Luiz Inácio Lula da Silva: um estadista em tempos de crise democrática

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Eu não tenho espaço para ódio. Eu não tenho espaço para vingança. Eu não tenho espaço para não acreditar que o amanhã vai ser melhor.

Luiz Inácio Lula da Silva

Não sou esperançoso por teimosia, mas por imperativo existencial e histórico.

Paulo Freire

Em momentos como o que vivemos, em que assistimos os desdobramentos de uma grande onda conservadora e autoritária, iniciada no final da década de 2010, que atravessou o mundo, nos parece importante, sendo uma mensagem do Brasil para o mundo, o retorno de um estadista para o cenário não apenas brasileiro, mas internacional. Trata-se de Luiz Inácio Lula da Silva.

Um estadista, em uma breve definição orientadora, seria aquele que é possuidor, de uma forma ou de outra, de atributos que entram em ação justamente em momentos de crise. E no caso falamos de um momento decisivo de crise democrática, como a que acompanhamos em nosso país.

Para que não pareça um exagero basta que notemos a fala final de Bolsonaro no debate para presidenciáveis realizado pela Rede Globo de Televisão, em que o atual mandatário do executivo mobiliza um conhecido lema fascista: “Deus, pátria e família”.

O estadista Luiz Inácio Lula da Silva, aquele que se vale da astúcia e da inteligência, somada a capacidade de liderança democrática, enfrenta esse desafio. Em um momento que ainda vivemos o impacto de cerca de 686 mil mortes por covid, em que as famílias ainda não conseguiram elaborar o luto adequadamente, tamanha a banalidade da morte; em que a fome assola o país, em que há o desmonte da pesquisa e da educação, nos mais variados níveis; em uma quadra onde as condições climáticas estão em estado alarmante, com desmatamentos nunca antes vistos; em que se verifica a perda das conquistas trabalhistas, e a “uberização” dos postos de trabalho; em que se chega ao ponto de imposição de sigilos nas investigações, chegando até a um século; em que se defende o uso (e a liberação indiscriminada) das armas; em que a corrupção é um modus operandi. Dissertaria, em tom de denúncia, páginas e páginas acerca da atual conjuntura política.

Um momento surreal, é preciso dizer, em que o primeiro presidente realmente vindo do povo, representante dos desfavorecidos, é hipocritamente acusado como ladrão. Justo aquele responsável pelo maior processo de inclusão social visto nesse país. Isso sem contar que Lula possui todas as prerrogativas jurídicas para se candidatar e ser/agir livremente. Criminoso é quem o difama dessa maneira. Não é demais lembrar que a aprovação do presidente, ao final do seu segundo mandato, alcançava o patamar de aproximadamente 85% de aprovação, uma evidência, que vale ressaltar, da eficiência do seu governo, aclamado mundialmente. Para enfrentar essa situação Lula transforma-se, então, em um estadista, mesmo que esse traço já o acompanhe desde muito tempo, potencializando-se na atual conjuntura como a esperança de um futuro democrático.

A figura do estadista, não sendo Lula um caso único na história, emerge, justamente, em situações como a atual, em que a sociedade, a política e a economia experimentam um alto grau de crise, mas que sinaliza, de outro modo, esforços de transformação. Ela surge em períodos como esses, em que parece se abrir uma temporalidade não apenas cronológica, mais ligada à kairós: uma temporalidade de oportunidades. Lula como estadista, mais do que gestor ou dirigente político, e ele não atua isoladamente, torna-se aquela figura pública capaz de reunir um coro de vozes, muitas delas emudecidas, com a habilidade necessária para compreender e para assimilar a chance de antecipação de um movimento da sociedade, e no caso em escala global.

Luiz Inácio Lula da Silva se reveste com a armadura do estadista democrático. Pensando em uma equação social, podemos argumentar, no limite, que a história opera uma lógica em que se percebe a dialética entre economia, sociedade e cultura, atrelada aos horizontes de liberdade de reflexão por parte dos sujeitos, mas que pode levar a certa incapacidade de enfrentamento das oportunidades e dos desafios. Isso oferece a abertura para a emergência do estadista e do seu agir comunicativo político e social. Lula aparece como um líder democrático, sendo a sua voz (e que voz!) a dos excluídos, dos marginalizados e dos emudecidos, que em plena crise social, econômica e política se projeta com coragem de verdade para encarar os mais variados segmentos da elite do país com o intuito, e Luiz Inácio é um sonhador, na melhor acepção do termo, de fazer o país se reencontrar social e democraticamente, além de se movimentar em busca de uma exitosa política econômica (inclusiva e redistributiva). Não custa lembrar, à título de dados mesmo, que no período em que esteve na presidência o Brasil tornou-se a 6º maior economia do mundo. E esse parecer não implica, sendo isso importante sinalizar, a desarticulação com setores das elites e da classe média democrática.

Interessante pensarmos três movimentos que podem ser realizados por um líder político. E o líder é, aqui, entendido não como um guia, mas como um representante, pensando na dimensão mais profunda da noção de representação. Existem aqueles que se antecipam aos movimentos da sociedade, outros acompanham e há, também, aqueles que olham para trás estrategicamente. Acreditamos que não seja difícil perceber que a maioria se encontra na segunda categoria aludida, concordando com Bresser-Pereira. O Estado, é possível apontar e perceber isso, aparece como uma expressão, um sintagma talvez, da própria sociedade, com as suas virtudes e as suas vulnerabilidades, sendo o governante um elo com produtos “médios” da sociedade. Lembrando que o atual presidente obteve uma margem expressiva de votos. O Estadista, mais do que acompanhar, transcende e se sobrepõe à cultura que o produziu. Aí está a força de Lula.

O caso de Bolsonaro é daqueles que são marcados pela incompetência, pela arrogância, pela desumanidade; incapaz de atuar republicanamente, em que as piores decisões se tornam naturais, em que se banaliza o mal, algo muito além de equívocos, causando perdas irreparáveis para o povo. Um estadista autêntico, como Luiz Inácio Lula da Silva, aparece apenas sob o signo de kairós tamanha a sua raridade. Lula como estadista é aquele capaz, até resgatando um sentido moderno, de antecipação, intuitiva ou proposital, de antever, pela astúcia, o sentido geral dos acontecimentos na duração, na medida em que é capaz de operar as melhores alianças para o momento, tanto internas quanto globais, sabendo, ainda, lidar com o sentido de decisão; em que, de forma meditada, se percebe o que é urgente e o que pode ser deixado necessariamente para um segundo momento.

Lula é estadista pela sua capacidade de escuta, ouvindo todas as vozes, de todos os lugares. Mas as decisões, ao final, são suas, assumindo a responsabilidade por elas. O seu movimento, o seu critério, de uma forma ou de outra, não é subjetivo; não é a busca pelo poder de cariz pessoal, se distanciando de um messianismo, de um carisma fake ou de um populismo caricato, mas se projetando para o vislumbre de um futuro em aberto.

A coragem de Lula, e a sua parresia é impressionante, de desafiar esses problemas não significa, vale lembrar, que existe a visão pronta da sua missão. E muito menos que seus períodos como governante tentam sido um paraíso edênico. Não é isso. Luiz Inácio Lula da Silva como um estadista, pensando em sua formação política, foi em busca do perfectível, não do perfeito. Em um movimento incompleto, com fragmentos, mas que foi sendo, chegando a um ponto decisivo nesta primavera, que ele mesmo anunciou em sonho, completada aos poucos, democraticamente, unidos vozes, liberando outras, por uma espécie de tentativa e de erro, refazendo os caminhos conforme as oportunidades e desafios. Não é por acaso que Luiz Inácio Lula da Silva se vale de Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, para orientar a sua ação política: a convivência com os diferentes para que se possa melhor lutar contra os antagônicos. Por isso Lula é, sim, um estadista!

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BOTTINI, Pier Paolo; CARVALHO, Marco Aurélio; RENAULT, Sérgio. Afinal, Lula é inocente? Juriconsultor jurídico, 19 de setembro de 2022.

FOUCAULT, Michel. Coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.

JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaios de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.

PEREIRA-BRESSER, Luiz Carlos. Getúlio Vargas: o estadista, a nação e a democracia. Textos para Discussão da Escola de Economia de São Paulo da FGV, São Paulo, número 1, p. 1-28, 2009.

RAMALHO, Walderez. Reinterpreting the “times of crisis” based on the asymmetr y between chronos and kairos. História da historiografia, Ouro Preto, vol. 14, n. 35, p. 115-144, 2021.

Piero Detoni. Professor de História formado na UFOP. Doutor em História Social na USP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UNICAMP.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Central Unica dos Trabalhadores. CUT, Brasil.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Piero Detoni

Historiador, professor e psicanalista. Graduado e mestre em História pela UFOP, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História pela UNICAMP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UFRRJ com bolsa Faperj Nota 10. Em sua tese de doutorado, abordou a experiência historiográfica no IHGB na Primeira República. Estuda, atualmente, a recepção da filosofia de Friedrich Nietzsche no Brasil. Tem interesse nos seguintes temas: Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual, História da Leitura e da Recepção, Ensino de História, além de História do Brasil Republicano e História Moderna e Contemporânea.

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