O primeiro fruto

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Sob a sombra daquela árvore sempre estava aquele homenzinho, ora catando as folhas que caíam, ora fazendo do tronco sua poltrona. Encostado no tronco, defronte para o quintal vizinho, ele estava sempre a folhear os seus livros, a rabiscar seus pensamentos e a buscar traços em formato de imagens nas nuvens. À tardinha, ponhava-se a desfrutar o pôr do sol que o banhava com seus raios luminosos. Em circunstância alguma se abdicava de ver o pôr do sol! Sentia-se mesmo renovado e alegre com aquele esplendor da natureza, que ele, por vezes, acreditava que fosse o próprio holofote de Deus iluminando a sua alma…

De quando em quando, ele deitava no gramado e ficava a observar os galhos da árvore, que tortuosamente rumavam sem direção e que, impulsionado pela imaginação do homenzinho, ganhavam aspectos interessantes, às vezes tomando uma forma animal e, em outras, uma forma humana…

Essa arvorezinha foi plantada pelo franzino homem há bastante tempo. Ele cuidou dela com tamanha devoção que parecia cuidar da própria árvore do paraíso. Mas a árvore, depois de crescida, nunca deu frutos..

Ah, e seus amigos jamais deixavam de o aconselhar:

‒ Ponha ao chão essa figueira de Cristo!

Entretanto, o homem de poucas palavras também tinha poucos ouvidos… e a árvore continuou lá! Com seus galhos tortos, crescendo sem direção… continuou lá! como uma grande amiga; taciturna como ele, continuou lá! comunicando-se por sinais; continuou lá! como uma analistas junguiana, comunicando-se por símbolos e concebendo do seu tronco um divã… continuou lá!

… Passaram-se os anos.

Agora, o homenzinho, que já não era tão jovem, ganhou muitos cabelos brancos e profundos sulcos sobre a cara, o que dava a ele a aparência dos velhos sábios, desses que abandonam o mundo e vão fazer dos bosques e montanhas suas moradas. Mas ele, ao contrário desses velhos sábios, optou por fazer de si mesmo seu refúgio, tornando-se um eremita no interior de seus próprios pensamentos.

Mas não fora somente o homem que envelhecera. A árvore, sua fiel companhia, também sentiu o girar dos ponteiros da existência: exauriu-se de vida. Inicialmente, assistiu-se as suas folhas sendo roubadas pelo tempo; depois, por consequência, viu-se os seus galhos e troncos ressecando. Assim, foi-se também a sombra e, em seu lugar, ficou o forte clarão do sol, que dava direto para o solo, causando assimétricas rachaduras.

… daí em diante, a sombra que sumiu do quintal, agora, milagrosamente reaparecia. Ela emergiu do caos contido no íntimo daquele homem; brotou na  alma, nos seus pensamentos, na sua consciência que, pouco a pouco, foi tomando soturnos contornos…

… em determinada manhã, ele acordou envolto por aquela atmosfera mórbida… sentia um cansaço enorme! seu corpo parecia pesado e seus olhos abriam preguiçosamente… o ambiente tava tomado por um silêncio gritante… ele sentia um vento invernal adentrando pelos fundos da sua alma, batendo portas, assobiando agudamente e fazendo urdir aspirações fatais… o seu eu eremita parecia ter sido encontrado!

Então o homem, acolhendo sua última coragem para a vida, ergueu-se! Levantou da cama e seguiu, como que contando os passos, até o quintal. Lá ficou defronte à árvore, provido de um caderno, uma caneta e uma trena: mediu a árvore, tomou notas, fez rabiscos obscuros e depois regressou à casa.

… adentrando a porta, lançou-se pesadamente sobre a cadeira e jogou seu velho caderno sobre a mesa… e depois seguiu, mecanicamente, em direção ao banheiro. Tomou banho, fez a barba e vestiu a sua melhor roupa… em seguida, botou a cara na rua deserta e caminhou… andou arrastadamente, como que se levasse nas costas todo o peso da condição humana… ele foi até a vendinha da esquina, que tava completamente vazia e suja, ganhando um ar fétido e putrefato… e então rapidamente pegou algo e regressou.

Retornando, sentou à mesa e fitou o caderno, que continuava lá no mesmo lugar que deixara, meio que aberto, como se o esperasse. Ele ficou olhando para o caderno… arrancou uma folha e tentou rabiscar alguma coisa… Sem sucesso, amassou a folha e arremessou ao lixo…

‒ Escrever pra quem? ‒ Resmungou de dentro da caverna de seus pensamentos…

Então se dirigiu à janela e observou, novamente, a árvore. Ainda tava lá, com aqueles galhos tortuosos, carente de frutos e de folhas. Pensou que ela parecia sua alma exteriorizada e plantada ali: sem vida!… então voltou novamente à mesa, sentou e ficou fitando o vazio… em seguida regressou para a realidade, despido de alegria… e tão logo retornou a si, apanhou o produto que pegara na vendinha… verificou o tamanho, testou a resistência fazendo força com a mão… pegou uma de suas cadeiras e desceu para o quintal…

…já era o pôr do sol e a grande estrela brilhava no horizonte como nunca, lançando raios luminosos por entre os galhos daquela árvore, dando a ela uma aparência avermelhada. Um verdadeiro espetáculo sem plateia! E sob um de seus galhos iluminados poderia ser avistado o seu primeiro fruto, nascido do ventre de uma vida vazia e tristemente solitária…

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://1freewallpapers.com/tree-sunlight-rays-sunset/pt

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Jeferson do Nascimento Machado

Possuo graduação (2016) e mestrado (2019) em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste. Minha pesquisa de mestrado concentrou-se na "História da Capoeira na Região de Ponta Grossa", explorando espaços de práticas e resgatando aspectos culturais significativos. Fui colunista da Revista África e Africanidades, onde abordei temas relacionados à Capoeira e, atualmente, sou professor PSS no Estado do Paraná.

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