Ensina-o a rir, Tsangatelo! Ensina-o a rir!

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Um soldado português recebeu como missão adentrar-se no sertão moçambicano, atravessado por guerras civis, para realizar a batalha contra um imperador que ameaçava o domínio colonial lusitano. No destino ao vilarejo de Nkokolani, navegando pelo rio Inharrime, o soldado Germano junto ao oficial também português, Mariano Fragata, foram interrompidos por “um preto alto, bem parecido e de certa idade”[1]  que os acenava na margem para fazer um pedido que a este texto não convém revelar.

O velho era Tsangatelo, “o mais antigo dos Nsambes”.  Este ao estreitar os olhos para ver melhor aquele que estava no barco junto a Germano reconheceu Mariano Fragata e relembrou-lhe de onde se conheciam – Tsangatelo havia transportado armas para suas tropas.  Fragata desceu do barco e foi ter com o velho aos abraços, festejando o encontro. Como Germano não compreendia, Fragata explicou a euforia. “Este tipo nunca tinha visto um branco antes de mim. Pensava que eu e o cavalo éramos uma única criatura”.[2]  Sobre essa cena, registrou Germano o seguinte em carta ao seu superior:

E riram-se os dois. O português com um riso contido e austero, um contentamento vestido a rigor. O africano com uma gargalhada larga e solta, uma enchente de um poderoso rio. Confesso que aquela risada provocou em mim uma incontida raiva, como se estivesse perante uma manifestação do demônio. Aqueles modos, subitamente rudes e ásperos, renovaram em mim a triste suspeição: por muito que lhes ensinemos a nossa língua, por mais que se ajoelhem perante um crucifixo, não deixarão nunca os cafres de ser crianças em estado selvagem.[3]

Essa passagem, presente no primeiro volume da trilogia Areias do Imperador de Mia Couto, nos relembra algo fundamental: onde há riso não há dominação absoluta; tirania alguma se sustenta diante de uma gargalhada (já avisara Molière). Ela é o desconcerto da falsa ordem e do falso poder. E a homens de chumbo, como Germano, que jamais lhes foi dado o direito bom de sorrir, também não lhes foi dado o de dominar. E isso é o personagem mesmo que nos revela.

Não paro de me lembrar da minha casa de infância, numa aldeia fria do norte de Portugal. Nesse meu primeiro lar, o riso era deixado de lado fora, como se alegria tivesse que limpar os pés num esfarelado tapete à entrada da porta. Severo e sisudo, o meu pai vestia de preto como se estivéssemos de luto por todas as mortes deste mundo. […] Nasci e cresci entre sombras. A minha casa tinha o cheiro e o silêncio de um orfanato. Eu tinha tudo para ser um bom soldado.[4]

Um bom soldado apenas.

Atormentado pelo riso de Tsangatelo, na noite após o encontro com o velho, Germano dormiu agitado, como se um rio, um riso lhe atravessasse o sono. Ao despertar (da vigília ou do sonho, não convém dizer) na ponta da cama estava sentado o africano, um barulho de água se espalhava pelo quarto, a cama tornou-se uma canoa que o velho ia remando. O português aflito suplicava: “Ensine-me a rir, Tsangatelo! Ensine-me a rir!”[5]

O desespero do soldado apenas.

Ao homem que é negado o riso, também lhe é negado o pranto. Afinal, o choro e a gargalhada possuem a mesma potência de rebentação e isso também nos conta o personagem que aprendera ainda criança a “travar a lágrima e a engolir o riso”.[6]

Pois bem, o leitor deve se perguntar, afinal, por que eu retomo aqui essa cena, na qual o riso de um africano “colonizado” desespera um soldado português expatriado. Eu explico, mas tenham comigo boa vontade. É porque reler essa cena me fez parar de gastar minha energia odiando o “presidente”, este que aí está a tentar matar-nos. Como posso desperdiçar o meu precioso ódio a quem não sabe rir e também não sabe chorar? Já o viram sorrir? Trava os dentes e os mostra.  Pobre homem. Nunca viveu coisa tão simples.

Parei também por isso de mandá-lo ao diabo. O demônio é divertido, sabe rir, respeita quem sabe chorar. A Deus ele também não pertence porque não sabe sofrer. Ah presidente, “nem o bem, nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe”[7]. Que coisa vaga essa de não ser nada. E eu gargalho como um Exu que desce, liberta de ter de odiá-lo. O riso de Tsangatelo atormenta porque revela que é o colonizador o condenado, desprovido de tudo, da alegria e da infelicidade, que é a coisa certa da vida. Imagine, quando todos lhe virem assim: aquela coisa que nunca chegou a ter sido. Atormentado. Na cama que vira rio, que vira morte. Sem riso. Sem choro.

Um soldado apenas.

 “O riso eu declarei santo: vós, homens superiores, aprendei – a rir!”

Nietzsche. Assim falou Zaratustra.

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Referências:

[1] COUTO, Mia. As areias do Imperador. Mulheres de Cinzas. São Paulo: Companhia das letras, 2015, p. 125.

[2] Ibidem, p. 126.

[3] Idem.

[4] Ibidem, p. 131-132.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Carta de amor. Paulo Cesar Pinheiro. Intérprete: Maria Bethânia.

 

Crédito da Imagem: Rembrandt.  (Rembrandt Rindo) – c. 1628 – óleo sobre placa de cobre – 22.2 x 17.1 cm – The J. Paul Getty Museum.

 

SOBRE A AUTORA

Thamara Rodrigues

Professora do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em História pela UFOP. Foi pesquisadora visitante no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford (2014/2017-2018). Coordena o Grupo de Pesquisa Temporalidades e Histórias Populares (UEMG/CNPq). Possui experiência nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia Brasileira, História Pública e História do Brasil Imperial e Contemporâneo. Também possui interesse pelo estudo das Humanidades, Artes e Cultura popular.

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