Continho natalino

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para minha mãe

 

 

a brincadeira na família era ser mau

 

 

 

A madrinha dava, no Natal, todos os anos, meias, guarda-chuvas. Penso que ela nutria horror à água. Sentia frio nas extremidades. Ela dava lenços, pulôveres. Dava o que dava. Creio que ela não nutria nada. Tinha horror de sol e chuva, abominava casamento de viúva.

A madrinha não era fada. Era escorpiana. Tinha uma irmã geminiana, com quem o afilhado mais se identificava; embora, difícil, de amargar. Identificavam-se porque, asas no capacete, asas nos pés, com ou sem sandálias, eram mercuriais.

Ai do afilhado, ai do afilhado…

Ele era sobrinho das duas. Da madrinha e da irmã geminiana da madrinha.

As tias costumavam ser amigas. Saíam, passeavam. Batiam pernas pela Rua Voluntários da Pátria; pelas adjacências do bairro. Iam à cidade, que era jeito de nomear o centro velho de São Paulo.

Ocorre que a madrinha gostava de andar na calçada em que não batesse sol, enquanto a irmã dela preferia calçadas solares, sem sombras.

A madrinha não gostava de água. Fazia água. A tia geminiana tomava chuva de verão todo ano. Era só entrar a estação.

A terceira margem desta história, desta rua de contar histórias, a terceira calçada é que a madrinha ainda está viva. A irmã era muito Idalina, muito Ida; já foi embora. Para o sobrinho, afilhado de sua irmã escorpiana, não dava nada, não deixou nada.

Nada?

Deixou um sorriso de gato numa colagem de papéis coloridos, dois poemas datilografados e uma pintura de peixe em tinta acrílica. Deixou uma herança crítica.

Ai do sobrinho, ai do sobrinho… Afilhado, afilhadinho; sobradinho.

Ele desembrulha um pacote de presente embaixo da árvore. O pacote é vário, vazio, variado.

Ai do afilhado aflitozinho… O vazio, na verdade, é pleno de possibilidades.

Nas carnes da madrinha, cada vez mais encolhidinha, desidratadinha, as meias, os guarda-chuvas, os lenços são brincadeiras de fazer despedidas.

A madrinha não dá mais nada ao afilhado. Não que ele não queira. Não que ele não receba. Não dá porque não dá. A madrinha já não mais dá; não dá mais pé, não dá mais caldo.

Ai, ai, coitada da madrinha. Coitada, coitadinha, tão de José de Alencar Viuvinha! Tadinha!

Ai, ai… Esse afilhado, neto de Aurora, tão outrora magoado!

Mágoa, magoazinha, és a última Canção do Exílio do afilhado não mais exilado.

Ele brinca com o pacote vazio do passado. Brinca nos intervalos dos recheios cheios, do saco cheio do rendido Papai Noel esclerosado. Ele brinca com o pacote vazio que sabe a sabor de Idalina. Sabe que ela por ele olha. Vela. Dele cuida. Sabe que ela o faz brilhar por ele mesmo, brilhado.

Apagadas as velas desta data natalícia, deste aniversário, a madrinha se reconduz à sua própria calçada.

Idalina no cosmos brilha, estrela de Manoel dos Santos, seu marido. Descalços, sem calçadas, eles são lua e sol. Amantes num espaço-tempo improvável.

O afilhado? Não alfineta mais a madrinha. Está reconciliado. Primeiro antes com ele mesmo. Segundo depois como afilhado. Terceiro mais depois com a Madrinha inominável.

Ele constrói um Forte Apache de brincar de fazer mantras fortes. Forte Apache de desejo de ser forte. Estar forte.

Toureiro brinca de hominho. Atribui vozes a objetos sem voz, faz prosopopéias.

Apagadas as velas desta data natalícia, não há mais pegadas, nem marcas da maldade. O afilhado não é mais (nem está) aflito. Apagadas as velas, não é mais (nem está) afilhado.

Afilhadinho, sobrinho de Idalina, está (é) desapegado. Não ocupa nenhuma margem de sol, nem de sombra, nem de dúvidas. Não ocupa terceira margem.

Nada ocidental nada oriental. Transcendental atribui outros valores; outros significados. Valora, dá valor, constrói um Forte Apache.

E nas coisas que colori, nas que o colorem, cora; vai embora pleno de prana, com os chacras claros.

As águas aterrorizadoras da seca madrinha, assustadoramente, regam a goela. No presente cheio de vazios, o amor se recompõe. Põe roupa de cama, de mesa e banho onde o afilhadinho mais gosta de viver. Lugar nenhum a sua casa.

No apagar das velas, ele cria, descansa, dorme.

Se na epigrafizinha do continho contadinho de natal estivesse, o afilhadinho seria argila do modelo daquela modelagem; no entanto, perdoa a madrinha sem ser mau, mesmo parecendo Lobo Mau. Não quis causar mal, nem que mal o causassem.

Em todos os natais do afilhado, ele pedia para ganhar forte apaches. No acúmulo dos anos infantis, montou na sala de casa um verdadeiro condomínio fechado de forte apaches. E misturava personagens. Soldados, índios, mocinhos e mocinhas com alguns do Walt Disney; os tais hominhos como ele os chamava. Todos eram animados. Todos conviviam em paz. Em suas histórias orais, não havia conflitos, não havia bandidos. Não havia sinal de violência, apenas sinais de fumaça.

No Forte Apache do menino, índios e soldados nunca brigavam. Nunca brigaram.

Meia-noite, diz o badalo. Sabe o que era de amargar? Não era Idalina; não era a madrinha; de amargar (mesmo) é brigar com a madrinha, dindinha lua que o afilhado nina; dindinha lua que o menino amadrinha.

 

 

 


Créditos na imagem: “Família” – desenho de William Feitosa Nascimento

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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