornais. O mundo sucumbe numa arrogância tremenda, as pessoas voltaram a sentir fome pra valer, as crianças estão ansiosas e a pandemia não tem data para acabar. A vacina existe mas não a temos, não temos acesso. As escolas seguem fechadas. Assistimos ao espetáculo do horror mas não estamos aturdidos com ele. São pessoas, são números, três mil por dia ou quinhentos por dia. Sabemos que esses números têm identidade, corpo e sangue. Não será preciso ser três mil ou mil, se for um e for alguém que amamos.

Cada um de nós deveria ter o direito, o desejo e a disponibilidade de dormir tranquilamente, no mínimo. Numa cama confortável, em paz, até o descanso final, aquele que só se deve acessar quando o último suspiro de vida chegar.

Nunca antes da hora. Nunca antes da hora.

 

 

 


Créditos na imagem: Maternal Care, Friedrich Eduard Meyerheim (1808 – 1879, German).

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva

Professora Associada da Universidade Federal de Goiás onde exerce atividades de ensino, pesquisa e extensão. Coordena o VEREDAS, grupo de estudos, pesquisa e extensão, vinculado ao LAGICRIARTE - Laboratório de Geografia, Imaginário, Criatividade e Arte.

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