Não entre nessa de “querides” e nem de “alunxs”: O conservadorismo da Esquerda Liberal

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A Esquerda Liberal, muito atuante nas redes sociais e na própria TV aberta, segue por um tipo de caminho perigoso, em que palavras carregam em si significados embutidos e efeitos mágicos no mundo. Problemas de gênero e raça, por exemplo, se resumem ao modo como os significantes são construídos, como se a materialidade das dominações fosse apenas reflexo de um jogo semiótico qualquer.

Como uma resposta a essa mania da esquerda liberal de transformar problemas complexos em problemas de caráter, além de suas estratégias idealistas como o “respeito” e certos malabarismos de linguagem, apresento a você, caro leitor, a versão da esquerda em que fui formado, aquela mais ortodoxa, muito mais materialista. No marxismo, por exemplo, chamar o proletário de colaborador, ou de meu querido funcionariozinho do coração, não altera em nada o problema material da desigualdade de classe. Ou seja, não importa o nome dado, o rótulo sugerido, muito menos a intenção por trás dessas manobras, já que o sujeito continua vendendo sua força de trabalho, da mesma forma que sua mais-valia é capturada todo final do mês.

Outros problemas sociais, como aqueles envolvendo raça e gênero, também não podem ser tratados como simples detalhes linguísticos, muito menos como desdobramentos do caráter de alguém. Na verdade, esse gesto acaba seguindo um caminho bem conservador, porque retira do horizonte as reais forças que operam e modelam as relações, assim como coloca a responsabilidade na livre iniciativa de indivíduos “éticos” e de “bom coração”. Isso significa que não adianta chamar meninos e meninas de “meninxs”, principalmente se o espaço material em que vivem estabelece uma diferenciação clara entre dois (e apenas dois) gêneros. Exemplo: banheiros, roupas, padrões de beleza, além de outros espaços e coisas que se apresentam de formas dualistas e com fronteiras claras e inconfundíveis. O que precisa ser transformado são os vínculos concretos ao redor e não a linguagem disponível. Esse gesto apenas cria a falsa impressão de que estamos fazendo alguma coisa, quando, no fundo, estamos apenas jogando a poeira debaixo de um tapete fino e nada discreto.  Precisamos, aí sim, de uma maior diversidade de banheiros, de roupas, de padrões de beleza, de programas de TV, filmes, séries, etc. Se o mundo é materialmente dualista, não importa se nossa linguagem é neutra… ISSO NÃO ALTERA EM NADA. É de um idealismo perigoso acreditar que a mudança na linguagem produz uma mudança no mundo, sendo que o ponto é justamente o contrário.

Nos Estados Unidos, por exemplo, existe um termo bem agressivo e racista, e que provavelmente você já deve ter ouvido em algum momento, em algum lugar. Nigger é uma palavra tão ofensiva, tão violenta, que nem sequer é mencionada em voz alta, em nenhuma circunstância. Normalmente falam da “N word”, ou seja, a palavra com N. Apesar do caráter extremamente ofensivo, o movimento negro a ressignificou, conferindo a ela melhores contornos, ao menos dentro da sua própria comunidade. O mesmo se aplica com a palavra QUEER, que também foi ressignificada. O que esses dois exemplos nos mostram, o que nos ensinam sobre o real papel da esquerda nos dias de hoje? Eles sugerem que significantes não são nada em si mesmos, mas dependem da forma como nós concretamente lutamos, reivindicamos e nos organizamos. São as relações materiais que alteram a realidade e não a simples troca de palavras ou um tipo diferente de símbolo no fim de um substantivo qualquer (X, @, %, *, &). Quando essas redes de relações se alteram, significados se alteram também, assim como os contornos da linguagem ganham novas dimensões. Da mesma maneira que a palavra Queer não é nada em si mesma, o substantivo “aluno” ou “estudante” não traz consigo nenhuma essência, a não ser um conjunto de relações materiais que pedem por transformação.

Chamar meus alunos de “alunxs” é um esforço quase inútil, assim como conservador, até porque aprendemos desde sempre, em especial graças ao pós-estruturalismo, que os significantes fazem parte de redes, não contendo essências ou substâncias. Chamar meus alunos de “alunxs” não é garantia nenhuma de um tratamento igualitário, muito menos de um maior respeito. Os “Alunxs” depende do modo como a aula é construída, as relações são estabelecidas e as trocas costuradas. Portanto, é o uso pragmático dessa linguagem, em contextos concretos de relações, que definem seus contornos preconceituosos, e não um tipo de substância presente no interior de uma palavra, de um verbo ou de um substantivo. Da mesma forma que a cor verde não é nada em si, a palavra ALUNO também é apenas uma carcaça vazia. É preciso observar em quais relações aquele significante participa, qual rede diferencial o constitui, da mesma maneira que uma COR depende de uma certa estrutura semiótica, podendo ser encontrada em um semáforo, em uma fruta, em uma parede ou até em uma pintura.

A crença de que a opressão pode ser contornada por uma simples troca de significantes, nada mais é do que uma face idealista da famosa Esquerda Liberal, aquela que passeia pelas redes sociais com um sentimento claro de superioridade ética. É preciso entender que o acolhimento do outro não passa por uma troca de palavras… acolhemos o outro na materialidade do dia-a-dia, no modo como as coisas se organizam, assim como as relações se estabelecem, e até mesmo como usamos a própria linguagem dentro de uma certa rede de relações. Palavras não dizem nada, já que dependem de encontros materiais e de uma malha concreta de acontecimentos. Por isso me recuso a mergulhar nesse circuito do “Querides”, “Alunxs”, “Alun@s”, da mesma forma que me recuso a acolher estratégias idealistas como o “RESPEITO” e outras táticas liberais.

Precisamos retomar não apenas um clássico materialismo, mas também uma dimensão pragmática que entende a linguagem enquanto uso, ou seja, em suas trocas, em suas relações, em seus encontros. É preciso “desubstancializar” nossa noção de linguagem, o que é meio irônico porque esse gesto já tinha sido feito antes, mas, por alguma razão bizarra, e que ainda não entendo o motivo, nos tornamos idealistas, substancialistas, essencialistas… e tantos outros “istas” que por tantas décadas criticamos. Seria uma nova forma de hipocrisia? Embora pareça um clichê enorme, e eu sei disso, minha sugestão é um retorno imediato a Marx, aos seus textos, principalmente a Ideologia Alemã. Precisamos reviver, mais uma vez, o materialismo que foi perdido, caso contrário eu não tenho a mínima ideia onde vamos parar.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Ilustração disponível em: https://br.pinterest.com/pin/190488259223272668/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago de Araujo Pinho

Thiago Pinho é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi pesquisador convidado na Sci-Arc (Los Angeles, EUA), em 2020. Atualmente é professor substituto da própria UFBA-IHAC e tutor na SPIRES (British Tutoring). Também escreveu dois livros sobre Teoria Social: “Descentrando a Linguagem” (Zarte, 2018) e “Sintomas” (Paco, 2019).

1 comment

  1. Luíza Moreira 2 janeiro, 2021 at 13:27 Responder

    Texto maravilhoso. Gosto de reforçar que sou lésbica, não queer, que sou mulher, não “pessoa que tem útero”. A alienação do ser e das realidades sociais nos distancia da luta e cria um falso senso de que as coisas estão melhorando. Vejo como as mulheres argentinas, depois de anos e anos de luta, conquistaram o direito ao aborto. Veja bem, se o assunto do aborto é um assunto que fere “pessoas” e não mulheres então um homem conservador que nunca enfrentará a gravidez tem uma opinião tão válida quanto as mulheres. E bem sabemos, isso não é verdade.

    O afastamento da materialidade nos círculos de esquerda não é um avanço mas um retrocesso para nossas lutas.

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