E a história continua…

O texto a seguir foi apresentado em praça pública, em evento organizado pelos estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto, mas aberto ao público, na tarde de quarta-feira, dia 08 de junho de 2016, na Praça da Sé, em Mariana-MG, por volta das 17 horas. Agradeço aos alunos do curso de Graduação em História da UFOP, em especial Patrick Morenghi e Rafael de Barros, pelo convite e por permitirem que o evento acontecesse diante de aproximadamente cem pessoas. Agradeço, igualmente, aos colegas que prestigiaram a aula pública, em particular o Marcelo Abreu (que também ministrou aula na Ágora marianense ao meu lado) e Mateus Henrique de Faria Pereira – este último, leitor crítico da versão em texto e firme incentivador da sua publicação.

 


 

Me convidaram para falar como professor de história. Para pensarmos um pouco sobre autoritarismo no Brasil e sobre o atual cenário político. De início, eu me perguntava, como começar uma aula pública? Digo, como me dirigir às pessoas em plena praça pública? Nós, professores, em todos os níveis, ficamos um tanto desconcertados na praça. Na realidade, ficamos constrangidos fora de nosso espaço de trabalho, e um tanto demasiadamente familiar, é verdade, que é a sala de aula.

Os gregos antigos definiam que a Ágora seria a esfera, por definição, do político, da manifestação das opiniões e da prática efetiva da política. Eles possuíam, é verdade, um entendimento muito mais ampliado e sofisticado de política, filosofia entre outros conceitos. A noção de política contemporaneamente tão usual entre nós, na sociedade brasileira pelo menos, é muito mais restrita, encerrando a dimensão da política numa espécie de trabalho partidário (ou “doutrinário”), análogo ao trabalho dos muitos proselitismos de ontem e hoje. Nesse sentido, o político e o educacional passam a ser vistos como coisas distintas. Somente se encontram pela ação da má-fé, pelo trabalho de alienação e a promoção de boatos e mentiras. Evidentemente absurda, tal concepção tem ganhado muita atenção através de movimentos como o Escola Sem Partido e congêneres. Essa concepção é uma derivação perigosa e deveras limitadora do que entendo tanto como política como por educação. O ser “apolítico” dos nossos contemporâneos reivindica para si posição solar da crítica, engajando-se em um discurso efetivamente moralista, prescritivo, totalizador e normativo: pretensamente acima do bem e do mal. Em suma, o apolítico é absolutamente político. Mas exclui qualquer posicionamento que não lhe seja idêntico ou análogo. É autoritário. Faz pronunciamentos, não quer saber de debates. Assim, consegue apenas acionar uma concepção de política esvaziada de valores republicanos e democráticos mínimos e, o que me preocupa ainda mais, seus valores não são orientados por uma ética inclusiva, mas por uma moral tirânica.

Minha fala hoje, na arena pública, na condição de professor, historiador e educador será política sem com isso reduzir meu discurso a qualquer dos elementos “condenados” pelo referido movimento ideológico ou partidário. Sim, pois apesar de se dizer “sem partido”, o referido movimento é não apenas partidário como ideologicamente conduzido sem nenhum cuidado com a educação, ou pior, com enorme desprezo à figura dos educadores e educadoras brasileiras.[1] Desta forma, optei por me dirigir aos amigos na condição de professor de história e historiador de modo menos formal ou teórico.

Quando se fala em golpe hoje em dia, de um golpe “brando” (ou “suave”), “palaciano”, “midiático-jurídico-parlamentar” (etc.) que depôs a presidente eleita democraticamente sob o pretexto de um impeachment no qual o crime de responsabilidade não ficou plenamente comprovado, muitas vezes o que vem à mente é o ano de 1964. Ano do Golpe civil-militar que inaugurou uma Ditadura Militar, entre 1964 e 1985, que tinha enorme apoio social. Não está errada essa leitura. Mas eu gostaria de aprofundar um pouco mais esse elemento histórico de nossa apreensão do contemporâneo. Sendo assim, opto aqui por tratar de um nome e uma trajetória. A partir de elementos da biografia desse homem, um “ilustre” político mineiro, eu pretendo ilustrar o que me parece estar em jogo no cenário brasileiro contemporaneamente quanto ao problema da democracia, do autoritarismo, do golpe, e dos muitos pactos que organizam e viabilizam a permanência das figuras públicas da política no país.

O nome dele era Francisco. Um “Chico da Silva” como tantos de nós, centenas de milhares de brasileiros, certo? Errado. Francisco Luís da Silva Campos nasceu em Dores do Indaiá (na então Província de Minas Gerais), filho de seu Jacinto e dona Azejúlia. Cresceu em meio a uma família de renome e prestígio no município de Pitangui. Tradicional família mineira. Desde a febre aurífera do século dezoito, sua família, pela parte do pai, instituiu poderosos nomes na política, economia e sociedade local e mineira. Seu tio-avô, Martinho da Silva Campos, foi Ministro do Império, o que diz muito sobre sua família: elite política, econômica e socialmente prestigiosa na região. O nome Campos se estendeu ao longo dos séculos dezenove e vinte, tendo em Francisco um de seus diletos representantes na política local e nacional. Na terra em que o adágio popular diz “pau que bate em Chico não bate em Francisco”, não se poderia dizer que esse Francisco Campos era mais um “Chico”.

Campos nasceu com nossa República, por assim dizer, no ano de 1891. Foi contemporâneo da primeira constituição republicana, elaborada no pacto entre positivistas e muitos republicanos de primeira hora (como o militar monarquista, Marechal Deodoro da Fonseca, ou o patriarca da República, igualmente monarquista, Benjamin Constant), e os republicanos históricos, que depuseram em uma quartelada, um golpe militar se quisermos, o regime imperial, em nome da ordem e do progresso, da união e integração nacional. Como parte de uma elite muito ciosa de sua distinção e exclusividade, “Chico” Campos foi educado em parte no interior da casa da família, onde recebeu os sólidos valores da hierarquia e da autoridade patriarcal que o formaram quando foi estudar em Sabará, Ouro Preto e, posteriormente, Belo Horizonte – onde se tornaria “doutor”. Elite que se via como responsável exclusiva pela condução das coisas do país.

Não se deve esquecer que Minas Gerais e São Paulo ocupavam posições importantes na esfera de decisões políticas da jovem república brasileira. Ouro e Café das poderosas oligarquias, famílias abastadas e imbuídas do desejo de manter-se no topo a partir dos partidos republicanos locais. Em 1898, o Presidente Campos Salles, um paulistano, redefiniu o pacto fundador da república numa nova “política dos Estados”. Posteriormente apelidada de “política do café com leite”,[2] esse novo pacto era um jogo mais do que uma rotina. Ele tinha regras e amparava-se no medo mútuo (mais do que no respeito), quanto às eleições (frequentemente fraudadas) redefinindo os rumos da política nacional a todo instante a partir “das mãos” dos jogadores.[3] A república costurava suas decisões por cima do povo. Sempre que estes “Chicos” se manifestavam politicamente eram violentamente reprimidos pelas hostes republicanas. O massacre de Canudos (1896), imortalizado sob a pena de Euclides da Cunha, representa um pequeno caso, nada isolado, da opressão ao povo como vontade das elites políticas. As primeiras greves e movimentos sociais somente ganhariam mais força e organização no início do século vinte. Mas as elites econômicas e políticas da época e seus partidos “republicanos” continuavam decidindo as sucessões presidenciais, os modelos econômicos e os caminhos da tão sonhada modernização da ordem e do progresso.

Já na moderna capital mineira, Francisco Campos estudou na Faculdade Livre de Direito, como ademais grande parte de seus contemporâneos. Formou-se bacharel com o “mérito” que se esperava de alguém tão privilegiado. Inclusive, o caminho natural destes bacharéis (os interesses “naturais”) seria a vida política do seu estado e, posteriormente, da República. Em 1910, na formatura, Campos proferiu um importante discurso em homenagem ao ex-Presidente Afonso Pena, um ilustre mineiro falecido um ano antes. Consta que seu discurso foi coroado pelas “proféticas” palavras: “O futuro da democracia depende do futuro da autoridade. Reprimir os excessos da democracia pelo desenvolvimento da autoridade será o papel político de numerosas gerações”.[4]

Campos iniciou sua atuação na vida pública na condição de Deputado Federal no ano de 1921, pelo Partido Republicano Mineiro (PRM). Foram dois mandatos consecutivos. Aliou-se a Epitácio Pessoa e Arthur Bernardes. No ano de 1922, foi um dos mais ferrenhos críticos do movimento tenentista e os “18 do Forte de Copacabana”. Para ele, eram baderneiros e “anarquistas”. No ano de 1929, diante da evidente “quebra” do pacto intraoligárquico – o que também pode ser compreendido pelo próprio esgotamento do modelo político de Campos Salles –, o então Presidente Washington Luís (de São Paulo) em vez de apoiar um candidato do PRM, como mandava o pacto, recomendou outro paulistano para o cargo máximo do Poder Executivo. Ele foi um dos responsáveis pela campanha de um novo candidato, de fora do eixo São Paulo-Minas Gerais. Oriundo das hostes tenentistas do Rio Grande do Sul e apoiado pelas oligarquias “mais fracas”, sedentas por uma participação maior na política nacional, a campanha do ex-ministro da Fazenda de Washington Luís foi lançada pela Aliança Liberal, fundada no Rio de Janeiro com o chamado Pacto do Hotel Glória, cujas esperanças depositavam-se sobre um jovem gaúcho de São Borja chamado Getúlio Dornelles Vargas.

Derrotados nas urnas por Júlio Prestes ainda em 1929 Vargas e a Aliança Liberal articularam-se em torno de um novo pacto, mais uma vez em torno das elites oligárquicas (agora, dissidentes do pacto anterior) e militares de alta patente. O assassinato de João Pessoa, que seria o vice-presidente de Vargas, serviu de pretexto para um novo golpe, em outubro de 1930, que encerrava o ciclo, ou o pacto, oligárquico anterior. O novo pacto colocou Vargas no poder, apoiado por representantes das oligarquias e elites urbanas, mas agora sob um modelo mais centralista de governo. Campos estava presente nesse governo. Foi nomeado Ministro do recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) e foi o responsável pela Reforma Educacional de 1931 que buscava centralizar sob a esfera de atuação do Governo Federal as diretrizes que regulariam a educação brasileira. Ele também ajudou na criação da famigerada Legião de Outubro – que se dizia “uma agremiação de patriotas ligados indissoluvelmente por vínculos morais e só animados da aspiração de trabalhar pelo Brasil”. Na realidade, nada mais era do que uma facção política regional fundada por Campos, Gustavo Capanema e Amaro Lanari em Belo Horizonte. Típica associação paramilitar (composta por trogloditas fascistoides) de apoio radical ao Governo Provisório e de perseguição violenta aos seus opositores, como por exemplo, os integrantes da antiga legenda política de Francisco, o PRM.

Campos deixou o MESP em 1932. A revolução constitucionalista em São Paulo agitou as coisas no então Distrito Federal (Rio de Janeiro). A derrota do violento movimento assegurou a confecção de uma nova Carta Magna em 1934: novo pacto. Apesar do evidente descontentamento de Vargas com o texto constitucional, este foi aprovado e um novo corpo ministerial empossado. Neste, Gustavo Capanema figurou com punho de ferro como Ministro da Educação. Em 1935, após a Intentona Comunista, o Distrito Federal passou por mudanças drásticas. Anísio Teixeira, então Secretário de Educação da Prefeitura de Pedro Ernesto e um dos pioneiros da Escola Nova, foi para o exílio: fora acusado de ser um dos comunistas envolvidos na Intentona. Foi novamente nomeado para a pasta da Educação, agora no Distrito Federal. Um estado de sítio tomou conta do Brasil. Foi promulgada a Lei de Segurança Nacional. Pedro Ernesto foi preso em seguida por Filinto Müller.

Francisco Campos, Azevedo Amaral e Oliveira Vianna formaram a trinca de ouro do pensamento autoritário brasileiro: uma espécie de think tank. À época deste pacto, que entraria em vigor com outro golpe de Estado, em 1937, os autores tiveram papéis importantes no projeto político autoritário como alternativa ao liberalismo oligárquico e ao comunismo em alta no mundo. Dois dias antes do golpe que deu nascimento ao Estado Novo, Francisco Campos foi nomeado Ministro de Justiça e um dos responsáveis pela redação da nova carta constitucional de 1937. Novo pacto que legitimou e institucionalizou o novo golpe entre as elites. Que incluiu integralistas (inicialmente) e a alta cúpula das armas no Brasil, e que colocou no poder uma figura “carismática”. O centralismo do Poder Executivo sobre os demais poderes, tanto o Legislativo (abolido com o fechamento do Congresso em 1937) e o Judiciário (silenciosamente conivente), deram início a um período de ditadura e repressão. A propaganda oficial, controlando jornais e rádios, estava nas mãos de Lourival Fontes (à frente do Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP). A educação, as artes e a cultura sitiadas sob um autoritário Capanema. A violência de Estado, a repressão e a tortura eram o modus operandi da polícia de Vargas, chefiada por figuras como Filinto Müller (Chefe de Polícia e, posteriormente, Oficial de Gabinete do Ministério da Guerra). Tanto Müller quanto Fontes eram assumidamente admiradores do nazi-fascismo europeu de Adolf Hitler e Benito Mussolini, bem como seu aparato de repressão e propaganda.

O período em que esteve no Ministério da Justiça foi marcado por grande repressão política. Prisões de comunistas, antifascistas e opositores de Getúlio se intensificaram desde 1935. Depois de maio de 1938, mesmo os integralistas que inicialmente apoiaram Getúlio e o golpe do Estado Novo foram presos, incluindo seu líder, Plínio Salgado que apoiara o golpe inicialmente. As polícias estaduais foram reforçadas e equipadas com novos aparatos e verbas não declaradas.

Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, e o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo, em janeiro de 1942, o Estado Novo começou a dar sinais de desgaste. Campos foi um dos que sentiram o chão tremer sob seus pés e, novamente, mudou de posição, aconselhando Getúlio a pactuar uma abertura maior para a imprensa; a assumir postura “mais democrática” – algo claramente desprezível para o caudilho. Em janeiro de 1943, com a morte de Afrânio de Melo Franco, Francisco Campos foi nomeado por Getúlio para substituí-lo na presidência da Comissão Jurídica Interamericana, organismo internacional sediado no Brasil e presidido por um representante do governo brasileiro. Pouco depois, Francisco Campos sugeriu ao Ministro da Guerra que a Constituição de 1937 fosse “emendada” e convocada uma nova assembleia para, ou aprovar essa Constituição emendada, ou substituí-la por uma nova. O general Eurico Gaspar Dutra, que apoiou o Golpe de 1937, aprovou plenamente as recomendações de Campos. Ao lado do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio de Getúlio, Alexandre Marcondes Filho, e do General Góis Monteiro, outro apoiador histórico de Vargas (em 1930 e 1937), Campos produziu um documento que propunha a realização de um plebiscito em lugar da convocação de uma constituinte, eleições diretas e a “indicação de Vargas para um novo período”. O documento foi entregue a Getúlio em 22 de fevereiro de 1945.

A realização de eleições gerais no Brasil foi oficialmente anunciada e seis dias depois a Lei Constitucional nº 9 de Campos foi promulgada. Apelidada de “Ato Adicional”, ela previa eleições com data a ser marcada dentro de noventa dias. O Ato Adicional foi classificado pelos jornais como uma reforma nos “moldes fascistas” e foi publicamente condenada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As manifestações sociais começaram no dia 2 de março, a partir de dezesseis professores da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual UFRJ), que acusaram de ilegítimas tanto a Carta de 1937 quanto a Lei Constitucional nº 9. A resposta de Francisco Campos veio no dia seguinte, sob a forma de uma entrevista ao diário O Jornal, do Rio de Janeiro. Ele defendeu a Carta de 1937 que ajudou a redigir, afirmando que ela não seria “fascista” como a acusavam. Defendera que os excessos do Estado Novo não seriam culpa da Carta. Defendeu que a carta seria “pura” e jamais fora implementada de fato. Campos aproximou-se claramente dos Generais que apoiaram o golpe de 1937, especialmente Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, e que naquele momento ajudavam a derrubar Getúlio. Para Campos, se Vargas tivesse ouvido mais a estes representantes das armas do Brasil, a situação poderia ter sido diferente.

Ainda em 1945, José Américo de Almeida deu uma entrevista bombástica ao Correio da Manhã. Publicada a entrevista, a censura à imprensa levava um golpe fatal. O Estado Novo deu seu último suspiro na véspera do aniversário da chamada “Revolução” de 1930, em 29 de outubro de 1945. O General Dutra venceu as eleições e assumiu seu mandato em 1946, apoiado por um descontente Getúlio Vargas. Campos assumiu o seu lugar no golpe militar que derrubou Vargas e o Estado Novo que ajudou a construir.

Francisco Campos ficou afastado da vida política até a década de 1950. Permaneceu à frente Comissão Jurídica Interamericana até 1955, flertando com as novas ideias, até mesmo as liberais que emergiram no cenário político brasileiro após o fim do Estado Novo. Em 1953, convidado pelo governador mineiro, o jovem médico Juscelino Kubitschek, a discursar em Ouro Preto (MG) nas comemorações da morte de Tiradentes, definiu sua nova postura “liberal”: ele seria contra a ideia de “entendimentos e conchavos políticos” e mostrou-se em defesa das condições “essenciais a uma vida pública decente”: a variedade, diversidade e multiplicidade das correntes de opiniões individuais, de grupos e de partidos como condições ao funcionamento de um regime plenamente democrático. Depois de uma ditadura, era fácil e desejável ser democrático.

Pois bem, para encurtar a história: todos sabemos que Vargas retornou ao poder em 1951, eleito democraticamente. E Campos, mais uma vez, conspirou contra ele em 1954. E conspirou contra Juscelino Kubitschek, também, em 1955. Contra Jânio Quadros, em 1960, e contra João Goulart em 1961, em 1963 e 1964, conforme revelação reportada pela revista Veja (em 30/10/1968). Em 1964, após apoiar o novo golpe de Estado, Campos contribuiu para endurecer a Ditadura Militar, nomeadamente, ajudando na redação dos Atos Institucionais de número I e II. No ano de 1967, Campos foi o responsável pela Constituição. No clima do momento, Campos dizia abertamente que governar significava “mandar prender”. Sendo assim, após a atualização de Golbery do Couto e Silva da Doutrina de Segurança Nacional (originada em 1935 – contra a ameaça comunista), a prisão não era mais entendida como caso de justiça, mas “degredo” ou pior. A tortura continuava como norma e modus operandi da doutrina da guerra total. Cada vez menos haveria direitos. Ou ainda, para dizer como alguns de nossos contemporâneos, os direitos humanos seriam privilégios daqueles que fossem “humanos direito”, coisa para os “cidadãos de bem”, não para os(as) demais. A vigília contra o “perigo” comunista deveria, pensava-se à época, organizar a política e a segurança nacionais.

Francisco Campos morreu dia 1º de novembro de 1968. Pouco mais de um mês depois foi baixado o Ato Institucional de nº 5, do qual participou também, no qual a prática do “mandar prender” e a suspensão do habeas corpus mudou completamente o cenário já desastroso da Ditadura Militar.

O que esta trajetória tem a nos dizer sobre o Brasil de hoje? Sem dúvida, essa trajetória não foi única. Pelo contrário, o que ela permite é que pensemos, metonimicamente, as continuidades na esfera das instituições políticas brasileiras: figuras autoritárias, seus pactos, seus golpes, as muitas conciliações que caracterizam nossa história política republicana. Novos golpes, novos governos e sempre os mesmos setores da sociedade, às vezes os mesmos atores por décadas. Eles se reinventam, conspiram contra seus rivais atuais, mesmo que sejam antigos aliados, mudam de ideia e voltam ao ponto original etc. 1889/1891; 1930; 1937; 1945; 1954; 1961; 1963; 1964; 1967; 1968; 1988; 1992; 2016… Pactos fundadores do mesmo, apesar das diferenças (que existem).

Para compreender o cenário político atual, não se deve, penso, recorrer aos dicionários de ciência política convencionais. Se o fizermos rigorosamente, não poderemos definir o que aconteceu no ano de 2016 como golpe de estado, pois não houve ruptura institucional. Mas, à luz desta trajetória política, e de um político, como não pensar em mais um de nossos golpes (rearranjos de pactos e alianças entre as elites)? Creio ser preciso entender, antes, o nosso autoritarismo não é fruto de 1968, ou de 1964; nem de 1937 ou 1935. Nosso pragmatismo; nossa colonialidade; o peso da escravidão que ainda está sobre nossos ombros; o descaso das elites; o desprezo pelo pobre, pelo nordestino, pelo “Outro” no interior dos ideais de uma civilização “de empréstimo”, para dizer como Euclides da Cunha. É preciso compreender as conciliações, os pactos e seus atores, bem como as muitas contas a se pagar, essas sim sempre socializadas “fraternalmente”, ou quase para entendermos a história do golpe de 2016.

A abolição da escravidão pôs fim à instituição da discriminação racial e social dos ex-escravos negros na sociedade brasileira? A proclamação da República inaugurou uma era moderna, ela pôs fim à sociedade desigual de privilégios? A chamada Revolução de 1930 pôs fim à República Oligárquica? O Golpe de 1964 pôs fim à Era Vargas? A Abertura “lenta, gradual e segura” encerrou o Regime Autoritário entre nós? A chamada Constituição “cidadã”, de 1988, encerrou ou deu sequência ao modelo da Carta de 1967? Entender o atual cenário político brasileiro exige de nós pensarmos nas continuidades. Nos muitos “Franciscos” que permanecem na arena política, nos outros tantos “Chicos” que desapareceram e desaparecem. É claro que não se trata de dizer que foi “culpa” do Francisco Campos, ou de mais de um, mas pensar que a cultura política que se cristalizou entre nós sustenta-se sobre uma estrutura poderosa e bem sedimentada de continuidades. As grandes mudanças políticas foram conduzidas pelos mesmos atores, dos mesmos segmentos de nossa sociedade. Também não significa desconsiderar as mudanças, a singularidade dos fenômenos históricos, mas pensar as continuidades que se esgueiram, sorrateiramente ou não, por entre as mudanças e os pactos… Até para que consigamos redimensionar as mudanças em termos de sua capacidade para uma transformação efetiva da realidade; se conseguem destronar os valores e práticas profundamente arraigados entre nós. Assentados por séculos de experiências e certezas concretas de que as coisas não mudam, porque as forças de conservação as mantêm exatamente onde querem.

Quando me perguntam se a democracia brasileira está em risco hoje, em pleno ano 2016, eu lhes digo: e quando não esteve? Talvez em nossa imaginação, no desejo, por vezes sincero, de uns poucos homens e mulheres de ação, quase sempre fragorosamente derrotados pelos novos pactos. Autoritarismo, violências, exclusão, ódio ao Outro, individualismo, egoísmo, distinção e desigualdade, ambição cega etc. Em nome dos pactos, da moderação, da conciliação nacional, da consolidação das instituições, não importando se à esquerda ou à direita, transige-se com golpes, sejam eles “brandos”, “palacianos”, “institucionais”, “conluios”, “trapaças”, “traições”…

Democracia não se ensina. Democracia é parte cotidiana de uma experiência coletiva. É um conjunto de experiências e horizontes compartilhados através de uma prática diária que somente pode ser aperfeiçoada enquanto nossas instituições e vontades assim o permitirem. Ela não está dada ou garantida, nunca. Não é conquistada em algum ponto do passado e tudo está resolvido para todo sempre. Ela precisa ser conquistada e aperfeiçoada de novo e de novo, e novamente, diariamente, nas práticas coletivas e individuais. As forças contrárias a ela, como vimos, estão sempre à espreita, novos pactos estão sempre sendo feitos. No caso brasileiro, a democracia é uma prática incipiente, não aprendemos ainda a confiar nela, a acreditar que é possível termos um lugar nela. Nesse sentido “somos conservadores”. Não por convicção ideológica, mas por hábito e inércia. Hábito de sentir medo. Acreditamos na experiência concreta acumulada e nela depositamos nossa fé: nada de apostar no diferente; o diferente é uma eterna ameaça já que é sob a sombra do medo que nos organizamos. Democracia ainda não foi consolidada como um valor para grande parte de nossa sociedade, que vive ainda sob o medo mais fundamental: isso gera a inércia. Em nossa trajetória como nação republicana, a democracia jamais conseguiu manter-se de pé diante dos muitos golpes que o autoritarismo que trazemos inscritos em nosso “DNA” social. Democracia é difícil, não combina com desigualdade, injustiça social, racismo estrutural e discriminação. Democracia dá trabalho; e democracia não se faz com o medo. Romper a inércia também exige enorme esforço. Pactuar em meio às incertezas da rotina tornou-se parte da nossa experiência, tornou-se fácil; talvez, fácil até demais de fazer e desfazer pactos – hoje com a cara mais deslavada do mundo, “com Supremo com tudo” como dizem. Democracia é quase sempre tolerada se e quando não perturbe as estruturas (dos) pactuantes. Quando bagunça o “coreto” dos conciliadores, dos privilegiados; clangores de panelas ressoam ao vento. Não na praça pública, claro, mas nas sacadas e janelas da casa que educa seus filhos segundo os valores de formação patriarcal, como aquela do Francisco Campos, nos sobrados, palacetes, apartamentos, coberturas e condomínios privados. Novo pacto? Sim, por favor. Comemora-se o novo golpe como se fosse um carnaval. Como no clichê das chanchadas da Atlântida, no cinema brasileiro da década de 1950, que sempre terminavam em uma caricatura do Carnaval. Depois disso a ordem se restabelece… Será?

O autoritarismo atravessa de cima a baixo nossa sociedade: a voz dos cidadãos ditos “de bem”, moralistas de ontem e hoje, homens de família, tementes a Deus, e de mulheres “belas, recatadas e do lar” reclamam seu quinhão no pacto até sentirem-se satisfeitos(as) ou ressentidos(as). Distintos, portanto, da “patuleia ignara”, da “canalha”, do “povão” – igualmente incerto sobre o que seria essa tal democracia. Na dúvida, melhor ficar quieto. A ética dos três macaquinhos, não ver, não ouvir, não falar. No final, todos tem medo. E com medo, só confiamos na violência e na truculência como força de ação. Reclamam pela existência do pacto que lhes asseguraria o lugar ao sol que imaginam ter ou ser “o seu”, por algum “direito natural”, ou apenas por hábito. Lugar cativo que encontra a cumplicidade e o silêncio conivente da Justiça togada na ordem já conhecida. Com isso, o autoritarismo nosso de cada dia continua a grassar. A história continua… Resistir é preciso.

 


 

NOTAS

 

[1] Sobre o Movimento Escola Sem Partido, ver o excelente artigo de Demian Melo (UFF), em: <http://blogjunho.com.br/escola-sem-partido-ou-escola-com-partido-unico/>, acesso em 06 jun. 2016. Ver também a entrevista de Fernando Penna (UFF) no qual ele analisa o fenômeno do ódio ao professor no Brasil: <https://liberdadeparaensinar.wordpress.com/2015/09/18/o-odio-aos-professores/>, acesso em 6 jun. 2016.

[2]As pesquisas de Cláudia Viscardi são fundamentais para desmistificar essa ideia da “política do café com leite” como a rotina da política na Primeira República. VISCARDI, C. O teatro das oligarquias: uma revisão da política do café com leite. 2ª ed. Belo horizonte: Fino Traço, 2012.

[3] Segundo Negro e Brito, em carta do presidente da Câmara dos Deputados, Arnolfo Azevedo, ao presidente Washington Luís, tratava-se de um vínculo entre os jogadores cujo se desfazer implicaria no fim do próprio “jogo”. “No baralho político há três ases e três reis. (…) Quem vai dirigir o jogo precisa ganhar a partida e para ganhá-la é indispensável ter dois ases e um rei” (sendo os ases Minas, São Paulo e Bahia, e os reis Pernambuco, Rio e Rio Grande do Sul). “Sentar-se à mesa do jogo sem contar com esses trunfos é arriscado e quem tiver a maioria absoluta dos seus valores  fará, não só um governo bom, mas ótimo e fácil” (Carta, 26-4-1926. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Arquivo Washington Luís. Caixa 188, pasta 1, documento 56) apud NEGRO, Antônio Luigi e BRITO, Jonas. “A Primeira República muito além do café com leite”. TOPOI, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 197-201. p.200-201.

[4] Todas as informações de cunho biográfico sobre Francisco Campos foram consultadas em: <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CAMPOS,%20Francisco.pdf>, último acesso em 06 jun. 2016.

 

SOBRE O AUTOR

Andre de Lemos Freixo

O pesquisador é Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012). É Professor Adjunto no Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (DEHIS/UFOP) e do Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição, vinculado à Linha de Pesquisa "Ideias, Linguagens e Historiografia", no qual trabalha com as seguintes áreas de interesse: História da Historiografia Brasileira, História do Brasil Republicano, História Pública, Teoria e Filosofia da História. Nesta instituição também é pesquisador integrado ao Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM), no qual figurou como Coordenador no biênio 2014-2016. Coordena ao lado de Marcelo Rangel o Grupo de Estudos em História, Ética e Política (GHEP/NEHM). Atualmente, é Diretor de Publicações da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e Visitant Scholar na Universidade de Manchester (UK), onde desenvolve pesquisa sobre ética e história pública sob supervisão do Prof. Jerome de Groot.

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