Tybyra e a invisibilidade LGBTQIA+ indígena

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Os papeis de gênero são construídos nas sociedades. Este não é um questionamento, é uma afirmação, como vem sendo demonstrada pela filósofa Judith Butler, já faz um tempo. Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Butler questiona estruturas sociais que não apenas associam o sexo ao gênero, mas vinculam essa identificação como uma ordem compulsória ao desejo e prática. Podemos pensar, junto a Butler, o poder dessa identificação sobre as atividades que mulheres e homens exercem nas sociedades. Ou mais especificamente, a infame ideia “é coisa de homem/é coisa de mulher”. Bom, é importante destacar que essa construção deve ser diretamente relacionada à própria colonização, não só das Américas, mas do ser, do existir, dos saberes, e as formas como entendemos o mundo bebem (infelizmente) diretamente dessa fonte.

Escrevo isso pois temos presenciado uma certa glamourização da ideia de “desconstruir” e de “descolonizar” os pensamentos. Entendam, não estou fazendo a crítica me referindo aos conceitos que trazem uma carga teórico-metodológica riquíssima e urgente em nossa contemporaneidade, e que precisam ser encarados cada vez mais, principalmente nas ciências humanas, mas também em todas as demais áreas de saberes. A minha crítica se refere à uma espetacularização dessas duas palavras e que ao ganhar certa notoriedade (o que teria um potencial fortíssimo para a própria perspectiva decolonial), ganha também uma vulgarização e possivelmente esvaziamento dos termos. Não é uma questão de conhecer profundamente ou não os conceitos, mesmo porque a própria superficialidade já faz parte da construção de conhecimento; mas o problema se qualifica na desarticulação que essas propostas trazem, quando são realocadas sem o devido rigor que estes mesmos conceitos requerem. Dito em outras palavras, o que me incomoda é a fachada bonita da autoproclamação do ser “desconstruíd(e)”, que não existe em sua totalidade, afinal, devemos estar sempre em constante desconstrução e reconstrução de algo, e que, ainda, está longe de ser um processo fácil, indolor ou glamuroso. Esta é, ao fim, uma ação eterna e me desconfia muitíssimo as vozes e escritas que se autointitulam de tal forma.

Descolonizar o pensamento é também desconstruir e reconstruir perspectivas básicas sobre, também, esses aspectos das relações de gênero sobre os papeis de homens e mulheres nas sociedades, e, é evidente, nas sociedades indígenas não seria diferente. Muitas vezes ainda esbarro com textos de historiadores, sociólogos, antropólogos e demais cientistas das ciências humanas e sociais (passados e presentes), comentando sobre como a divisão do trabalho entre os povos originários era estabelecida a partir do sexo do indivíduo. Dessa forma, bem resumidamente, os homens seriam responsáveis pela proteção da aldeia, assim como pela caça e guerra, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelo preparo da comida, pelas crianças, pela agricultura. Me incomoda pois não é estabelecido o tempo ao qual esta afirmação se refere; como se os povos indígenas sempre estivessem estabelecidos nessas estruturas; como se não ocorresse modificação da própria colonização que registrava tais informações. Além da generalização de centenas de povos em uma única perspectiva, vemos também a eterna exploração do feminino… mas esse é um tema para um outro texto.

O ponto que gostaria de destacar é que seria com base nesses termos, nesse raciocínio, que muitos pesquisadores ignoraram e continuam ignorando a presença LGBTQIA+ entre os povos indígenas no mundo. Em outras palavras, seria a partir da justificativa da divisão do trabalho, a partir do sexo, que os homens deveriam “performar biologicamente” como homens e mulheres como mulheres, caso contrário a própria estrutura desses povos estaria ameaçada. Este é um tema extremamente delicado, muito devido ao machismo que existe nesses povos, como também em todas as sociedades: pois esta perspectiva parte muito da visão de que um homem gay se “performa” como mulher, e uma mulher lésbica “performa” como homem. Perspectiva que é COMPLETAMENTE equivocada, já que este já é um estigma que provém: 1) do sexo como ação meramente reprodutiva; 2) da mulher como “sexo frágil”; 3) do feminino como inferior ao masculino, já que é inadmissível uma suposta “inversão dos papéis” (que papel, afinal?); 4) do controle sobre o feminino em suas ações, corpos e desejos; 5) da própria negação do papel masculino na vida diária de afazeres “domésticos”, vinculando-os sempre a trabalhos “brutos” e que requereriam força, o que volta à suposta “incapacidade” do feminino; 6) da suposta inviabilidade de reprodução, pois os sexos não estariam desempenhando sua suposta função biológica, o que por, sua vez, ignora completamente a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero (esta, para mim, é a mais infame)…. enfim, inúmeros pontos que vão depender também do espaço e tempo ao qual estamos dialogando.

O que este imaginário (no sentido mesmo de só existir na imaginação) carece de perceber é que estas construções são exatamente isso: construções de uma sociedade que quer subjugar o que não é heteronormativo. Os resquícios de documentação colonial que estipulam a divisão do trabalho pelo sexo, dizem respeito mais à sociedade que observava, do que àquelas que eram observadas: e é aí que mora a necessidade urgente da real descolonização dos pensamentos, na crítica de produção documental em um tempo e orientação ideológica que procurava ver uma “ordem”, conhecidamente europeia, nas coisas. Essa documentação também diz respeito a um período que as forças colonizatórias já deferiam um poderio sobre aquelas culturas, impossibilitando a observação de seus aspectos pré-coloniais, ao menos no que hoje conhecemos como Brasil.

Assim, na presença das ideologias judaico-cristãs os observadores veriam a posição feminina de maneira passiva, meramente reprodutora e submissa à figura masculina, como percebemos em um número expressivo de relatos descritos ao longo do período colonial e imperial, no Brasil. Vemos uma sociedade que quer (e infelizmente ainda consegue muitas vezes) colonizar os corpos, os desejos e os afetos, e que nega ao restante a própria possibilidade de existência. Esta é uma violência gravíssima, e é nítida a transposição da agressão simbólica para a física; uma transposição que existe no passado e no presente, e é sobre isso também que paira a denúncia do livro Tybyra: uma tragédia indígena brasileira.

De autoria de Juão Nyn, filho do povo Potiguara, o livro é apresentado como um monólogo de uma peça de teatro, em que o protagonista é Tybyra, personagem indígena baseado em uma figura histórica, de trajetória trágica. A história de Tybyra é, infelizmente, como a de muitas pessoas LGBTQIA+: uma história também de violência. O personagem, que é histórico e fictício, é apresentado incialmente nas matas, em seu ambiente originário, ou como um pajé, ou como um indivíduo que estaria neste caminho do aprendizado das ervas, não me ficou claro. Procurado por homens indígenas e homens invasores (conhecidos como colonizadores), reconhecemos sua homoafetividade na reciprocidade dos prazeres sexuais, descritos por Tybyra ao longo do monólogo. Aqui, é importante dizer que, de maneira semelhante como aos gregos, na Antiguidade, o conceito de homoafetividade se mostra anacrônico, pois trata-se de uma demarcação que não existia dessa forma, naquele tempo, para aquelas sociedades. No entanto, com o propósito de tornar o texto mais palatável, essa demarcação será utilizada aqui.

Assim, apesar de ser procurado para os prazeres da carne também pelos invasores, na obra, Tybyra é acusado de algum pecado criado pelos cristãos, cujo o qual ele mesmo não conseguia compreender muito bem, porque era um “pecado” compartilhado pelos mesmos rostos que o acusavam. Ele não conseguia compreender, porque o “pecado” era mais uma amarra de suposta ordem, imaginada por uma sociedade que tinha o objetivo de se apoderar daqueles corpos. Não era ordem afinal, era poder, era violência contra o Outro, com aquele que não se enquadrava nas estruturas sociais que agora se erguiam nas Américas. Tybyra é então condenado e, amarrado na boca de um canhão, é morto pelo disparo. O monólogo do Tybyra, de Juão Nyn, é fictício, escrito em potyguês, proposta de remoção da letra “i” de toda a obra,[1] mas o indígena registrado pelo autor foi bem real, e seu registro pode ser lido em Continuação da História das Coisas Mais Memoráveis Acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614, pelo frade francês Yves Devreux.

 

Capa do Livro “Tybyra: uma tragédia indígena brasileira” Editor Juão Nyn/ selo do burro; 1ª edição

Capa do Livro “Tybyra: uma tragédia indígena brasileira”. Editor Juão Nyn/ selo do burro; 1ª edição

 

É possível ter acesso a este relato de viagem pela Biblioteca do Senado Brasileiro, e à “Tybyra”, o frade dedica apenas 4 páginas. Na edição que tive acesso (2008), o autor do prefácio, Joaquim Campelo Marques, já faz o devido indicativo às “invenções sobre a hostilidade dos índios e a infertilidade dos trópicos equatoriais” (MARQUES, 2008, p. XX), denúncia esta que já fora feita à época da publicação do diário. À “Tybyra”, Devreux intitula o capítulo “De um índio, condenado à morte, que pediu o batismo antes de morrer”. À “Tybyra” é negado o próprio nome, pois aquele não importava para o frade ou seus contemporâneos, o que era conveniente para a missão de catequização proclamada e que mesmo antes da execução daquele homem, era reverenciada. É por isso que Juão Nyn nomeia como Tybyra, aquele e tantos outrEs que pela brutalidade das colonizações (mente e corpo) foram sepultados como indigentes, ou sequer receberam seus ritos fúnebres. E seu nome, como os nomes indígenas o são, provém de um significado importante para este texto: de acordo com Estevão Fernandes e Bárbara Arisi em Gays Indians in Brazil: untold stories of the colonization of indigenous sexualities, “tibira” é a nomenclatura utilizada pelos Tupinambás para se referirem ao homem homoafetivo, assim como “çacoaimbeguira” é o termo para se referir à mulher homoafetiva.

Tybyra, no momento de ser preso, grita sobre a importância de seu nome, pois é o nome que carregava tantos outros como ele, e que vieram antes dele (NYM, 2020, p. 50). Um dos pontos que o livro Gay Indians in Brazil destaca, é que justamente a presença da homoafetividade era tão comum e livre desse “pecado” judaico-cristão, que aqueles indígenas a nomeavam: os tibiras. E não apenas eles, já que há registros em todas as regiões das Américas sobre as pessoas de “dois espíritos”. No que hoje conhecemos como Estados Unidos da América, os “dois espíritos” eram reverenciados por vários povos e sua presença era digna de honra. “Os Navajo se referem a Dois Espíritos como Nádleehí (alguém que está transformado). Entre a etnia Dakota temos a palavra Winkté (indicativo de um homem que tem compulsão de se comportar como mulher), Niizh Manidoowag (dois espíritos) entre os Ojíbuas, e Hemaneh (meio homem, meia mulher) entre os Cheyenne, para citar alguns” (PEREIRA, 2019, s/p), aponta Joseane Pereira, em publicação para o Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais, da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Mas é importante destacar: não é possível encontrar um consenso a respeito do tema entre os povos originários, mesmo em povos intensamente semelhantes ou com proximidade espacial. Cada povo terá um nome e um papel social para as pessoas homoafetivas, e é simplesmente impossível generalizar. O que queremos destacar neste texto é sua existência entre os povos originários, sua existência em suas múltiplas e complexas formas de ser, viver, personificar. Ser “dois-espíritos”, ou “espírito duplo”, ou outras formas plurais de nomenclatura, é estar relacionado de formas específicas com o mundo e o tempo que habitam. Não é correto se apropriar dos termos originários para nomear pessoas homoafetivas que não correspondem à essas culturas. Mesmo a divisão estrita de trabalho mediante o sexo, existente ou não, não pode ser generalizada. NADA pode ser generalizado quando falamos de povos originários. Procurar uma unidade cultural entre esses povos é reforçar a colonização do pensamento e, ainda mais recentemente, procurar uma unidade nacional em sociedades que simplesmente não funcionam e não funcionavam dessa forma. É mais uma vez o erro por parte do observador, e não do observado.

Mas a colonização tem raízes ainda mais profundas, pois é ela uma das responsáveis por sustentar e consolidar a própria homofobia. Se em determinados povos não houve o registro de pessoas “dois-espíritos”, tampouco havia a depreciação deles. No entanto, é com a colonização, mediante também a catequização, que a homoafetividade passou a ser vista como o pecado, assim como a nudez ou a crença em deuses e entidades, que não fossem o deus único cristão. No livro Existe Índio Gay?: a colonização das sexualidades indígenas no Brasil, Estêvão Fernandes aponta como a homoafetividade passou a ser alvo de repulsa e hostilidade. Se “Tybyra” era um homem, homoafetivo, talvez filho do povo Potiguara, há muitos outros “Tybyras” nos demais povos ao redor do mundo, e é o pensamento colonizado que faz com que não sejam reconhecidos, nem no passado e nem no presente. Em Tybyra, essa colonização é representada pelo diálogo entre os irmãos: enquanto preso, o protagonista recebe uma visita de seu irmão, nomeado por Devreux como Caruatapirã – o cardo vermelho -, e este o questiona de seu “pecado”. Caruatapirã é convertido ao cristianismo, e vê no irmão o mesmo pecado que os franceses viam em Tybyra, o suposto “erro” de ser quem era. É o mesmo Cardo Vermelho que dispara o canhão, que parte “Tybyra”, histórico e fictício, em dois: “imediatamente a bala dividiu o corpo em duas porções, caindo uma ao pé da muralha, e outra no mar, onde nunca mais foi encontrada” (DEVREUX, 2008, p. 253).

É assim que mesmo hoje, as reminiscências da colonização e da catequização ainda violentam pessoas homoafetivas, também pertencentes aos povos originários. A comunidade LGBTQIA+ é plural e complexa, em formas que este ensaio de 6 páginas jamais poderia abranger, e ainda considerando o limite do lugar de fala desta autora que vos escreve. Limites que não pude abordar, também pela falta de conhecimento que ainda almejo conquistar. Finalizo, então, pelo que não pude apontar, sobre a ainda mais delicada posição de mulheres e homens trans nos povos originários ao redor das Américas.

Em edição recente do programa televisivo “Canada´s Drag Race”, um spin off do programa “Rupaul´s Drag Race”, pudemos acompanhar parte da trajetória de Ilona Verley, drag queen originária do povo Nlaka´pamux, no Canadá. A partir de sua presença no programa, é possível ter um vislumbre da complexidade de ser uma mulher trans originária, e como esse é um tema extremamente delicado no que tange os povos indígenas. Ilona Verley, além de lidar com as questões LGBTQIA+, também destaca as violências que mulheres cis indígenas são alvo em todo aquele país, e como o silêncio continua a ser uma das violências mais brutais ainda existentes (não deixe de conferir a personificação deste silêncio na foto de Ilona Verley, em sua conta no Instagram: https://www.instagram.com/p/CEke1mEJCRn/ )

 

 

 


REFERÊNCIAS

BELL, Deirdre. Toward an End to Appropriation of Indigenous “Two Spirit” People in Trans Politics: the Relationship Between Third Gender Roles and Patriarchy. Disponível em: https://culturallyboundgender.wordpress.com/2013/03/09/toward-an-end-to-appropriation-of-indigenous-two-spirit-people-in-trans-politics-the-relationship-between-third-gender-roles-and-patriarchy/ . Acesso em 09/02/2021.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira. Edição do Kindle. 2018.

FERNANDES, Estevão Rafael. Existe Índio Gay?: a colonização das sexualidades indígenas no Brasil. Curitiba, Brazil Publishing, 2019.

FERNANDES, Estevão Rafael; ARISI, Bárbara M. Gay Indians in Brazil: Untold Stories of the Colonization of Indigenous Sexualities. Springer International Publishing. Edição do Kindle, 2017.

NYM. Juão. Tybyra: uma tragédia indígena brasileira. São Paulo. Selo doburro, 2020.

 

 

 


NOTAS

[1] Sobre o porquê da remoção, ler a resenha de Graça Graúna “Texto Teatral Indígena no Rio Grande do Norte”, disponível em https://gracagrauna.com/2021/02/06/texto-teatral-indigena-no-rio-grande-do-norte/ Acesso em 09/02/2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Close & Resistance, ilustração de Zé Otavio. Disponível em: https://www.behance.net/gallery/102857415/Close-Resistance?tracking_source=search_projects_recommended%7CTibira

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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