Os impasses da regulamentação da profissão do Historiador em tempos de bolsonarização do Brasil

Na última sexta-feira (24/04), o presidente Jair Bolsonaro vetou o projeto de lei 368/2009 – aprovado por unanimidade pelo Senado Federal no dia 18 de fevereiro de 2020 – que regulamenta a profissão de historiador(a), alegando que a proposta legislativa ofenderia o direito fundamental previsto na Constituição ao “restringir o livre exercício profissional”. Sua decisão também se justifica na medida em que o projeto atingiria o núcleo essencial do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, onde se lê “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Na conjuntura em que a pandemia do novo deveria ser a pauta central do debate público, Bolsonaro impede que se concretize uma pauta de longa data dos(as) historiadores(as) brasileiros(as). O objetivo desse texto é refletir, ainda que de maneira breve, sobre os motivos pelos quais o presidente considerou o projeto inconstitucional, mesmo respaldado por todas as comissões pertinentes da Câmara e do Senado.

No dia 24 de abril, dia do veto ao projeto de lei que regulamenta a profissão dos historiadores, o governo Bolsonaro foi profundamente abalado pelas graves acusações do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro de interferência política no episódio envolvendo a troca do diretor-geral da Polícia Federal. Em seu pronunciamento, Bolsonaro aproveitou a oportunidade para defender e elogiar o trabalho do ministro da Educação Abraham Weintraub em sua luta incansável contra o avanço das ideias de esquerda em escolas e universidades públicas, herança dos governos petistas[1].

Essa batalha por corpos, corações e mentes contra o esquerdismo, diz Angela Alonso, deve ser vista como “parte da guerra por uma sociedade segura e moralizada” (ALONSO, 2019, p. 49-50). Na avaliação de Sérgio da Mata, uma das características da teologia política radical do governo Bolsonaro é a difusão de um persistente anti-intelectualismo, isto é, a tendência a reservar um curto espaço para o debate acadêmico, para o experimento intelectual e para discernir de forma matizada tonalidades de opinião distintas (MATA, 2020, p. 64).

Além do anti-intelectualismo, o fenômeno complexo e multifatorial da “bolsonarização” da sociedade brasileira traz em seu bojo outros elementos altamente prejudiciais para a democracia, a saber, a retórica antissistema, a instrumentalização dos anseios de renovação política, o louvor a uma justiça messiânica, o antipartidarismo e a visão do adversário político como inimigo a ser aniquilado. No limite, a candidatura de Bolsonaro foi construída a partir da negação das diferenças e da exaltação de um pensamento único e brutalizado (SOLANO, 2019, p. 260).

No contexto em que a Covid-19 já ceifou a vida de mais de 4.500 pessoas e em que o país se encontra à beira do colapso do sistema público de saúde, atingindo particularmente os segmentos mais vulneráveis, Bolsonaro rompeu o distanciamento social (contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde) para participar ativamente de duas manifestações golpistas e autoritárias que reivindicavam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, bem como a reedição de um novo Ato Institucional nº. 5: a primeira no dia 15 de março em frente ao Palácio do Planalto; e a seguinte em 19 de abril em frente ao quartel-general do Exército.

Convém recordar que o AI-5, de dezembro de 1968, significou um aprofundamento e radicalização da ditadura militar instaurada em 1964 no Brasil. O novo ato autoritário se prestava não apenas a intensificar a repressão sobre a esquerda, mas, sobretudo, para enquadrar os dissidentes, como é visível no registro de mortos, torturados e desaparecidos[2]. O presidente, cujos poderes eram praticamente ilimitados, podia fechar as casas parlamentares, cassar mandatos e direitos políticos dos cidadãos, confiscar bens acumulados no exercício de cargos públicos, censurar a imprensa e decretar estado de sítio. Ademais, ficava suspensa a garantia de habeas corpus para crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. O governo poderia ainda demitir, remover ou aposentar qualquer servidor público, sem necessidade de processo ou inquérito regular (MOTTA, 2018, p. 202).

Em 31 de março deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão utilizou sua conta no Twitter para publicar uma mensagem exaltando o golpe civil-militar de 1964: “Há 56 anos, as Forças Armadas intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição do general Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil”, escreveu Mourão. O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, o qualificou de “marco para a democracia brasileira”. Vistas em conjunto, tais celebrações e ameaças (a incluir as do ministro da Economia Paulo Guedes e as do deputado federal Eduardo Bolsonaro) tendem a “[…] relativizar a gravidade dos atos cometidos durante esse período sombrio, marcado por violência, autoritarismo, corrupção e gravíssimas violações de direitos humanos perpetradas contra cidadãos em todo o país”[3].

Na esteira das reflexões de Angela de Castro Gomes, o elogio à ditadura militar, estabelecendo-se o negacionismo na história do Brasil, é a “cereja do bolo” do projeto bolsonarista, pois a “verdade histórica” deixa de ser fruto de pesquisas e debates científicos e se torna aquilo que o governo decide que é “sua verdade”. O caso mais emblemático desse processo ocorreu durante a votação do impeachment em abril de 2016, quando na sessão da Câmara dos Deputados Bolsonaro votou “pela memória” de Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi do 2º Exército em São Paulo, que havia torturado Dilma Rousseff, e pelos “militares de 1964”.

A apologia ao machismo, ao racismo e à homofobia e a violência como fundamentos culturais positivos da identidade brasileira e instrumento político eficiente e “legal” de eliminação (inclusive física) do que é definido como indesejável, é algo novo e assustador, mesmo que tudo isso seja feito “em nome da pátria e de Deus, com Constituição e Bíblia na mão” (GOMES, 2019, p. 153-154). Direitos arduamente conquistados pelo conjunto da população brasileira, como a liberdade de expressão, e até mesmo os que a Constituição de 1988 estabelece como irrenunciáveis, estão sob sua mira. O que torna Bolsonaro e seu projeto de país uma clara ameaça efetiva ao nosso regime democrático (GOMES, 2019, p. 154-155).

É possível interpretar o veto presidencial à profissionalização do historiador a partir dos valores que alicerçam a “comunidade moral bolsonarista”, que em códigos binários dividem o mundo em bem e mal, sagrado e profano, gente de família e indecentes, cidadãos de bem e bandidos, éticos e corruptos, nacionalistas e globalistas. Esses binarismos primários, que reduzem a complexidade do real a estereótipos, facilitam os julgamentos instantâneos. Por isso, a comunidade moral bolsonarista teme a ameaça comunista da Guerra Fria, reencarnada em Cuba e Venezuela (ALONSO, 2019, p. 42).

Lançando mão de uma verborragia feroz, essa comunidade procura demarcar o espaço das redes sociais como um lugar a se travar uma “guerra cultural”. Nesse sentido, todos os xingamentos servem para deslegitimar reivindicações de minorias (sexuais e étnicas), justificar o golpe militar de 1964 e a tortura como inevitabilidades ante a ameaça comunista. Além é claro de condenar a Comissão da Verdade, celebrar ícones da ditadura e associar a corrupção aos “petralhas” (ALONSO, 2019, p. 43-44).

Entre os preceitos da “comunidade moral bolsonarista” – com atuação destacada e eficaz nas redes sociais –, destacaríamos a veiculação de formas brevíssimas, tuites e memes, estimulando mensagens curtas, diretas e de compreensão imediata. Ao acolher o incisivo, o autoexplicativo, o chavão e o caricato, a comunidade moral bolsonarista traz um tom mais opinativo que analítico, que abre mão de teorias, não persuadindo por argumentação, mas por repetição (ALONSO, 2019, p. 53).

Está claro, portanto, que Bolsonaro utilizou-se de maneira ardilosa do texto constitucional, subvertendo sua premissa de assegurar direitos, para impedir que os(as) historiadores(as) tenham respaldo legal/institucional enquanto abre espaço para grupos ultraconservadores que utilizam o conhecimento histórico como forma de legitimar e difundir os negacionismos relacionados ao racismo, a escravidão, a homofobia, o Holocausto, a ditadura militar, entre outros temas correlatos (CARVALHO, 2020).

Por outro lado, a ausência de uma lei regulamentadora como quer o governo federal implicará desvantagens profissionais significativas, uma vez que os órgãos públicos como tribunais, casas legislativas, arquivos, bibliotecas, museus só podem fazer concurso para historiador se houver a regulamentação. Na ausência da lei deixam de abrir vagas para esses profissionais ou, em certos casos, lançam mão de arranjos ou improvisações (MOTTA, 2015).

Um dos principais objetivos do projeto é garantir que somente profissionais com formação específica lecionem no ensino básico. O projeto de lei prevê que apenas historiadores licenciados devem lecionar a respectiva disciplina no ensino fundamental e médio. Contudo, não está no horizonte do governo atual fortalecer a graduação em História, valorizar a nossa profissão e tornar a carreira um pouco mais atraente para os jovens. Na contramão do que Bolsonaro alega, nenhuma lei ordinária pode se sobrepor à liberdade de expressão, continuando livre a pesquisa e a publicação. A lei serviria apenas para regular parte do mercado de trabalho, com exceção do ensino superior (MOTTA, 2015).

Por fim, creio que devemos interpretar o veto presidencial como mais uma tentativa de silenciamento, ao mesmo tempo em que ele é bastante revelador de um (des)governo que está desmoronando. Espero que nós historiadores possamos assumir, ao lado dos movimentos sociais, a tarefa urgente de ampliar as redes de solidariedade e as vozes que denunciam o drama que estamos presenciando: a escalada autoritária, o descaso com a população negra e periférica, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e caiçaras. Precisamos reafirmar o compromisso com a vida e nos somar à luta para impedir que o Estado brasileiro caminhe de vez em direção a uma catástrofe, antes que seja tarde demais.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALONSO, Angela. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, Sérgio et al. Democracia em risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Regulamentação da profissão de historiador no Brasil: muitas oportunidades e um risco considerável. In: Café História – história feita em cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/regulamentacao-da-profissao-de-historiador-riscos-oportunidades/  Publicado em: 24 fev. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: 27 abr. 2020.

GOMES, Angela de Castro. A política brasileira em tempos de cólera. In: ABRANCHES, Sérgio et al. Democracia em risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MATA, Sérgio da. A teologia política do governo Bolsonaro. In: KLEN, Bruna; PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Sobre as origens e motivações do Ato Institucional 5. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 38, n. 79, p. 195-216, 2018.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Porque vale a pena regulamentar a profissão de historiador. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/454-porque-vale-a-pena-regulamentar-a-profissao-de-historiador Acesso em: 27 abr. 2020.

PENNA, Fernando. O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido”. In: MIGUEL, Luís Felipe; SOLANO, Esther (orgs.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.

SOLANO, Esther. A bolsonarização do Brasil. In: ABRANCHES, Sérgio et al. Democracia em risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 

 

 


NOTAS

[1] A campanha de ódio aos professores por meio do projeto “Escola sem Partido” tem tido efeitos bastante deletérios desde a sua criação (2004) como, por exemplo, a autocensura por medo de notificações extrajudiciais, processos por danos morais, demissões, violência física e até mesmo ameaças de morte (PENNA, 2018, p. 112). Durante a campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro chegou a propor o ensino a distância como forma mais eficaz para combater o marxismo e reduzir custos. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/bolsonaro-propoe-ensino-a-distancia-para-combater-marxismo-e-reduzir-custos.shtml

[2] De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, 434 pessoas morreram e/ou desapareceram nas mãos do Estado. Estima-se ainda que cerca de 20 mil pessoas foram torturadas entre 1964-1985.

[3] https://vladimirherzog.org/justica-proibe-governo-bolsonaro-de-comemorar-golpe-de-1964/

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Marco Antônio Machado Lima Pereira

Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Realizou estágio sanduíche na Universidad de Castilla-La Mancha (2013-2014, Bolsa CAPES/PDSE). Possui graduação em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Mestrado em História e Cultura Política pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Franca). Tem experiência com ensino e pesquisa nas áreas de História do Brasil República e História Contemporânea. Suas pesquisas mais recentes concentram-se em questões relacionadas ao anticomunismo católico no Brasil Republicano e à atuação das esquerdas no século XX, notadamente no período entreguerras. Autor do livro Las armas y las letras dos voluntários brasileiros na guerra civil espanhola: identidades, memórias e trajetórias (Porto Alegre: Multifoco, 2017).

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