1972, da Bahia à Minas Gerais, do Credo ao Axé: Maria Bethânia, Gilberto Gil e Clube da Esquina

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Texto produzido para a disciplina MPB, contracultura e história do Brasil: o que pode a canção?

 

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“A música é a língua materna de Deus.
Aliás foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam, que em África os deuses dançam.
E todos cometeram o mesmo erro: proibiram os tambores.
Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques, nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor.
Ou mais grave ainda, percutiríamos com os pés sobre a superfície da terra e assim abrir-se iriam brechas no mundo inteiro.”

Mia Couto

 

Que rufem os tambores, chorem as violas e sanfonas, que soem com doçura e elegância os pianos, que soem com força e ancestralidade os atabaques, para que desçam as Ayabás, as santas, Jesus Cristo e Jeová.

Cantar o Brasil e suas peculiaridades. Um país tão grande e repleto de culturas e costumes tão distintos é algo que parece inconcebível. Cantar o Brasil a partir da atmosfera de 1972, com a censura, o AI-5 e os exílios, um país cercado de chumbo e sem a magia da arte, cercado pela censura. É proibido proibir.

Cantar o Brasil a partir do que é o Brasil, desde Iansã até o Credo. Desde Bethânia, até Gil com a Bahia à Milton, Lô e Minas Gerais. “Tenha fé no nosso povo que ele resiste, tenha fé no nosso povo que existe.” Dois versos da música “Credo” cantados por Milton Nascimento em 1976, o Brasil ainda passava pelos anos de chumbo. A esperança era a chave, a juventude e a melancolia andavam de mãos dadas, do Sudeste à Bahia.

 

1. Tudo o que você podia ser, sem medo.

Minas Gerais, 1971.  Os frutos da chegada de Milton Nascimento, vulgo Bituca, na capital mineira se desenrolaram, Milton já seguia sua carreira no Rio de Janeiro e aguardava uma proposta para o menino Lô Borges. Porém, antes disso: vindo do Sul de Minas, junto de Wagner Tiso, Milton acaba caindo nos braços dos Borges e se torna o décimo segundo dos filhos. Partilhavam o amor pela música e pelas composições, mas sobretudo, o amor aos amigos e as amizades.

Márcio Borges e Jules et Jim de Truffaut –  o início de tudo – aquele baixinho invocado, como colocado pelo próprio Bituca, lhe apresentou o mundo a partir do telão do Cine Metrópole. Fernando Brant, a Travessia e o Festival da música. Milton é lançado nacionalmente. Mas, para além disso, a riqueza musical que se fazia presente na ambiência do lar da família Borges proporcionava para aqueles jovens, no auge do Golpe Militar, a resistência em forma de amizade, e sobretudo, de música.

Milton e o menino Lô Borges, embarcam para Mar Azul. O êxtase musical e o fascínio pelos Beatles embarcavam a jovem mente de Lô, recém liberado do batalhão e indo seguir seu caminho contra a vontade de Dona Maricota, a matriarca dos Borges. Beto Guedes, inseparável de seu amigo Lô encarava essa aventura e partiria junto deles. Minas no Rio e o início de um dos álbuns mais consagrados da música popular brasileira.

 

Sei um segredo você tem medo
Só pensa agora em voltar
Não fala mais na bota e do anel de Zapata
Tudo que você devia ser sem medo

“Tudo o que você podia ser”, composição de Lô Borges e Márcio Borges.

 

A referência a Zapata, uma figura de enorme importância na Revolução Mexicana, durante o período da Ditadura Porfírio Diaz, aparece em “Tudo que você podia ser”. Falava-se em falava da revolução, mas após 1968 com o AI-5 a atmosfera do medo se fazia mais presente. Como fazer revolução quanto se tem medo? Em meio a Ditadura Civil-Militar, nasceu o disco Clube da Esquina, esse medo se potencializou em arte.

O disco, desde a sua capa, a emblemática foto de Cafi, estampava o Brasil: a terra dos sertões, o verde, o amarelo e, principalmente o arame que representava o cenário que o país estava encarando, compunham um lado do encarte o juntamente com os dois garotos. Produzido de modo cuidadoso e em conjunto, destacando o valor da amizade durante o período difícil que era feita a travessia. Feito de forma quase que artesanal, onde cada um fazia uma parte, de forma minuciosa, além do revezamento nas execuções dos instrumentos, os insights que deram certo e o medo de errar. E assim, o disco se materializou.

Mas, para além de pontuações técnicas e estéticas, o que o disco traz é muito mais do que um marco pós-tropicalista, é o Brasil em suas diversas faces sendo reproduzido pela música daqueles jovens garotos de Minas Gerais. A presença de ritmos desde o Rock and Roll, com influência dos Beatles, para doses de samba e tambor em “Cravo e Canela” e para a viola que se faz presente e singela em “Nuvem Cigana”. Além da representação musical, se dá a representação de uma resistência perpassada pela amizade enquanto algo sólido em tempos tão difíceis marcado pelo desaparecimento de tantos conhecidos e a censura em cima das artes.

Desde os tambores, passando pela viola caipira, o piano e a guitarra elétrica, esses instrumentos conferem e mostram as diversas influências que os compositores e os músicos tiveram ao arranjar o disco e, assim, fazê-lo um grande marco para a música brasileira. Sem descartar o apoio das gravadoras, que segundo Márcio Borges (1996, p. 209), em seu livro “Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina” a Odeon tinha dado passe livre para qualquer coisa que a “turma de Minas Gerais” quisesse fazer.

 

2. Eu sou um céu para as tuas tempestades: de Iansã à Nossa Senhora da Purificação – Maria Bethânia Viana Telles Veloso.

Misteriosa, agressiva, doce, intuitiva, esses são alguns adjetivos usados por Caetano Veloso na sua entrevista para o livro “O bondinho[1]” para se referir à sua irmã mais nova, a qual ele escolheu o nome. Maria Bethânia. Nascida em Santo Amaro da Purificação, no recôncavo baiano, dando a ela aquilo que a Bahia tem: batuque, energia e misticismo, tudo isso pairou sobre Bethânia, de forma intensa e visceral.

Essa aura mística e ao mesmo tempo sacra que a envolve pode ser lida como a possibilidade e a unção de dois Brasis, de um lado temos o país católico e engessado, colonizado e marcado pela presença do cristianismo em seu território. Do outro, se tem os tambores, as religiões de matriz africanas e ela: que de forma sincrética e espontânea engloba as duas possibilidades. Ao mesmo tempo que frequenta as missas em Santo Amaro da Purificação, Bethânia, carrega uma devoção por Iansã e os Orixás que compõe a linha do Candomblé, leva consigo a presença dessas entidades em seu repertório, além da mistura das canções com os pontos das religiões de matriz africana.

Essa presença teve um mote inicial. Em 1971 Bethânia estoura com seu show “Rosa dos Ventos”, que é marcado e colocado como algo visceral e que proporcionou ao público as experiências mais diversas, desde o colapso à euforia total. Seu repertório envolvente e intenso, com a junção das canções que ela interpreta com as citações provocaram a ideia que ela cita na entrevista para “o Bondinho”. O diretor do show, Fauzi, queria que Bethânia estivesse solta e envolvida com os quatro elementos no palco: ar, água, terra e fogo. A explosão se deu. Ela cantou o amor, o desbunde e a fé, em suas duas faces.

 

“Eu sou um céu para as tuas tempestades
Um céu partido ao meio no meio da tarde
Eu sou um céu para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim”

“Iansã” composição de Gilberto Gil e Caetano Veloso

 

Adentrando novamente na atmosfera de 1972, o disco estreado por Bethânia, intitulado de “Drama”, nome não dado apenas de forma intuitiva, surge a partir do envolvimento que ela sempre teve com as artes, e dentre elas, o teatro. O disco é composto por dois atos, sua primeira faixa é “Ponto”, onde ela adentra o disco de forma imponente e corajosa, o que pode ser comparado com o cenário do país que era cercado pela censura. Quando ela coloca que não tem medo, pode-se interpretar como uma forma de um grito contra a censura nas artes.

 

“Sou eu que me deito tarde
Sou eu que levanto cedo
Sou eu que realço tudo
Sou eu que não tenho medo”

Folclore Baiano

 

3. O sonho acabou: Gilberto Passos Gil Moreira, da Bahia ao exílio em Londres.

Começo aqui por um movimento diferente dos outros artistas citados, não desenrolarei sobre a trajetória de vida de Gilberto Gil, mas tematizarem a experiência do exílio com Caetano Veloso e como se deu a trajetória de gravação do disco “Expresso 2222” em Londres. Cantar o Brasil, nesse caso, ultrapassa as fronteiras latino-americanas e chega ao continente europeu.

Caetano Veloso em seu livro Verdade Tropical (1997), discorre sobre o episódio de sua prisão e a de Gilberto Gil, onde foram levados de seus apartamentos pelos oficiais da polícia, ele descreve minuciosamente todos os detalhes em sua obra sobre tal episódio:

 

Mas quando decidi mandar dizer a Gil que fosse para casa esperar a Polícia Federal, a sugestão de levar a escova de dentes já me tinha sido feita. E já estava com medo. Não era, de modo nenhum, um medo que correspondesse ao tamanho do que de fato estava começando a acontecer. Mas era suficientemente grande para me fazer ver à frente longos momentos de desconforto, dos quais estava em minhas mãos poupar Gil. (VELOSO, Caetano. 1997, p. 349)

 

O que é curioso em Gil é que, mesmo após o episódio da prisão, seguida da experiência do exílio, ele usufruiu da possibilidade de uma carreira internacional. Diferentemente de Caetano Veloso, que estava tomado pela melancolia e pela depressão, como ele mesmo relata em Verdade Tropical. Gil produziu em Londres, conheceu Jimmy Cliff, levou a música da Bahia para as terras da monarquia britânica, desencadeando uma experiência musical e estética do que é cantar o Brasil, e principalmente, a Bahia diante de um cenário de exílio.

 

“Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui
Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim
Puxando o cabelo nervoso, querendo ouvir Celly Campelo pra não cair

Naquela fossa em que vi um camarada
Meu de Portobello cair
Naquela falta de juízo que eu não
Tinha nem uma razão pra curtir
Naquela ausência de calor, de cor, de sal,
De sol, de coração pra sentir”

“Back in Bahia”, composição de Gilberto Gil.

 

Por meio desse trecho de “Back in Bahia” do disco Expresso 2222, gravado em 1972, o que se pode interpretar é que havia uma saudade grande do Brasil, da atmosfera que o país tem, mas que no país também se fazia presente uma tensão: “puxando o cabelo/nervoso ouvindo Celly Campelo pra não cair”. Quando Gil se refere à expressão “cair” ela está diretamente relacionada à experiência que ele mesmo viveu, a prisão política e a experiência de ser exilado.

Entretanto, uma outra faixa que deixa explicito a questão da tensão presente é “O sonho acabou”. O fim dos Beatles, o cenário político marcado pelas tensões das ditaduras, principalmente, cessava toda a juventude de Woodstock do sonho Socialista. Gil em uma entrevista para o almanaque “O Bondinho” discorre que a música foi escrita durante o festival Glastonbury, marcado por ter sido, segundo ele, um dia cósmico: o solstício de verão, o Stonehenge e o dia da fertilidade. Para ele, todos esses fatores o causaram quase que um despertar cósmico, que para ele que era resistente a ideia de que o sonho tinha acabado, toda essa atmosfera presente o fez sentir que, de fato, realmente o sonho teria acabado ali, em meio ao dia mais longo do ano.

 

***

 

Gumbrecht em “Ficar quieto por um momento” discorre que a arte produz várias respostas e que todas elas são aceitáveis. A partir dessa premissa, o que se pode notar é que diante da atmosfera de 1972, com o fechamento de futuro, a música seria uma forma de ir além e ser um escape perante tal cenário, proporcionando uma forma de ir mais a frente do que eles eram e do que o período da ditadura os proporcionava. Em outras palavras, é como Heidegger descreve a arte, como um espaço para ser o que se é, e é justamente isso que enquadra os artistas citados nesse ensaio, a miscelânea musical presente no Clube da Esquina, o misticismo de Maria Bethânia e o cantar da Bahia de Gilberto Gil.

Por fim, o que se pode notar a partir dessa breve discussão, é que arte foi vista e vivada por esses artistas como uma fuga ao que o país enfrentava, principalmente o que tange a respeito da censura e da repressão. Para Gumbrecht, além da arte como escape, ela é uma forma de encontrar a si mesmo.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. Geração Editorial, 1996.

GUMBRECHT, Hans. U. Ficar quieto por um momento. In.: Serenidade, presença e poesia. Belo Horizonte: Relicário, 2016, p. 31-39.

JOST, Miguel. Entrevistas: Bondinho. Beco do Azougue Editorial, 2008.

PASSOS, Marlon Marcos Vieira. Maria Bethânia: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela / por Marlon Marcos Vieira Passos. – 2008.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

 

 

 


 NOTAS

[1] Jost, Miguel. Entrevistas: Bondinho. Beco do Azougue Editorial, 2008.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Larissa Vitória Ivo

Graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestranda no Programa de Pós-graduação em História (PPGHIS/UFOP) onde integra a linha de pesquisa 1: Poder, Espaço e Sociedade, desenvolvendo pesquisa acerca das políticas de memória dos antigos centros de tortura no Brasil. É professora de Filosofia e Ciências Humanas do Estado de Minas Gerais. Atua na assessoria editorial do portal de Humanidades HH Magazine e é membro do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP).

3 comments

  1. bruna 28 janeiro, 2021 at 18:02 Responder

    Que belo texto Larissa! Momento delicado da história do Brasil que vivia sob forte censura e repressão dos militares, mas por outro lado temos essa explosão artística e musical da contracultura. Maria Bethânia rainha!
    E a arte é isso, ela liberta e nos faz conectar com nós mesmos parafraseando o Gumbrecht.

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