Benjamin, Freire e Emicida: o sol só vem depois!

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A Tese IV de Walter Benjamin começa, a meu ver, bastante provocativa, talvez a palavra irônica caiba como adjetivo para a escolha de uma frase de Hegel que associa o comer e o vestir como entrada para o reino dos céus.

Dois pontos aqui justificam a escolha desse adjetivo: primeiro o conceito tão atualizado de que se serve o capitalismo sobre o vestir e comer; o segundo ponto é a consciência de que o homem só realmente consegue se inserir na sociedade quando está minimamente considerado nela, ou seja, vestido e nutrido, de modo tão sórdido que aquele que não come – ou não lhe sobra as sobras de uma parte da humanidade – já não é humano, como nos assombra Manuel Bandeira no poema O bicho.

A referida tese continua para justificar o pensamento benjaminiano de que há mais que uma luta de classes pelas coisas materiais, há outra, mais fina, das coisas espirituais, assim, o vestir e comer estão antes da revolução, mas não fora dela. As considerações de Benjamin vão além da simples análise da luta de classes considerando apenas as esferas materiais dentro dos conceitos de infraestrutura e superestrutura.

A ele interessa considerar que a luta pelas coisas materiais tem em si também considerações do espiritual, pois coisas espirituais que movem os oprimidos como a coragem, o humor, a astúcia e a tenacidade sempre recordarão aos dominantes da força dos dominados, e “colocarão em questão cada vitória que couber aos dominantes.” Esses sentimentos nos grupos marginalizados são em tempos de crise reafirmados e expressos na forma de arte e de engajamento. Talvez o ano de 2021 no Brasil seja exemplo não tão raro, mas bem exato dessa afirmação quando uma das frases mais usadas foi de um humorista, gay, vítima do negacionismo científico que afirmava em uma de suas últimas aparições: “Eu faço palhaçada, você ri, eu fico com o coração preenchido aqui. Eu me sinto realizado de estar conseguindo te fazer feliz. Rir é um ato de resistência”1.

Assim, fazer o outro rir, usar das artes escritas e cênicas são formas de resistir a um país que insiste em colocar à margem aqueles que, cada vez em maior número, não comem nem vestem. Os elementos tratados como espirituais que envolvem as motivações, os sentimentos, a arte e as formas de resistência ao opressor são trazidas pelo

texto de Benjamin para a reflexão sobre a luta de classes, em síntese sua concepção está intrinsecamente ligada a afirmação de que “o que está em jogo na luta é material, mas a motivação dos atores sociais é espiritual”

Nesse ponto, o elemento central escolhido é a imagem do sol: “Como flores que se voltam corolas para o sol, assim o que foi aspira, por um secreto heliotropismo, a voltar-se para o sol que está a se levantar no céu da história.”

Löwy explica que a noção de sol apresentado por Benjamin não é o simbólico sol que ilumina no futuro as vitórias dos oprimidos, trata-se aqui de considera-lo como o presente que ilumina o passado e reconhece as vitórias dos opressores ao mesmo tempo que enfraquece sua legitimidade.2 Dessa forma, embora seja bastante comum associar a noção da energia solar como um advento do futuro e uma iluminação de um porvir brilhante inúmeras vezes revolucionário, no texto benjaminiano é a energia do sol que ilumina as lutas do presente numa confluência presente e passado.

Importa ressaltar que a energia desse sol-passado, sentida nas reflexões sobre as lutas de classe, envolve mais do que a sua expressão literal. É uma sensação, um sentimento que acompanha os homens nas suas lutas cotidianas, não precisa dizer que ele está ali. É uma energia que permanece como pode ser percebida no poema Canção óbvia de Paulo Freire.

 

Canção Óbvia

Escolhi a sombra desta árvore para

repousar do muito que farei,

enquanto esperarei por ti.

Quem espera na pura espera

vive um tempo de espera vã.

Por isto, enquanto te espero

trabalharei os campos e

conversarei com os homens.

Suarei meu corpo, que o sol queimará,

minhas mãos ficarão calejadas,

meus pés aprenderão o mistério dos caminhos,

meus ouvidos ouvirão mais,

meus olhos verão o que antes não viam,

enquanto esperarei por ti.

Não te esperarei na pura espera

porque o meu tempo de espera é um

tempo de quefazer.

Desconfiarei daqueles que virão dizer-me,

em voz baixa e precavidos:

É perigoso agir

É perigoso falar

É perigoso andar

É perigoso, esperar, na forma em que esperas,

porque esses recusam a alegria de tua chegada.

Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me,

com palavras fáceis, que já chegaste,

porque esses, ao anunciar-te ingenuamente,

antes te denunciam.

Estarei preparando a tua chegada

como o jardineiro prepara o jardim

para a rosa que se abrirá na primavera.

 

O poema foi escrito aproximadamente um ano após Paulo Freire chegar à Europa [1973] para seguir o seu exílio, assim tanto o contexto biográfico quanto o histórico da ditadura militar marcam a tônica melancólica e esperançosa do poema. Se hoje sabemos bem a trajetória desse pensador do mundo, lá nos idos de 1970 após a experiência de alfabetização de Angicos (1963) e o golpe militar que havia interrompido não apenas os projetos de país, mas suas aspirações pessoais, as coisas não se apresentavam claras.

Naquele momento da escrita do poema, o projeto de transformação social através da Educação estava em suspense. No entanto, o sol ainda está para se levantar e todos os sentidos serão aguçados pelo trabalho sob o sol. A sinergia entre o sol e o homem, o passado e o presente resulta no poema em um tempo de não-espera. Um tempo de quefazer. Notório que há uma recusa do esperar em repouso, ao mesmo tempo que há uma posição bastante equilibrada entre o medo da busca e a precipitação de um encontro pouco esclarecido. Há trabalho. Há luta. Há comunhão entre os homens. Há comunhão com a natureza. E há um refazer de todo o espaço em que o homem habita e do próprio homem num tempo que poderia ser apenas de espera.

Acho difícil ler o poema sem pensar na energia do sol para o trabalhador rural. Já no primeiro verso a energia solar força a busca por uma sombra. Essa mesma força que obriga o refúgio é aquela que ocasiona modificações no homem que ao esperar, trabalha em si e no mundo a sua volta. Os sentidos são apurados pelo trabalho incessante ao sol.

A energia do sol que aparece como palavra apenas no nono verso alimenta todas as mudanças tanto no homem quanto no ambiente que ele vai recriando, bem como no seu entendimento do mundo ao desconfiar daqueles que não entendem o seu fazer

histórico no mundo em transformação. Essa mesma energia ainda suspensa, ao final, acompanha o jardineiro que prepara o jardim para a rosa que vai ainda nascer. Não seria essa mesma energia a impulsionadora das lutas históricas dos oprimidos que o obriga a refletir sobre? Tendo a considerar que sim.

A energia solar que aparece no poema de Freire é bastante parecida com a de Benjamin, apesar do eu-lírico no poema freireano estar dialogando num futuro utópico é o sol do presente que obriga ao repouso à sombra da árvore e também acompanha o trabalho incessante e iluminará todas as transformações num futuro. Há nessa iluminação solar uma energia do presente que reflete sobre o futuro e também no presente do futuro, em todos os momentos a energia solar está presente pelo avivamento do trabalho a ser feito e sendo feito. A iluminação das lutas colocadas, da conversa com os homens e dos frutos do campo está intrinsecamente ligada à energia de um passado também de lutas de outros homens – ou do mesmo homem – em constante transformação.

Assim, o sol é mais do que um acontecimento necessário e inevitável, ou ainda um único e iluminador, é antes uma constante recordação de outros dias de sol que também foram dias de luta – e nem sempre de glória. É, pois, símbolo da própria luta e da utopia que inspira. O elemento transformador e utópico do sol está também nas lutas cotidianas dos trabalhadores. É o sol que transforma a vida dos homens e ilumina as utopias, clareando pelo passado as lutas do presente.

 

A ordem natural das coisas

A merendeira desce, o ônibus sai

Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce

De madruga que as aranha desce no breu

E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu

E o sol só vem depois

O sol só vem depois

É o astro rei, okay, mas vem depois

O sol só vem depois

Anunciado no latir dos cães, no cantar dos galos

Na calma das mães, que quer o rebento cem por cento

E diz “leva o documento, Sam”

Na São Paulo das manhã que tem lá seus Vietnã

Na vela que o vento apaga, afaga quando passa

A brasa dorme fria e só quem dança é a fumaça

Orvalho é o pranto dessa planta no sereno

A lua já ‘tá no Japão, como esse mundo é pequeno

Farelos de um sonho bobinho que a luz contorna

Dar um tapa no quartinho, esse ano sai a reforma

O som das criança indo pra escola convence

O feijão germina no algodão, a vida sempre vence

Nuvens curiosas, como são

Se vestem de cabelo crespo, ancião

Caminham lento, lá pra cima, o firmamento

Pois no fundo ela se finge de neblina

Pra ver o amor dos dois mundos

 

Na música-poema de Emicida, antes do sol, há as transformações advindas da sua futura chegada: a saída para o trabalho, o latir dos cães, o ruído das crianças e a dissipação do orvalho. Há em si na energia solar um tom de esperança e relembrança das lutas travadas cotidianamente e ainda a serem. Como um movimento cíclico que de forma diária retoma a vida dos oprimidos e daquela vida também marginalizada ao seu redor: a merendeira havia acordado antes do sol, mas por causa dele. As lutas dos marginalizados estão postas num passado que se levanta diariamente.

A energia solar, mais uma vez, aparece misturada a uma noção de presente, mas uma reafirmação do passado que se repete todas as manhãs. Há intrinsecamente nesse sol uma mescla de tempo. Como em Freire, é essa energia que move o trabalho que modifica a natureza no feijão que germina no algodão depois da algazarra das crianças, mas é também essa energia uma lembrança do passado e das lutas perdidas pelos oprimidos que precisam se reafirmar no espaço urbano de São Paulo que “tem lá seus Vietnã”, confabulando assim com a noção que aparece em Benjamim.

A consideração do sol como um elemento que presenteia a luta de classes como uma constante afirmação das lutas perdidas pelos oprimidos, mas que ao mesmo tempo desafiam os opressores, são “farelos de um sonho bobinho que a luz contorna”, ao mesmo tempo ilumina como uma esperança as lutas dos oprimidos que não tem um tempo de espera vã.

Esse sol como passado, elemento aglutinador das lutas e das derrotas dos oprimidos, a iluminação do trabalho, sinergia das lutas cotidianas está presente nos textos que analisamos. O sol revolucionário proletário, no entanto, que irradia um futuro brilhante a por vir, “é o astro rei, okay, mas vem depois”. Por hora, há apenas um sol-passado que com sua energia transforma o trabalhador, o trabalho e o mundo, mas o relembra que ainda há muito o que fazer.

 

 

 


NOTAS

1 https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/rir-e-um-ato-de-resistencia-homenagem-a-paulo-gustavo-destaca-sua-trajetoria/

2 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêncio. São Paulo Boitempo, 2005. p.59

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Painel Paulo Freire. CEFORTEPE – Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional Prof. “Milton de Almeida Santos”, SME-Campinas.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Raquel Silveira Martins de Melo

Doutoranda em História na UFOP onde pesquisa sobre associações de historiadores e as redes sociais. Professora da rede básica de Educação de Minas Gerais.

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