Acabou o “Dia do Índio”? Uma grande vitória em tempos turbulentos.

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Quem vem nos acompanhando nessa coluna vai perceber que esse texto, apesar de curto é muito especial! Desde o primeiro texto publicado aqui, junto à HH Magazine, venho apontando alguns dos problemas sobre o termo genérico “índio” e do porque ele é tão problemático. Vivemos em tempos de um horizonte de expectativa reduzido e, principalmente com a pandemia, fomos obrigados a encarar de frente a constante existência de finitude e que, como seres limitados, teimamos em ignorar muitas vezes. O “fim do mundo” nos pareceu mais próximo e a cada dia, sentimos uma derrota diferente.

É claro que esses sentimentos são diferentes para cada pessoa, e é necessário entender que se você passou a sentir esse turbilhão de emoções apenas com a pandemia, esse movimento pode demonstrar o lugar privilegiado que você habita esta sociedade. Privilegiado, pois, o movimento de encarar da finitude tão de perto já é feito todos os dias por inúmeras pessoas que vivem à sombra da democracia existente, e dela fazem parte a população negra, a comunidade LGBTQIA+, os povos ribeirinhos, quilombolas e também os povos indígenas no Brasil. Como já apontou Eduardo Viveiros de Castro, na abertura da aula pública realizada na Cinelândia em 20 de abril de 2016, “há uma guerra em curso contra os povos indígenas do Brasil, apoiada deliberadamente por um Estado que teria (que tem) por obrigação constitucional proteger os indígenas e outras populações tradicionais” (VIVEIROS DE CASTRO, 2016, p. 1).

Ailton Krenak também já vem destacando que, desde antes da iminência da ascensão do atual desgoverno, se passaram “quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais” (KRENAK, 2019, p. 31). E é justamente por essa longuíssima trajetória de lutas, resistências e re(existências); pela não aceitação de uma generalização violentamente forçada sobre os mais de trezentos povos indígenas vivos no Brasil; pela defesa de seus direitos originários e reconhecidos pela constituição brasileira que o texto de hoje me é tão importante.

No dia 11 de maio foi aprovado pela Comissão de Cultura (CCULT) o Projeto de Lei (PL) 5466/2019, de autoria da deputada federal Joenia Wapichana (REDE-RR). A PL mencionada modifica a antiga nomenclatura “Dia do Índio”, comemorado anualmente no 19 de abril, para “Dia da Resistência dos Povos Indígenas”. Mas não se engane, colega leitor, se por ventura você acabar achando que a modificação não passa de uma mudança de nomenclatura. A aprovação da PL é um marco das demandas indígenas em um país que insistentemente os silencia e os violenta. O que vemos com essa aprovação deve ser encarado como a valorização da pluralidade dos mais de trezentos povos indígenas no Brasil, falantes de quase trezentas línguas diferentes e protetores de uma imensa variedade cultural. 

O antigo “Dia do Índio”, reforçava uma generalização assassina e etnocida, em que toda essa pluralidade cultural era reduzida a uma identidade única, simplista, estereotipada e que reduz a diversidade existente à uma visão do passado. Era, nas palavras de Daniel Munduruku, uma data “folclórica e preconceituosa”, além de intensificar a generalização desses povos em uma nomenclatura que os trata de forma singular e não coletiva (índio). Inicialmente, o projeto alterava o nome para “Dia dos Povos Indígenas”, mas essa proposta foi modificada com intenção de destacar a resistência frente às tentativas constantes de colonização – inclusive contemporânea – que esses povos enfrentam ao longo da trajetória histórica do Brasil. Ressalta-se aqui o próprio direito às suas terras originárias, a qual ainda muitos são privados. 

A PL foi apresentada primeiramente em 2019 às Comissões de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), em que foi aprovada, e agora já foi encaminhada para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). Sendo aprovada, a PL é enviada ao Senado. Este é de fato um marco na luta dos movimentos indígenas no Brasil e que institui um dia celebrativo de suas forças e com protagonismos desses povos. Uma vitória em tempos tão turbulentos!

No entanto, deixo (novamente) meu apelo para que essa data não seja reduzida à uma troca de nomenclatura, por parte da sociedade não-indígena. É preciso proteger a lei que parte de uma demanda tão evidente da população: respeito à diversidade. Não adianta a mudança da nomenclatura sem a devida reconstrução da celebração da data. A valorização das culturas indígenas no Brasil e o reconhecimento de suas lutas deve vir em uma ação simultânea. A meu ver, isso só pode ocorrer efetivamente através da educação de qualidade para todos – por isso, pública. Valorizar os povos originários no Brasil é necessariamente proteger a educação com livre acesso para todos. Que esse seja o passo definitivo para abolir o “Dia do Índio” e enaltecer o “Dia da Resistência dos Povos Indígenas” no Brasil! 

Não deixe de acompanhar o andamento do processo, através do link: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2224662#tramitacoes .

 

 

 


REFERÊNCIAS

KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Involuntários da Pátria. Edições N-1, 2016.

 

 

 


NOTAS

[1] Como pode ser ler em entrevista dada ao portal da BBC, em 19 de abril de 2019, e disponibilizado no portal G1: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/19/dia-do-indio-e-data-folclorica-e-preconceituosa-diz-escritor-indigena-daniel-munduruku.ghtml . Acesso em 17/05/2021

[2] Como pode-se ler na página da deputada federal Joênia Wapichana: http://www.joeniawapichana.com.br/imprensa/pl-de-autoria-da-deputada-joenia-wapichana-que-institui-dia-da-resistencia-dos-povos-indigenas-e-aprovado-na-ccult-da-camara . Acesso em 17/05/2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. “Nossa luta é pela vida” — frase projetada para lembrar o dia 19 de abril. Agência Senado; 19/04/2021

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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