PL 490/07 e a manutenção do genocídio indígena – parte 1

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Como o título pode entregar, este é um texto de uma série que visa refletir um pouco sobre mais um marco no longuíssimo genocídio indígena no Brasil. Não tenho pretensão nenhuma de esgotar o tema, mesmo porque, não há como esgotar as temáticas envolvendo os povos originários no Brasil. Minha intenção com essa série de textos é trazer um início de reflexão sobre um tema espinhoso e que deve ser encarado com a máxima urgência.

 Na última semana foi aprovado, na Comissão de Constituição e Justiça, o Projeto de Lei 490, proposto inicialmente em 2007 (não confundir com o PL 490/2021, proposto esse ano). Vivemos o genocídio indígena desde as primeiras invasões europeias em território americano e, no entanto, a mencionada PL, que segue para o Senado, é um marco sangrento para os assassinos dos povos originários. No entremeio da imensa nojeira que é essa proposta, não posso deixar de mencionar: em uma realidade de meio milhão de pessoas mortas, a boiada segue passando… mesmo que o projeto tenha sido rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) em 2009. O projeto abre descrevendo “Nossa proposição visa a promover o aperfeiçoamento da legislação indigenista, no que tange à competência do Congresso Nacional para dispor sobre a demarcação das terras indígenas” (PL 490/07, p. 1). Não é preciso muito para entender que o tal “aperfeiçoamento” não é direcionado aos povos originários e sim à bancada ruralista, que segue forte.

O Projeto de Lei fragiliza drasticamente a demarcação de Terras Indígenas (TI) além de vulnerabilizar as terras já demarcadas. Como? Pelo texto do PL é possível ler que “as áreas reivindicadas e que, por isso, são objeto de demarcação, envolvem interesses diversos, tanto públicos quanto privados” (PL 490/07, p. 2), evidenciando os interesses sobre os recursos naturais existentes nessas terras. As jornalistas Juliana Dama e Valéria Oliveira disponibilizaram uma cronologia parcial importante sobre os ataques que garimpeiros vieram realizando desde de junho de 2020 aos Yanomami, em Roraima, enquanto a pandemia de Covid-19 assola e devasta o país. Nela, podemos ver uma evidente intensificação das violências que, por sua vez, não se restringem a esse povo, mas escancara a bestialidade de não-indígenas contra os povos originários. Exemplo disso foi o incêndio na Terra Indígena Xacriabá, em São João das Missões, Minas Gerais. O incêndio consumiu a escola onde também funcionava a casa de medicina indígena. Apesar de alguns veículos de comunicação destacarem que o incêndio poderia ter sido por uma disputa entre os próprios Xacriabás, é necessário desconfiar dessa narrativa, já que dias antes do incêndio (constatado como criminoso pela polícia) os Xacriabá interditaram a BR-135 (no dia 23 de junho), se manifestando contra a votação da PL 490-07, em Brasília. O incêndio ocorreu na madrugada do dia 24 de junho.

Muitos povos indígenas se manifestaram contra a PL 490/07, se deslocando para Brasília ao longo do último mês, enquanto outros povos se manifestaram nas cidades onde residem. As manifestações aconteceram em muitos (talvez todos, não consegui mapear até a finalização desse texto) os estados do país, destacando-se as manifestações em São Paulo, Ceará, Bahia, Maranhão e no Distrito Federal, além da já mencionada em Minas Gerais. Em Brasília, os protestos foram confrontados pela polícia, que lançou bombas de efeito moral e balas de borracha contra as manifestações pacíficas[1]. Isso diz muito sobre a vulnerabilidade de nossa democracia. Mas, considerando isso tudo, democracia para quem?

O Projeto de Lei defende que “a demarcação das terras indígenas não se limita à política indigenista. Trata-se de matéria que ultrapassa os limites da política indigenista e atinge interesses diversos” (PL 490/07, p. 3), como se mesmo a política indigenista pudesse ou tivesse interesse em passar por cima dos projetos ruralista, que sempre regeram o país. Propostas como a deste projeto ignoram ou fingem inexistir a constante expulsão dos povos originários de suas terras de origem desde o início da invasão europeia, como já mencionado, mas também ignorando o que a própria legislação trás, principalmente desde o início do século XX. O que o PL escancara no trecho acima, é justamente os interesses escusos que pairam sobre as terras indígenas, ao longo do tempo, sejam eles imobiliários, como também agropecuários e por parte de garimpeiros individuais ou mesmo mineradoras, já que “demarcação das terras indígenas não se limita à política indigenista”, ou seja, a demarcação das TIs não se limita aos interesses indígenas.

As etapas de demarcação das Terras Indígenas podem se resumidas da seguinte forma: 1) identificação e delimitação por parte de uma equipe interdisciplinar, preparada pela FUNAI; 2) declaração de posse permanente, pelo Ministério da Justiça; 3) demarcação física, realizada pela FUNAI; 4) homologação, e; 5) registro, feito pela FUNAI junto À Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Pode parecer um processo simples e muito bem organizado, mas trata-se de uma longuíssima movimentação que envolvem múltiplos interesses e que, muitas vezes, são completamente opostos um do outro.

Essa proposta visa reformular esse longuíssimo processo para que ele se torne ainda menos eficiente, mais longo, com mais interesses subordinados e que, ao fim, não delimite nenhuma outra TI, ou, se delimitar, tornar os territórios originários verdadeiros depósitos de “involuntários da pátria”, como diria Eduardo Viveiros de Castro, semelhante talvez à muitas reservas indígenas, nos Estados Unidos. Digo isso pela conotação de isolamento que essas reservas ainda têm, e que não comportam as transformações culturais que os povos indígenas, e todos os demais povos do planeta Terra, sofrem e exercem. Mas falaremos mais sobre isso no segundo texto dessa série.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DAMA, Juliana; OLIVEIRA, Valéria. Cronologia: veja os ataques de garimpeiros à Terra Indígena Yanomami. Reportagem para G1, de 27/05/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/05/27/relembre-conflitos-recentes-entre-garimpeiros-e-indigenas-na-terra-yanomami.ghtml . Acesso em: 28/06/2021.

PAJOLLA, Murilo. Polícia reprime manifestação pacífica de indígenas em frente ao Congresso. Reportagem feita para a página “Brasil de Fato”, em 22/06/2021, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/06/22/policia-reprime-manifestacao-pacifica-de-indigenas-em-frente-ao-congresso-veja-video . Acesso em 28/06/2021.

RIBEIRO. Luiz. Escola de reserva indígena é incendiada em Minas. Reportagem feita para o jornal Estado de Minas, em 24/06/2021, disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/06/24/interna_gerais,1280139/escola-de-reserva-indigena-e-incendiada-em-minas-veja-video.shtml . Acesso em 28/06/2021.

Protesto de indígenas interdita trecho da BR-316 em Santa Inês, no Maranhão. Reportagem feito para o portal G1, em 22/06/2021, disponível em: https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2021/06/22/protesto-de-indigenas-interdita-trecho-da-br-316-em-santa-ines-no-maranhao.ghtml . Acesso em 28/05/2021.

 Indígenas bloqueiam trecho da BR-222, em Caucaia, em protesto contra projeto de lei que modifica demarcação de terras. Reportagem feito para o portal G1, em 22/06/2021, disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/06/22/indigenas-bloqueiam-trecho-da-br-222-em-caucaia-em-protesto-contra-projeto-de-lei-que-modifica-demarcacao-de-terras.ghtml . Acesso em: 28/06/2021.

 

 

 


NOTAS

[1] Dois indígenas foram hospitalizados dentro mais de 10 feridos, como mostra a nota do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indigenas-sao-reprimidos-com-violencia-pela-policia-em-brasilia-durante-protesto-pacifico . Acesso em: 28/06/2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Indígenas carregam manifestante ferido. Foto: Matheus Veloso. Instituto Socioambiental (ISA).

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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