O general, o presidente e o humanismo

A eleição de 2018 no Brasil será, por muito tempo, um espaço para o qual os humanistas irão se voltar e enfrentar, ainda que silenciosamente, os seus efeitos. São inúmeros os episódios, discursos e posturas dos presidenciáveis, dos eleitores e das mídias que merecem atenção. Inauguro esta coluna retomando uma cena que envolveu o general Mourão e o ex-presidente Lula e que poderá repercutir de forma mais ou menos imediata sobre os destinos das humanidades no Brasil.

O general Antônio Hamilton Mourão, secretário de economia e finanças do Exército e futuro vice-presidente junto a Jair Bolsonaro, afirmou em atos de campanha que famílias pobres sem a presença masculina, avôs e pais, seriam “fábricas de desajustados” em que os filhos tenderiam a ingressar no narcotráfico. A declaração sustenta que as mulheres não teriam condições de manter os filhos longe da criminalidade. A fala do general repercute uma compreensão de família conservadora que atribui à figura masculina a concepção de ordem bem como demonstra o seu desconhecimento da realidade brasileira, na qual 17,4% dos lares são formados por mulheres sem cônjuges e com filhos. O elemento, contudo, mais crítico da fala de Mourão é que ele acaba por responsabilizar as mulheres pobres pelo que considera ser o fracasso da sociedade brasileira. O drama é que essa responsabilização além de encontrar eco em uma parcela da sociedade, acaba por angustiar essas mulheres que se sentem muitas vezes responsáveis pelos destinos de filhos e netos criados sem o apoio do Estado e da sociedade. Elas se sentem muitas vezes igualmente responsáveis pela ausência do pai.

O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva respondeu ao general através de uma carta pública, na qual pedia que ele não julgasse essas mulheres baseado em concepção tão “medíocre da espécie humana”. O ex-presidente sublinhou que ele e seus sete irmãos foram educados por uma mulher analfabeta. Sua provocação é clara: mulheres pobres e sem a presença do pai podem criar presidentes da República. Ao final, o presidente deixou um conselho ao general: “faça um curso sobre o humanismo”. De forma intencional ou não, Lula adiantava e repercutia o mote da campanha que teria lugar especialmente no segundo turno: votar em Fernando Haddad era uma questão de humanidade. O problema, contudo, é que este argumento historicamente emerge, exatamente quando ele já tem pouco impacto na sensibilização das pessoas.

A vastidão de camadas de significados e experiências que a palavra humanismo nos remete oferece inúmeras possibilidades de recepção da fala de Lula ao sugerir o “curso”. De forma modesta e rápida retomarei aquela que primeiro me ocorreu: o esgotamento da palavra diante do nazismo. (Talvez essa impressão seja decorrente da leitura de Depois de 1945: latência como origem do presente de Hans Gumbrecht).

Em 1947 Jean Beaufret escreveu a Martin Heidegger perguntando ao filósofo como ele considerava a ideia de humanismo na conjuntura do pós-guerra. A pergunta foi inspirada pelas reflexões de Sartre – O existencialismo é um humanismo. A resposta de Heidegger ficou conhecida como a Carta sobre o humanismo que repercutia uma compreensão negativa sobre o tema. O filósofo alemão questionava se já não seria suficientemente evidente o mal produzido por palavras como esta, e, apresentando uma visão sobre a situação da filosofia e do pensamento contemporâneo, afirmava que era necessário parar de exigir da filosofia aquilo que ela não poderia cumprir: ela não seria capaz de orientar e com isso redimir a humanidade. A carta é uma crítica ao antropocentrismo ocidental e é marcada por uma frieza que Hans Gumbrecht associou à dureza da situação alemã diante dos efeitos da guerra.

Hannah Arendt na experimentação e na análise da conjuntura que se seguiu à Segunda Guerra Mundial identificou o enfraquecimento radical da crença nisto que seria a humanidade, bem como nos meios que poderiam garantir a convivência harmônica entre os homens e seu mundo. Ao enfraquecimento desta crença, emergiu desejos mais radicais por valores religiosos e morais que pudessem auxiliar os homens na orientação e controle de suas vidas, que diante da guerra perderam o sentido. A política foi abandonada e o mal banalizado.

Hans Gumbrecht tem se dedicado à descrição da estrutura temporal que emergiu ao pós-guerra. Nele, o futuro não se apresenta como um horizonte aberto de possibilidades, mas pelo acúmulo de ameaças que emergem do passado e transformam o presente em múltiplas simultaneidades. Haveria uma estagnação. A sensação de que o tempo parou de avançar e, sobre o presente, os passados, sobretudo, os mais assustadores, se acumulariam. O diagnóstico melancólico de Gumbrecht está relacionado à responsabilidade que a sua geração tomou para si de enfrentar as consequências devastadoras do nazifascismo.

Muito poderia continuar a ser dito sobre o que se convencionou chamar de crise do humanismo, geralmente associada ao horror dos campos de concentração. As reflexões dos autores mencionados retomam o confronto imposto pelas experiências totalitárias do século XX: como o homem poderia conquistar a si mesmo sem que para isso tivesse sido necessária a negação e a eliminação de outros homens. A ideia de humanismo que estruturou o ocidente, sobretudo a partir do século XIX, levava à frente uma compreensão de homem (europeia) que tomou a si mesma como medida, projetando as possibilidades de redenção da humanidade. O humanismo que se desenvolveu junto a estruturas imperiais e autoritárias pressupunha a definição e hierarquização do que seria e do que não seria o humano, legitimando a violência em direção àqueles que não estivessem inseridos na concepção de civilização em jogo ou que colocassem qualquer tipo de empecilho a ela. Um projeto “acima de todos” buscava determinar um só destino mesmo que ele tivesse que se impor pelo canhão, pelos bombardeios ou pelas câmaras de gás. A diferença e a abertura para o outro foram eliminadas em nome da identidade, sobretudo as nacionais e religiosas, e o século XX viu a brutalização da política imperar.

O presidente Lula, vinte e sete vezes Doutor Honoris Causa, está atento ao problema que o discurso e as performances de Mourão evocam. O general vinha há muito defendendo de forma aberta a possibilidade de intervenção das Forças Armadas mediante à crise política e institucional do país. Em 2015 ele foi exonerado do Comando Militar do Sul pelo comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas. Na ocasião, ele foi afastado após criticar o governo de Dilma Rousseff. Em campanha como vice, discursou contra negros e índios, associando-os à indolência e à preguiça. De chicote na mão, presente de ruralistas do sul e usado para agredir petistas em suas caravanas, Mourão associou o processo de redemocratização dos últimos 30 anos a uma crise de valores provocada por uma “intelectualidade” que teria desestruturado a identidade nacional. O general, sem constrangimento, tira da latência os motes discursivos, performáticos e políticos da ditadura militar e da escravidão criminalizando aqueles que o negam e que, por isso, compõe a linha de frente a ser combatida: mulheres pobres, negros, indígenas, LGBTI’s, artistas, movimentos sociais, intelectuais e professores. O projeto do qual Mourão é um dos agentes insiste em pensar a realidade brasileira a partir de si mesmo, de seus preconceitos, de seus privilégios históricos garantidos em nome da ordem e por meio da violência.

O conselho do ex-presidente ao general demarcou um gesto político importante, embora ele possua um alto nível de ironia e, até mesmo, autocrítica. Lula chamou atenção para o risco de homens tornarem-se ideias. A sugestão do “curso sobre o humanismo” revela de forma provocativa a necessidade de se lançar ao outro de forma empática. Este gesto de abertura – deixar-se tocar pelo outro, estar aberto ao mundo – constitui a boa política, o bom general, o bom humanista. Gostar das pessoas e cuidar delas é estar permanentemente aberto para suas diferenças. Qualquer outra atitude legaria à sociedade a legitimação da violência e do ódio pelo fato do outro existir e complexificar nossas convicções frágeis sobre o que compreendemos por humanidade, família ou por nação. O conselho de Lula não ecoará no general. Nós sabemos. Precisa, portanto, ecoar nos que tem dúvida sobre o futuro governo e nos que estão na linha de frente da política do medo que os herdeiros da ditadura e da escravidão estão evocando ao exporem com chicote e armas em punho a ruptura do pacto democrático: que humanismo queremos nós agora?

 

SOBRE A AUTORA

Thamara Rodrigues

Professora do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em História pela UFOP. Foi pesquisadora visitante no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford (2014/2017-2018). Coordena o Grupo de Pesquisa Temporalidades e Histórias Populares (UEMG/CNPq). Possui experiência nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia Brasileira, História Pública e História do Brasil Imperial e Contemporâneo. Também possui interesse pelo estudo das Humanidades, Artes e Cultura popular.

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