This is not America: Colonialidade e Imperialidade no clipe de Residente & Ibeyi

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Pelo caminho perdemos até o direito de nos chamarmos americanos. (Eduardo Galeano)

 

O lançamento do clipe produzido para a canção “This is not America”, fruto da parceria entre o premiado rapper porto-riquenho René Pérez Joglar, ou simplesmente Residente (vocalista do grupo Calle 13) e a dupla franco-cubana Ibeyi, alcançou dezenas de milhões de visualizações no YouTube em poucos dias. Assim, como o espetacular clipe da canção Latinoamerica (Calle 13) que em versos icônicos como “um pueblo sin piernas pero que camina” apresentou muitas definições para a identidade multifacetada do povo latino-americano, This is not America é mais que um sucesso de público, é uma impressionante aula de história e sociologia política sobre o nosso continente.

Intervenção do artista chileno Alfredo Jaar (1987 – Times Square)

Colocando-se como uma provocação fraterna e um complemento à canção do artista Childish Gambino, que já havia impactado o mundo com um clipe revelador da violência racista nos EUA e a hipocrisia da sociedade segregacionista americana estadunidense, Residente não economiza nas referências ao imperialismo “ianque” e o sequestro da identidade do continente presente nos versos “America no es solo USA, papa”.

Representação de Lolita Lebrón Sotomayor, ativista boricua porto-riquenha

A representação da luta nacionalista porto-riquenha abre o clipe, ao som dos tiros de Lolita Lebrón em frente ao congresso dos EUA, além da alusão ao grupo Los Macheteros, que atua há décadas pela independência de Porto Rico no refrão “Si quieres mi machete, te muerde”. Com uma melodia rica em ritmos e vibrações, a letra da canção é igualmente potente e contém inúmeras referências ao contexto da “conquista”, isto é, invasão espanhola, enquanto apresenta exemplos de intervenção dos EUA na soberania dos países latino-americanos e a dependência econômica gerada pelo controle imposto pelas grandes transnacionais. Em meio a tudo isso, as crises e instabilidades políticas e a violência estruturante dessas sociedades, que é tanto herança colonial quanto produto imperialista, compõe o enredo potente da obra audiovisual. Todavia, como este texto não se propõe a elencar as inúmeras referências históricas do videoclipe, sugiro para este objetivo o vídeo do canal do professor e historiador João Carvalho.

Representação de pirâmide maia de Chichén Itzá em meio à prédios de uma metrópole

 

Desde hace rato,
cuando ustedes llegaron,
ya estaban las huellas de nuestros sapatos

A intenção aqui é provocar uma reflexão sobre as possibilidades de análise do clipe e da letra de “This is not America” sob o viés da decolonialidade – projeto intelectual e político que busca libertar a produção do conhecimento de suas raízes eurocêntricas. Afinal, ambos nos conduzem a olhar como o colonialismo europeu e o imperialismo estadunidense forjaram as cicatrizes e as feridas abertas deste continente. Sobre a permanência de uma colonialidade que estabeleceu um padrão de poder mundial a partir da América no século XVI, o intelectual peruano Anibal Quijano, um dos fundadores do grupo Modernidade/Colonialidade – que propôs uma epistemologia decolonial aos estudos latino-americanos, nos convocou a romper com esse lugar de subalternidade, afirmando que “é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos”. (QUIJANO, 2005, p. 139)

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos

 

Além da evocação de cenas da colonização ibérica, contrastando com cenas contemporâneas, que emergem tal qual a pirâmide maia em meio aos prédios de uma grande metrópole e a execução do líder guerreiro inca Tupac Amaru II estampada na atual resistência indígena à violência policial, o clipe nos conduz às imagens do que Luciana Ballestrin denomina de “imperialidade”, um elo perdido do chamado “giro decolonial”. Segundo ela, “a nova forma de globalidade imperial baseada na liderança dos Estados Unidos articula uma ordem econômica, militar e ideológica que subordina pessoas, regiões e economias ao redor do mundo e que projeta uma colonialidade global sobre o conhecimento e a cultura dos grupos subalternos”. (BALLESTRIN, 2017, p. 520-521). Assim, se torna insuficiente falar de colonialidade na América Latina sem compreender a imperialidade como o mecanismo de poder do imperialismo.

 

Los narcos gobiernos, todo lo que robaron
Los que se manifiestan y los que se olvidaron
Las persecuciones, los golpes de Estado
El país en quiebra, los exiliados
El peso devaluado

 

Por meio de sua obra de arte, ao entrecruzar elementos que remetem às feridas coloniais de um continente secularmente explorado pelos interesses mercantis europeus com o violento domínio estadunidense que ameaça a soberania do continente, Residente traz de volta esse elo perdido da imperialidade. De fato, a América Latina não é/foi a única zona de intervenção dos EUA, mas se configurou historicamente como seu “quintal de influência”. Da crença no destino manifesto e a “doutrina Monroe” que preconizava “a América para os americanos” à política do “big stick” de Roosevelt que autorizava a intervenção dos Estados Unidos no território de países americanos para afastar a interferência europeia, a hegemonia norte-americana sobre o continente se ampliou militarmente. Desde o fim do século XIX, após a guerra hispano-americana e, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, essa hegemonia se consolida por meio da penetração de capitais, criação de bases militares, apoio à governos subservientes, golpes de estado anticomunistas e do estímulo à dependência econômica e tecnológica, além do avanço da dominação cultural introduzida pelo “american way of life” da sociedade de consumo.

Imagem de criança ameríndia derramando café em alusão ao Starbucks

Ao longo do clipe, imagens de crianças de diferentes etnias nativas do continente sentadas sobre produtos que fazem alusão às marcas Amazon, Starbucks, Coca-Cola e McDonalds ressaltam esse aspecto da colonialidade/imperialidade que domina de forma econômica e cultural a América Latina. Como mecanismo de um sistema produtor de injustiças e desigualdade, a imperialidade reservou aos povos da América Latina um papel de subalternidade, de mão-de-obra barata e de existência descartável, eternamente produtores de matéria-prima e mercadorias primárias na divisão internacional do trabalho, como já preconizava Eduardo Galeano ao escrever sobre as veias abertas latino-americanas. Com o avanço do neoliberalismo e a financeirização do capital, a influência imperialista na economia e política dos governos latino-americanos incentivou políticas de austeridade econômica, privatizações de bens e serviços públicos, além da repressão aos movimentos sociais e militarização com foco em combate aos “inimigos internos”, como no caso do narcotráfico, bem representado em This is not America em países como Colômbia, México e Brasil.

Por falar em Brasil, sua presença no videoclipe é bastante evidente pois, não à toa, nosso país teve o presidente de extrema direita escolhido para representar um falso nacionalismo que oculta o “entreguismo” e colaboração das elites com a espoliação de seu próprio povo e território, utilizando a bandeira verde e amarela como guardanapo sob o olhar intrépido de uma criança ianomâmi. Vale ressaltar que, sob o manto de nossa diversidade cultural, marcada pela diáspora africana e pela colonização portuguesa, a latinidade brasileira possui especificidades da “colonialidade/modernidade”, mas cujos enfrentamentos diante da “imperialidade” se assemelham aos de nossos vizinhos de continente.

Pero ni con toda la marina
Pueden sacar de la vitrina la peste campesina
Esto va pa’l capataz de la empresa
El machete no solo es pa’ cortar caña
También es pa’ cortar cabezas

 

Representação de mulheres do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Em determinado momento, This is not America parece que vai se encerrar com a encenação trágica e simbólica do assassinato de Victor Jara, músico e ativista chileno contra a ditadura de Pinochet, mas a mensagem final do videoclipe é sobre a resistência anti-colonial e anti-imperialista na América Latina, presente nos protestos estudantis de rua e/ou na luta popular organizada. Diante da violência e exploração no contexto da colonialidade/imperialidade, foi a resistência dos povos subjugados que impôs limites a esse projeto de poder. Se o termo América Latina surge como uma invenção identitária do século XIX que secundarizou as populações originárias, a solidariedade entre as populações latino-americanas subalternizadas define uma ressignificação de seu sentido histórico e político como um elo importante da decolonialidade.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BALLESTRIN, Luciana M. de Aragão. Modernidade/Colonialidade sem “Imperialidade”? O Elo Perdido do Giro Decolonial. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 60, n. 2, 2017, p. 505-540.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: LPM, 2016

PRASHAD, Vijay. Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e assassinatos. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais- perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Clacso, 2005, p. 107-30.

 

 

 


Crédito na imagem: Reprodução. Clipe “This is not America” de Residente ft. Ibeyi

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Miléia Santos Almeida

Doutoranda em História pela Universidade de Brasília, pesquisando mulheres e maternidade nos sertões baianos. Professora da Secretaria de Educação do Estado da Bahia.

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