Narrativas e Interseccionalidades da Yalorisha Omó Oyá Jacqueline Costa

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Como mulher me superei, pois tenho 04 filhos (03 criados e 01 menor). O meu filho mais velho que segue o Candomblé, Ebomi filho de Ogum, Rhomulo D’Ogun, minha filha Thamyres Yane que é Kardecista, o meu filho Rhuan Yago Babalaô Ogunda She e minha caçula Jackeline Victhoria D’ Yewa feita de Orixá a 03 anos. Tenho 02 netas lindas que seguem o candomblé e todos são iniciados em Ifá.

Yalorisha Jacqueline Costa

 

Pedimos licença para abrir este ensaio repleto de sabedorias ancestrais que, através das narrativas da Yalorisha[1] Omó Oyá Jacqueline Costa buscará compreender a importância do cruzo dessas narrativas, ressaltando todas as intersecções e subjetividades presentes na sua existência, pois a episteme preta, é a episteme da vida, do caminho completo e menos fácil, mas que valoriza a jornada (NOGUEIRA, 2020).

Para tanto, se faz necessário relembrar que nossos passos vêm de longe e nossos ancestrais que aqui aportaram na condição de escravizados, trouxeram em seus corpos e mentes sabedorias que iriam forjar armas para que ainda hoje pudéssemos nos defender de todo mal.

A religiosidade está presente na diáspora com o propósito de nos fazer acreditar em momentos melhores, como manutenção não de uma “fé cega”, mas num refúgio onde possamos nos proteger das mazelas do mundo. A propósito, em tempos de tanta violência gratuita, vale pontuar que a vida é um dom divino, de caráter transcendental, e deve ser usada para cuidar de si e do outro.

É importante enfatizar a importância das mulheres negras na ótica da religião de origem africana, pois estas simbolizam a força matriz que valoriza o sagrado feminino como fonte constante e energia, equilíbrio e axé. Dito isto, através das narrativas da Yalorisha Jacqueline iremos perceber a presença da ancestralidade, num processo de busca e valorização daqueles e daquelas que estiveram presentes nos variados momentos de sua existência, representado uma fonte inesgotável de construção de valores e saberes.

 

Neste aspecto, o objetivo deste ensaio é compreender narrativas que durante muito tempo foram perseguidas, menosprezadas, ocultadas e demonizadas dentro de nossa sociedade, construindo um percurso de valorização e visibilidade dos saberes de terreiro:

Nasci para o Orixá no mesmo dia que nasci pra vida 29/06/1988. E eu nasci para o Orixá AIRÁ e OYÁ. ou Zazi Luango e Matamba. Como eu e minha mãe nada entendíamos e aquele mundo pra nós era desconhecido o que meu pai falava era lei. O responsável pela minha Iyalorisa era meu próprio tio Adhemar D Omolu, e a minha mãe era Yara D OXOSSI, mas meu pai era ANGOLEIRO. E eu herdeira da cadeira, pois DANDALUNDA que fez questão de vir e quando tudo se conclui, e disse meu cargo IYALORISA ou MAMETU. E me sentou na cadeira, eu não entendia nada então nem sabia o que estava acontecendo. Mais hoje eu sei e a partir disso minha vida tomou outra direção. Cumpri meus preceitos de Iyawo e muitas coisas aconteceram com a minha Iyalorisa e quem me amparou e cuidou de mim foi minha madrinha de Morunkó, mãe Celina D’ Yoba, graças a ela me formei na enfermagem e dei continuidade no candomblé. Aos 24 anos de vida paguei minha obrigação de 7 anos para AIRÁ e somente aos 09 anos de santo consegui me encontrar nesse turbilhão chamado candomblé. Aonde tive o Amparo religioso que certo ou errado salvou minha vida pela Iyalorisa Selma D Aira, que organizou minha vida dentro do Candomblé. Passei a ser conhecida como Jacqueline D’Oya e não era mais a XANGOZINHO. Mais jamais vou deixar de ser do Orixá que nasci até porque ele é PRESENTE até hoje, e tenho tudo que um rei precisa, pois ele é meu Pai Xangô e minha vida e Oya meu Ar. Passei a ser Ori Meji como dizem. Após essa mudança me enfiei mais ainda no candomblé, pois dentro desse tive muitas passagens que uma hora escrevo um livro e assim relato tudo que de fato luto pra que não aconteça com ninguém que a espiritualidade escolha (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JACQUELINE COSTA EM 06/02/2021).

Para atingir os objetivos propostos, o principal instrumento para geração de dados foram as narrativas da Yalorisha Omó Oyá Jacqueline Costa. Demonstrando (PEREZ, 2003) que as narrativas biográficas se constituem como fragmentos discursivos sobre a vida daquelas e daqueles que as relatam, fornecendo informações relevantes para configurar o reencontro de experiências vividas, pois narrativas autobiográficas implicam num sistema de interpretação e construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como elementos organizados dentro de um todo e que também significa um projeto de si dentro de uma construção biográfica.

Ressaltamos que, contudo, essas representações de si podem cristalizar significados em torno de identidades como: “mulher negra”, “mulher negra de axé”, “mulher de axé”, por exemplo, sem ignorar como os marcadores sociais de raça/classe/gênero estão imbricados nessas experiências.

Pensar sobre as narrativas de axé é compreender o sentido de uma epistemologia que foi subalternizada em função do racismo religioso (NOGUEIRA, 2020) que, tem como alvo um sistema de valores cuja origem nega o poder normatizador de uma cultura eurocêntrica hegemônica cristã.

Atualmente, ainda podemos destacar que a situação da mulher negra no Brasil é alarmante, pois estas apresentam o menor nível de escolaridade, trabalham mais, e possuem um rendimento menor. A pobreza e a marginalidade a que é submetida a mulher negra reforça o preconceito e a interiorização da condição de inferioridade, que em muitos casos inibe a reação e luta contra a discriminação sofrida.

Em uma sociedade desigual como a nossa, precisamos compreender a situação da mulher negra, mãe e empreendedora como um olhar diferenciado em vários âmbitos, principalmente se acrescentamos a função de Yalorisha, pois é necessário manter o equilíbrio entre ser mulher e zeladora de uma casa de axé, de ser mãe de filhos e filhas carnais e de filhos e filhas espirituais, cuidar de uma casa e de uma casa de axé:

Eu tenho estou na Religião a 42 anos, sou iniciada no Candomblé a 32 anos e no Ifá a 10 anos. Estou sempre em busca de evolução, sou uma pessoa revolucionária, não aceito qualquer explicação, não concordo com opiniões formadas, e sempre serei uma pessoa intensa e grata a tudo e todos que passaram pela minha vida, pois cada um complementa a minha história (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JACQUELINE COSTA EM 06/02/2021).

Percebe-se então, que as tarefas, juntamente com as cobranças se acumulam num emaranhado de situações que não tornam a vida fácil. Nesta perspectiva, ressaltamos a relevância de sermos conscientes de que cada indivíduo é marcado por diversos atravessamentos e subjetividades remetidos a raça, classe e gênero, tornando imprescindível recorrer ao conceito de interseccionalidade (CRENSHAW, 2004), demonstrando que os processos se inter-relacionam e precisam ser considerados para que possam compreender melhor as realidades abordadas, pois:

Não existe hierarquia de opressão, já aprendemos. Identidades, sobressaltam aos olhos ocidentais, mas a interseccionalidade se refere ao que faremos politicamente com a matriz de opressão responsável por produzir diferenças, depois e enxergá-las como identidades. Uma vez no fluxo das estruturas, o dinamismo identitário produz novas formas de viver pensar e sentir, podendo ficar subsumidas a certas identidades insurgentes, ressignificadas pelas opressões (AKOTIRENE, 2019, p. 46)

Através da interseccionalidade percebemos a colisão das estruturas, a interação simultânea dos caminhos identitárias, pois existem muitas subjetividades implícitas e explícitas apresentadas nas narrativas de mulheres negras, neste caso em específico nas narrativas da Yalorisha Jacqueline, que nos fornece um arcabouço de situações e ações que completam sua existência,

Sou técnica em enfermagem, estou estudando pra me tornar Terapeuta, já sou Terapeuta Holística e Oracular, sou micro emprededora, sou dona da Aféfé jóias. E estou num novo projeto de evolução espiritual lançando no mercado Cosméticos Naturais para corpo, mente e alma, chamada Pachamama Naturaly (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JACQUELINE COSTA EM 06/02/2021).

Neste caminho podemos perceber que a trajetória da Yalorisha Jacqueline se dá com base nas intersecções da mulher, mãe e empreendedora que junta as funções do terreiro as tarefas cotidianas, pois a narrativa centrada em primeira pessoa configura não apenas um testemunho ocular, mas uma vivência que retrata subjetividades únicas dentro da experiência do vivido e confere maior veracidade aos fatos transcorridos, nos colocando diante de um tema negro e de uma vida negra.

Pensar sobre as interseções que perpassam os corpos de mulheres negras é compreender a existência de subjetividades únicas e diversas que em função das desigualdades presentes em nosso país, são ofuscadas e minimizadas.

Na tríade mulher, mãe e religiosa podemos perceber as grandes lacunas que não são mensuradas, como por exemplo a falta de tempo para cuidar de si, estudar, trabalhar, cuidar da família, entre outras. Situações presentes na vida das mulheres que acumulam funções em jornadas diárias e constantes de trabalho, que em alguns casos nem são considerados como tal.

Encerramos com a esperança de que Yalorisha Jacqueline e tantas outras Yalorishas da diáspora possam passar seus saberes e que suas estórias estejam presentes nos diversos espaços, mas principalmente que nossa sociedade possa compreender e respeitar as práticas e vivências de terreiro, e não apenas tolerá-las.

 

 

 


REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paul: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

CRENSHAW, Kimberlé Williams. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: V.V.A.A. Cruzamento: raça e gênero. Brasília, DF: Unifem. 2004.

NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paul: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.

PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Professores alfabetizadores: histórias plurais, práticas singulares. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

 

 

 


NOTAS

[1] Yalorisha (grafia utilizada por Jacqueline Costa), ialorixá, yalorixá ou mãe de santo, cargo designado sacerdotisa de um terreiro, seja ele de Candomblé, Umbanda ou Quimbanda.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em http://umbandaderaiz.blogspot.com/2015/10/qualidades-do-orixa-oya-iansa.html

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Gisele Rose da Silva

Possui Bacharelado e Licenciatura Plena em Filosofia pela UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro (2003) e Especialização em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pelo IPPUR-UFRJ. Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET-RJ e Pós-Graduada em Gestão Escolar (Administração, Supervisão, Orientação e Inspeção). Trabalha como professora de Filosofia para Ensino Médio. Possui experiência nas áreas de: Filosofia, Sociologia, Educação e Relações Étnico-Raciais.

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