Pele negra, máscaras brancas e o clipe Hat-Trick

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No dia 13 de março de 2019, Djonga lançou o seu álbum “Ladrão”. Como ele mesmo diz em diversas entrevistas, esse é um trabalho de base, um trabalho que exalta e valoriza as suas raízes. É como uma espécie de Hobin Hood da favela que ele se apresenta ali, mostrando que mesmo com a vida o elevando a novos patamares – a partir de seu trabalho -, ele nunca vai se esquecer de onde veio.

A faixa de abertura intitulada “Hat-Trick” é uma verdadeira lição de vida. Ela inicia de forma forte, sem introdução, com Djonga rasgando a voz (como já é de costume) e fazendo os seus ouvintes se arrepiarem com palavras que relatam sua experiência de vida, o que na verdade é um pouco do dia-dia de todo jovem negro de periferia do Brasil que quer mudar a sua realidade.

 

Um mês depois deste lançamento, ele põe no ar o clipe da música. É sobre ele que vou discorrer aqui. Como muitos na internet já identificaram, o vídeo faz alusão a obra de Frantz Fanon “Pele negra, máscaras brancas”, o que fica evidente por meio do personagem principal do clipe: um jovem negro com o rosto pintado de tinta branca.

Frantz Fanon foi um intelectual psiquiatra que viveu entre 1925-1961 (36 anos), oriundo da classe média, ele nasceu na Martinica, território que faz parte da região ultramarina da França. É na cidade de Lyon que ele passa a ter contato com a esquerda francesa, algo que foi de extrema importância na formação de sua consciência e visão de mundo. A obra “Pele negra, máscaras brancas” seria a sua tese de doutorado, porém, a sua ideia foi recusada pelo seu orientador. Um ano depois, ele procura uma editora e a publica. Para Fanon, mudar sua visão de mundo não é o suficiente, é preciso arregaçar as mangas nessa tentativa, só a teoria não basta! Fanon dedicou parte de sua vida ao movimento de libertação na Argélia após sua formação acadêmica.

As ideias expressas nesta obra ficam explicitamente expostas no clipe dirigido e contracenado por Djonga.

O vídeo mostra a realidade de muitas pessoas negras que vivem em países que já foram colonizados por europeus. O ocidente criou a ideia de que o ser humano representa a razão, entretanto, esse ser é o homem branco, ou seja, eles formularam esse pensamento olhando apenas para eles mesmos.

Como a história nos mostra, demorou certo tempo para que os negros fossem reconhecidos como seres humanos. Para os europeus, o africano representava a emoção (deficientes de razão), em razão da forma com que essas pessoas se expressavam com os seus corpos, aliás, o corpo era algo que devia ser dominado, na visão eurocêntrica.

O africano é trazido de sua terra natal para viver em diferentes territórios do mundo dominados pelos europeus para servir de mão de obra. Após longos anos de escravidão, essa forma de trabalho é abolida. Durante esse tempo, essas pessoas geraram descendentes nesse novo habitat. Então, essa pessoa descendente de africano, tem que conviver com pessoas que tem antepassados diferentes dos seus. Isso fica expresso através da cor.

Para os europeus da época de Fanon (e para os racistas de nossos dias), quanto mais branco mais ser humano alguém era. Quem não quer ser reconhecido como ser humano? Independente da cor, todos somos seres humanos, mas ainda a pele faz com que sejamos tratados de forma diferente pela sociedade.

No clipe, o homem pintado com o rosto de tinta branca representa a vontade de se enquadrar nos padrões estabelecidos pela sociedade do que é ser humano. Para ganhar aprovação, ele nega as suas raízes, ignora aqueles que parecem consigo e tenta ser branco. Djonga, representando um espírito ancestral, aparece tentando mostrar que quando aquele homem toma essa atitude ele está vendendo a sua liberdade.

Fanon mostra que, a fim de se enquadrar nos padrões pré-estabelecidos, o negro passa a amar o mundo branco, porém, esbarra em um fato: sua pele continua sendo negra. O olhar branco não deixa de notar isso. É nesse momento que o negro entende que não dá pra se tornar branco e passa a odiar o mundo branco na mesma intensidade que o amava. Fanon enxerga esse momento como fundamental para que o negro reconheça e valorize as suas raízes, a única coisa necessária neste momento é controlar o sentimento de ódio, pois isso faz com que o negro feche os olhos para os seus próprios defeitos e, como sabemos, defeito é algo que todos os seres humanos possuem, todos estão aptos a cometer erros.

Djonga consegue convencer aquele jovem a reconhecer as suas raízes, a voltar para onde ele veio, a reconhecer os seus, entretanto, contraditoriamente, é nesse momento que o jovem é morto com um tiro. Isso gera uma reflexão: será que as pessoas querem que sejamos negros?

O vídeo segue e o tiro dado naquele jovem aparece como se tivesse acertado em Djonga (que representava o espírito ancestral). Assim, concluímos que a sociedade não aceita o negro, pois enquanto o homem seguia seu cotidiano se comportando como branco sua vida estava preservada, mas quando ele se comporta da forma que ele é de fato ele morre.

Precisamos deixar de ser negros para deixarmos de ser mortos?

Olhe os dados, em pleno século XXI os números de jovens negros mortos são números de genocídio.

E se fosse ao contrário?

 

 

 


REFERÊNCIAS

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

FANNON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008

 

 

 


Créditos na imagem: Espetáculo Pele Negra, Máscaras Brancas. Foto: Divulgação

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Jhon Lenon de Jesus Ferreira

Doutorando do PPGH-UFPE. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em 2021. Graduado do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). É membro do grupo de estudo: Nordeste Colonial e Imperial. Atua nas linhas de pesquisa; História dos homens e mulheres negros no Nordeste Colonial; Inquisição; História da África e Diáspora Africana.

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