Tempo e história nas culturas indígenas

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Sobre os tempos e culturas de história entre os povos originários, é preciso pensar primeiramente em delimitar alguns limites em relação às traduções realizadas para a compreensão por parte dos não-indígenas. Isso se deve em grande parte às metodologias tradicionais de antropologia, da etnologia e da história, que pensavam (e infelizmente ainda pensam) formas de pensamentos muito próprias de seus ambientes (eurocêntricos), com certo olhar de estranhamento e que observam e registram o que era de seus interesses pessoais, por parte de seus pesquisadores. Além disso, os povos indígenas sul-americanos estiveram como objeto de certo interesse tardio da antropologia, como pode-se ler em “História da Antropologia”, de Paul Mercier.

Assim, a criação do que se conceituou por “perspectivismo ameríndio”, intensamente desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro, em “A Inconsistência da Alma Selvagem”, por exemplo, foi um divisor de águas para o mundo não-indígena começar a compreender as cosmovisões, compartilhadas por muitos povos originários. No entanto, é preciso estabelecer que grande parte de povos indígenas podem apresentar as cosmovisões de seus próprios povos, mediante suas próprias vozes, sem o intermédio de um mediador, ou mesmo “tutela” do Estado ou de um acadêmico, como tem sido feito até então. É o que apresenta a historiadora Puri, Aline Rochedo Pachamama, em “Boacé Uchô”. No livro, a autora demonstra que muitos registros etnológicos foram feitos sobre o seu povo, sem o devido rigor e sem considerar as dinâmicas socioculturais de seu povo, seja nos registros de suas histórias, seja nos registro linguísticos do tronco Macro-Jê e na tradução de suas cosmogonias. Concordando com ela está Eduardo Navarro, que denuncia equívocos históricos nos registros do Tupi antigo e que trouxe interpretações culturais equivocadas a respeito dos povos falantes de línguas desse tronco linguístico, como apresenta na Introdução do “Dicionário Tupi Antigo”.

Outro ponto que precisar ser destacado é que, por muito tempo, as histórias de criação do mundo, eternizadas nos conhecimentos milenares e história oral dos povos indígenas, foram encarados meramente como mitos e folclore. Autores como Câmara Cascurdo, autor do “Dicionário do Folclore Brasileiro”, encaravam as cosmogonias indígenas de forma estereotipada e reducionista, e não valorizavam suas crenças e religiões, assim como as aspectos culturais de suas histórias como tal em todo o mundo, como mostra Linda Smith, em “Descolonizando Metodologias”. É também devido a isso que ao trabalhar com as cosmogonias indígenas, é preciso se “encantar” por vivências que vão além de uma percepção mercantilizada e utilitarista da vida, como desenvolvem Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas, em “Encantamento: sobre política de vida”.

Por isso, a própria percepção sobre o tempo deve contornar o eurocentrismo naturalizado na história e na historiografia. Nomenclaturas como “pré-Brasil”, “descobrimento” ou mesmo “colônia”, são conceitos que marcam uma cronologia histórica eurocentrada. Antes de América, os povos originários utilizavam outros nomes para designar esse continente, em referência à essa terra, “terra mãe”, ambiente que nutria os povos e seus antepassados. O povo Kuna, originários da Colômbia, utilizava e utiliza o termo Abya Yala (terra madura), e recentemente, este trmo foi escolhido de forma a unificar entre os povos indígenas, na América Latina, o viver bem para o bem viver. Como demonstra Emil’ Keme, em “Para que Abya Yala viva, las Americas deben morrir”. O mesmo ocorre com Pindorama, palavra da língua Tupi, que significa “terra das palmeiras”, em referência ao litoral brasileiro antigamente permeado boa parte pela Mata Atlântica.

Assim, o tempo e a história nas culturas indígenas dizem respeito aos marcos que cada um desses povos consideram como referência, referenciando, sim, a presença de não-indígenas, mas também se relacionando com tempos ancestrais, conflitos entre povos e histórias de criação do mundo, salientando a elaboração do conceito de pessoal, com referência à corporalidade, ao idioma e ao corpo-território, como apresentado também por Roberto da Matta, Eduardo Viveiros de Castro e Anthony Seeger, em “A Construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. No texto, os autores apresentam como os corpos se relacionam nessas sociedades, também a partir de diferentes ligações de parentescos, interferindo assim nas formas de se relacionar com os tempos e as histórias.

A relação corpórea não se trata exclusivamente do corpo humano, mas também do humano-animal, dos inumanos e dos seres encantados. Davi Kopenawa apresenta, por exemplo, a relação histórica dos pajés com os xapiris, no livro “A Queda do Céu”, no explicando que a morte (visto por nós, não-indígenas, como o fim de um tempo individual) só existe por causa do irmão mal de Omana, Yoasi. No livro, o autor apresenta Yoasi relacionado ao branco, não-indígena, responsável por epidemias e pelo esquecimento dos ancestrais.

O esquecimento, relacionado ao tempo, está presente em muitas histórias dos chamados “tempos bem longe”,  ou ainda, “muito passado”, quando não existia nem data, como mostra Juliana Ventura, em “A Guerra dos 18 anos – repertórios do existir e resistir à Ditadura e a outros fins de Mundo”, sobre as perspectivas dos Xacriabá em relação à eventos históricos. De maneira semelhante, em um “tempo sem data”, conta-se a história de um dilúvio enviado ao povo Karajá, como castigo por terem esquecido seus sábios e antepassados, como descreveu João Américo Peret, em “Mitos e Lendas Karajás”. O tempo do dilúvio havia passado, mas sua história persistiu, como aviso para que os ancestrais não fossem mais esquecidos.

Esses ancestrais não são lembrados individualmente, pois apenas a memória coletiva os protege do esquecimento. A memória os mantêm vivos pela oralidade, e suas histórias são contadas aos mais novos pelos parentes mais velhos e seus passos exemplificados pelos presentes agora. O tempo passado se torna sem data nas penumbras do tempo, mas as pinturas rupestres oferecem resquícios arqueológicos como auxílios e “dádivas”, como mostra Marcel Mauss, em “Ensaio sobre a Dádiva”. É por isso também que a escrita muitas vezes não comporta a amplitude de informações e sensibilidades que as histórias indígenas oferecem, tendo sempre que ser encarada a partir desse limite. Há também a possibilidade do registro dessa história oral, como no caso da história dos Marubo em “O dia em que a terra deixou de cantar”, de Pedro Cesarino.

Apesar disso, a oralidade que conta as histórias indígenas ocupou seu lugar de direito também na escrita de literatura indígena, em que os tempos históricos estão registrados. Um dos inúmeros exemplos é o livro “O Karaíba”, de Daniel Munduruku, que já foi mencionado nessa coluna em outras oportunidades. Na obra, o autor subverte uma historiografia violenta e nomeia os “colonizadores” como “caçadores de alma”, relacionando-os aos etnocídios cometidos ao longo do tempo, pois afinal, o etnocídio não mata os indígenas apenas em corpo, mas mata também em seus espíritos, como já denunciou Pierre Clastres, em “Do Etnocídio”. Outro ponto que se destaca na obra de Daniel Munduruku, é a menção ao “tempo das correrias” em oposição ao período colonial e aos “primeiros contatos”, submetendo uma longa historiografia ao crivo das demandas indígenas por reparações históricas.

“Reparação histórica” é um ponto fundamental no que tange o tempo e a história nas culturas indígenas. Em momentos mais recentes, destaca-se o período da ditadura militar que teve “tempos” específicos pelas óticas indígenas, como demonstra Juliana Ventura em trabalho já mencionado aqui. Na obra, a autora destaca o “tempo da RARALMINAS” órgão vinculado à Secretaria do Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais, responsável pelo desenvolvimento rural e colonização. Esse tempo é apresentado como o tempo de institucionalização das violências físicas e simbólicas, em que não só o povo Xacriabá (foco do trabalho de Ventura) foi assolado, mas outros povos também ao redor do país, como denuncia o Relatório Figueiredo, documento produzido ao longo dos anos 1960 e tido como desaparecido até 2012, quando foi redescoberto pela Comissão Nacional da Verdade.

Além das história que relacionam humanos indígenas e humanos não-indígenas, destaca-se também os eventos que relacionam humanos e não-humanos, como apresenta Ailton Krenak, em “Ideias para afiar o fim do Mundo”. Na obra, o autor conta como seu povo foi afetado pelo crime feito pela mineradora Samarco contra o Rio Doce, chamado por Watu por esse povo. No livro, o autor conta como o Watu faz parte da história de seu povo, ele é um parente não-humano e guardião de suas histórias. É o Watu que banha Takukrak, a serra localizada na região, que dialoga diretamente com o povo Krenak. No livro, ainda aprendemos que os povos indígenas estão em constante luta contra o fim do mundo, propagada intensamente pelos não-indígenas. Salienta-se também uma dicotomia entre o “nós” (indígenas) e “eles” (não-indígenas), mas que não se refere apenas à esta estrutura, sendo utilizada também para se referir à “nós” (povo x) e “ele” (povo y), como apresenta Carlos Fausto, em “Inimigos Fiéis”. No livro, o autor demonstra que a construção das histórias indígenas se relaciona diretamente como um povo vê o outro, seja por intermédio de alianças, ou por conflitos seculares, como o caso dos Parakanãs e dos Arara-Pariris. Isso pode interferir inclusive na forma como os não-indígenas, pesquisadores ou não, vão registrar suas presenças, muitas vezes nada tendo a ver com suas autodenominações.

Frente a inúmeros desafios sobre as histórias indígenas, está o tempo e as interferências não-indígenas, e isto pois suas histórias existem a partir das territorialidades estabelecidas entre o povo e território. Finalizo o raciocínio destacando novamente a presença dos xapiris entre os Yanomamis, exemplo que se destaca dentre os territórios originários que não se limitam apenas ao terreno, mas com todos os parentes humanos e não-humanos presentes. Se relaciona também com o céu, sustentado pelas toras que recebem a manutenção dos xapiris, evitando que o céu desabe sobre nossas cabeças e que nós sejamos enviados para o submundo, finalizando nosso tempo no firmamento, como mostra Davi Kopenawa, já mencionado nesse texto.

 

 


REFERÊNCIAS:

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo, Cosacnaify, 2004.

FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: EDUSP, 2014.

KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um zamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MERCIER, Paul. História da Antropologia. Rio de Janeiro – RJ. Editora Eldorado, 1974

MUNDURUKU, Daniel. O Karaíba:  uma história do pré-Brasil. Barueri: Editora Amaralys, 2010.

NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionário Tupi Antigo: A língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2019.

PACHAMAMA, Aline Rochedo (Churiah Puri). Boacé Uchô: a história está na terra. Rio de Janeiro: Editora Pachamama, 2020.

PERET, João Américo. Mitos e Lendas Karajá: Inã Son Werá. Rio de Janeiro: 1979.

SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Curitiba: Editora UFPR, 2018.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: COSAC NAIFY, 2002.

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Dabacuri – 14/07/2017 – Manaus-AM. Coletivo Difusão.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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