Nunca antes na história desse país: Luiz Inácio Lula da Silva e a justa memória

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Algo que chama a atenção no discurso político de Lula, acentuando-se nesse período de campanha, é a sua preocupação com a memória. Se alguns associam esse movimento, que Paul Ricoeur, certa vez, disse ser um grande tema de relevância cívica, com a melancolia, Lula demonstra a sua carga positiva, a direcionando como uma força vital, como uma maneira de efetuar uma convocação em direção à justiça, e não como uma prisão para nos lembrarmos das ponderações de Nietzsche. O que Lula efetua em sua ação política, manifesta em sua linguagem, é um verdadeiro trabalho de memória, indo muito além de um frenesi comemorativo. Não por acaso Ricoeur deixou claro: o trabalho sobre a memória deve acionar a ideia de justiça. O que não significa falta de emoção nessa operação, lembrando que a recordação é a memória que atravessa o coração, o que, talvez, apontaria apenas para o ero subjetivismo de Lula, para uma estratégia eleitoral, mas sublinha, de maneira diferente, “[…] o vínculo de vida que une o presente ao passado” (GAGNEBIN, 2020, p. 208).

Justiça, recordação e memória como vida podem ser identificadas no momento mais dramático da sua vida, quando foi submetido ao cárcere político. Lula mobiliza, em um ato de lembrança, a metáfora do sonho, fazendo ela se movimentar muldirecionalmente para todas a temporalidades da história brasileira. E trabalhamos aqui na ambiguidade do sonho: lembrança e projeção. E é interessante, mais ainda, Lula lembrando do seu sonho:

Eu, há muito tempo atrás, sonhei que era possível governar esse país envolvendo milhões e milhões de pessoas pobres na economia. Envolvendo milhões de pessoas nas universidades. Criando milhões de empregos nesse país. Eu sonhei que era possível um metalúrgico cuidar mais da educação que os diplomados e concursados que governaram esse país. Eu sonhei que era possível diminuir a mortalidade infantil, levando leite, arroz e feijão para que as crianças pudessem comer todo dia. Eu sonhei que era possível pegar os estudantes da periferia e colocar nas melhores universidades desse país (LULA, 2018, 07 de abril de 2018).

Ainda na pré-campanha de 2018, quando foi impedido de participar devido à trama política-jurídica-midiática que o colocou na prisão, mas que ele enfrentou por acreditar na justiça, ou por crer na justa memória, Lula argumentou o seguinte, o que explica de maneira clara o que se sucedeu posteriormente:

E agora quero ser candidato, vou ser candidato. E qual a preocupação dos meus adversários? É que eu sendo candidato eu vou ganhar as eleições. E eles sabem que eu posso ganhar as eleições no primeiro turno. Eles sabem disso! O povo sabe o que aconteceu no período que nós governamos esse país. Esse povo sorria, esse povo comia, esse povo trabalhava, esse povo recebia salário, esse povo estudava!

É por isso que Ricoeur, que nos ajuda a compreender a saga de Luiz Inácio Lula da Silva em seu trabalho em busca da justa memória, nos mostra que esse movimento, de importância pública, de função democrática, de responsabilidade ética, de amor para com tudo e para com todas e todos, está para além da memória tida como um armazém de objetos, pensando nas definições de Agostinho, mas quer acionar, definitivamente, a memória viva, aquela que pulsa, aquela espontânea e que nos constitui, mesmo que submetida às artimanhas do esquecimento projetado. Trazendo Proust e Freud para demostramos, de alguma forma, a grandeza do trabalho de Lula, vemos que a sua batalha é para que os rastros não sejam apagados, tentando resgatar o esquecimento de reserva, presente no tecido social coletivo, mas que tem consigo o signo da reserva de vida. Lula não apenas insiste no vocabulário do amor em sua saga política, talvez a mais extraordinária de toda a nossa história política, como um confronto à retórica do ódio bolsonarista. Lula não quer ser esquecido, pensando nessa incrível fusão que ele efetua com a própria história do Brasil, de uma coisa: do tanto que amou (e ama) esse Brasil. Do tanto que foi amado (e é amado). E do tanto que nos amamos (e ainda amamos) naqueles tempos.

Por isso Luiz Inácio Lula da Silva é excepcional na criação de imagens, que ele quer fazer sobreviver como agência, porque elas nos trazem a alegria e a emoção sem limites, principalmente entre aquelas(es) dos lugares de fala historicamente silenciados e marginalizados, e de vergonha e de ódio das elites (política, econômica, cultural, jurídica) e dos donos do poder, historicamente agindo como parasitas inescrupulosos de todas as riquezas, no sentido máximo da expressão, do povo brasileiro. Por isso a batalha de Lula, recuperando toda aquela força do velho metalúrgico destemido, é a de trazer à tona o esquecimento de reserva, tendo esse gesto um sentido de despertar. Lula enfrenta, nessa campanha, os esquecimentos impostos, os esquecimentos operados como projeto, os esquecimentos comandados. O discurso e a ação política Lula lastreiam as palavras de Jeanne Marie Gagnebin:

Impor o esquecimento é, paradoxalmente, impor uma forma única de memória, produzindo ao mesmo tempo uma “memória impedida” que não cessa de sempre voltar e solapar o difícil equilíbrio alcançado: a memória viva reivindica sua independência e contesta as disposições precárias da memória oficial (GAGNEBIN, 2020, p. 209).

No primeiro debate realizado na TV Bandeirantes durante nessa campanha, em 28/08, percebemos, e vemos, inequivocadamente, o trabalho da memória operado por Lula em seu diálogo com a candidata Soraya Thronicke do União Brasil (SIC):

A senhora diz que não viu esse país que falei acontecer. O seu motorista viu, o seu jardineiro viu, a sua emprega doméstica viu. Você pode perguntar para sua emprega doméstica que ela viu que esse país melhorou, ela viu que podia almoçar e jantar todo santo dia, que ela poderia tomar café, que o filho dela poderia entrar numa universidade. […]. Porque os pobres desse país cresceram e conquistaram cidadania (LULA, 2022).

No mesmo debate Lula é questionado por Bolsonaro sobre corrupção (que ironia!) na Petrobrás durante os seus governos, e vemos, novamente, o presidente trabalhando a memória. De acordo como Lula:

Eu acho isso importante. […] Não teve um presidente da República que fez mais investigação para que a gente apurasse a corrupção do que nós fizemos. Fizemos o Portal da Transparência, a fiscalização da CGU, a Lei de Acesso à Informação, a Lei contra o crime organizado, a Lei contra a lavagem de dinheiro, colocamos a CGU no combate da corrupção, fizemos a COAF funcionar […]. O presidente (SIC) precisava saber que o meu governo é marcado pela maior política de inclusão social, pela maior geração de emprego, pelo maior aumento de salário mínimo, pelo maior investimento na agricultura familiar, pelo maior investimento na criação da Lei geral da pequena empresa, pela criação do SIMPLES. […] O nosso governo, além disso, foi o maior governo que fez investimento na educação. O meu governo deveria ser conhecido exatamente por isso. […] É exatamente isso que é a marca do meu governo […]. Portanto, o país que eu deixei é um país que o povo tem saudade (LULA, 2022). 

Está aí, então, a estratégia, a ação e a terapêutica política de Lula: a memória sendo trabalhada. Lembrando que rememorar significa recherche (pesquisa). Existe, sim, a dimensão emocional, fundamental como tônico despertador, mas é absolutamente uma operação cognitiva. Lula é um grande arquivo que preserva os traços da democracia e da cidadania no nosso país. Os vestígios, dito de outra forma, da nossa soberania em expansão. Lula seria um monumento articulador da memória individual e coletiva?

Lula um psicanalista? Lula um historiador? Lula um arquivo? Acompanhemos os próximos passos do presidente em seu destemido trabalho da memória: SEM MEDO DE SER FELIZ! Em busca de uma terapêutica contra o ressentimento, contra o ódio, contra os ataques a nossa democracia, apostando na esperança contra a repetição, pois a esperança é projetiva. Lula enfrenta o não dito do passado com clara intenção de criar um novo mundo possível. Coragem não lhe falta. Coragem de verdade, como dizia Foucault.

 

 

 


REFERÊNCIAS

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Os impedimentos da memória. Estudos avançados, 34 (98), 2020. Disponível em: SciELO – Brasil – Os impedimentos da memória Os impedimentos da memória Acesso em: 12 de setembro de 2022.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

LULA. Discurso de Lula em São Bernardo. Disponível em: Leia a íntegra do discurso histórico de Lula em São | Política (brasildefato.com.br) Acesso em: 12 de setembro de 2022.

LULA. Debate na Band. Resposta à candidata Soraya Thronicke do União Brasil. Disponível em: Leia a transcrição do debate presidencial da “Band” (poder360.com.br) Acesso em: 12 de setembro de 2022.

LULA. Debate na Band. Resposta à Jair Bolsonaro. Disponível: Leia a transcrição do debate presidencial da “Band” (poder360.com.br) Acesso em: setembro de 2022.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Lula no 1º de Maio das Centrais Sindicais, em São Paulo, 2022. PT.org.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Piero Detoni

Historiador, professor e psicanalista. Graduado e mestre em História pela UFOP, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História pela UNICAMP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UFRRJ com bolsa Faperj Nota 10. Em sua tese de doutorado, abordou a experiência historiográfica no IHGB na Primeira República. Estuda, atualmente, a recepção da filosofia de Friedrich Nietzsche no Brasil. Tem interesse nos seguintes temas: Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual, História da Leitura e da Recepção, Ensino de História, além de História do Brasil Republicano e História Moderna e Contemporânea.

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