O dia branco do “índio”

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No calendário brasileiro existe a suposta “comemoração” anual do “dia do índio”, a cada 19 de abril. Na minha infância, na virada dos anos 1980 para os anos 1990, tínhamos atividades de colorir na escola, montagem de cocares com penas ou papel crepom, e dançávamos uma determinada música de uma famosa apresentadora infantil… o leitor provavelmente sabe qual é. Voltávamos para casa com os desenhos nas mãos e os pais ficavam “maravilhados” com os exercícios realizados. No dia seguinte, ninguém mais lembrava quem eram esses “índios”, se é que em algum momento eles nos eram de fato apresentados.

Uso a escrita deste texto no passado, simplesmente porque parto de uma experiência estritamente pessoal (mesmo que provavelmente compartilhada por muitos), o que não significa que essa seja uma realidade passada. Infelizmente, me parece que o “dia do índio” nacional variou pouco de lá pra cá. Claro, é importante dizer que falo de um lugar limitado pela minha experiência em sala de aula, assim como as compartilhadas pelos meus colegas, professores e alunos. Existem escolas preocupadas ética e politicamente com as representações dos povos indígenas no Brasil, e isso de fato é um avanço que não pode ser negligenciado. Mas será que esses casos são a regra, ou a exceção?

A minha sensação é que ainda temos muito o que avançar em políticas afirmativas, direcionadas ao debate étnico-racial como um todo. Completaremos 12 anos da lei 11.645, de 2008, que promove a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena. No entanto, a presença da temática indígena na escola ainda permanece, no mínimo, tímida. Se estendermos esta observação para o ensino superior, a presença de disciplinas sobre o tema é quase sempre “eletiva”, ao menos na região sudeste do Brasil. Ainda são poucas as instituições de ensino superior público que têm disciplinas obrigatórias sobre a temática, apesar de termos um avanço mais considerável no que tange as disciplinas de História da África.

Entre avanços e retrocessos no que tange a presença dessas disciplinas, é no mínimo compreensível entender o porquê dos professores atuantes no ensino básico não se sentirem confortáveis (ou até interessados) em abordar o tema em suas turmas, visto que muitos deles não tiveram contato com a temática indígena, durante sua formação. A interdisciplinaridade dos tópicos pode ser vista como intimidante, pois gira em torno das disciplinas de História, Geografia, Sociologia, Artes, Filosofia e até da Matemática. Ou melhor: poderiam abordar essas áreas, se não fosse os entraves de tempo de aula (cada vez menos disponibilizado para as humanidades, em geral) ou mesmo do currículo escolar, que muitas vezes delimitam os temas de maneira rígida em uma ou outra disciplina.

A realidade é que, muitas vezes, a prática da presença das temáticas indígenas é restrita ao “dia do índio”. Em outro texto, publicado aqui na HH Magazine, apontei rapidamente sobre a generalização do conceito “índio”, mas me parece que podemos dar um passo a mais nesse debate, já que este é ainda o termo mais utilizado para nos referirmos aos povos originários no Brasil. Mas afinal, por quê este não é um termo apropriado?

O termo “índio” é tradicionalmente associado ao imaginário de que, quando os europeus chegaram à costa americana, achavam que estavam na Índia, e ainda não sabendo de seu erro, teriam chamado os nativos de “índio”. Isto está mais ou menos aberto ao debate historiográfico quanto a sua factualidade, mas a consequência dessa crença é palpável, já que ao invés de nos concentrarmos em compreender a diversidade existente no continente (e não apenas no Brasil), permanecemos utilizando esse termo genérico. Faz alguns anos, um aluno me perguntou, “mas qual o problema de ser genérico?”. Minha resposta foi: “Nenhum, desde que você não se incomode de eu te confundir com uma pessoa argentina” (ele usava uma camisa da seleção brasileira de futebol). Ironias a parte, existem sim, vários problemas em generalizar os povos indígenas no Brasil, mas me parece importante abordar ao menos um aqui, mesmo que seja óbvio: a ignorância e desconhecimento.

Ao ignorarmos a realidade da enorme diversidade cultural existente em território nacional, cometemos duas violências: a de não se interessar por estes sujeitos e a de perpetuarmos uma ideia de “unidade nacional” que sistematicamente silencia, omite e mata, não necessariamente nesta ordem. E não falo isso apenas de maneira metafórica ou dentro do âmbito acadêmico, pois enquanto teimarmos em evitar a abordagem devida e adequada ao tema, permanecemos em um afastamento brutal e profundo das múltiplas realidades existentes no Brasil. Ao falar da morte de indígenas, não falo apenas no sentido de silenciamento cultural, mas do assassinato ainda crescente dessas pessoas, e que infelizmente parece não preocupar uma porcentagem considerável de brasileiros. Será que é meramente porquê “o que os olhos não veem, o coração não sente”? O afastamento entre não indígenas e indígenas apenas perpetuará a ideia genérica que não existe mais “índio” no Brasil.

Esta representação unívoca de indígena, que apenas usa cocar e pintura no rosto, exclui outras variedades de representações desses sujeitos, que por sua vez utilizam celular, passaram por ou estão no ensino superior e moram em grandes centros urbanos. O “índio”, enquanto imagem genérica, não aborda esta multiplicidade de representações e de povos que estão presentes em nosso tempo e país. Se nós, enquanto professores, não demonstrarmos isto, estaremos perpetuando essa generalização e violências, que acontecem desde 1943 no Brasil. Promulgado pelo governo Vargas, o “dia do índio” provém de um contexto político de perpetuação radical da unidade identitária nacional, sendo o lugar do “índio”, genérico, único e no passado.

É preciso debater sobre as temáticas indígenas na escola, no entanto, mais que realizar debates, é preciso solidificar a possibilidade de solidariedade. É necessário falar sobre questões sensíveis, de músicas, de artes, de culturas, tudo sempre no plural. Pode-se falar do cocar, mas deve-se falar também da campanha “Abril Vermelho”. Pode-se tratar da pintura corporal tradicional, mas também é necessário tematiza-la enquanto arte indígena, que sempre é contemporânea, do nosso tempo. Deve-se falar da “terra sem males” Tupi, assim como de autores indígenas atuais, como Graça Graúna, Ailton Krenak, Edson Kayapó, Olívio Jekupé, dentre tantos outros.

Para finalizar, é importante dizer: não é que meu posicionamento seja contra a celebração do “dia do índio”. O que sou contra é deixar os indígenas de fora da comemoração. É por isso que, para celebrar a presença indígena na história do Brasil, é necessário entende-la em sua trajetória constante, desde antes do período colonial, incluindo nossa atualidade. Não apenas no passado, e não apenas no 19 de abril. Inclusive, me parece que o 9 de agosto é outra data interessante, já que celebra o dia internacional dos povos indígenas, em sua extensa pluralidade. Seja qual data for escolhida para destacar a presença indígena, uma coisa é fundamental: saber que o debate deve permanecer nos demais dias do ano. Talvez, em algum momento, possamos associar a palavra “índio” mais ao elemento químico de número atômico 49, e entender que esta palavra não é suficiente para abordar a multiculturalidade existente nas Américas.

 

 

 


REFERÊNCIAS

PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis. Revista História Hoje, v. 7 nº 13, 2018.

AMORIM, Claudia; PALADINO, Mariana. Cultura e Literatura Africana e Indígena. CURITIBA – PR. IESDE, 2010.

 

 

 


Créditos na imagem:  Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/ Governo do Estado do Paraná.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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