História Indígena ou os Indígenas na História do Brasil?

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Na minha ainda curta trajetória acadêmica, passei por várias situações em que classifiquei e classificaram minha pesquisa como “História Indígena”. Nas minhas primeiras experiências, confesso que não identificava nenhum problema, e isso se deve muito pela minha falta de contato com uma bibliografia decolonial. Mas isso já faz alguns anos…

De lá pra cá, a situação mudou um pouco de figura. Em contato com autores como Franz Fanon, bell hooks, Achille Mbembe, Chimamanda Adichie e também as brasileiras Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Manuela Carneiro da Cunha, Márcia Tiburi, além de Silvio Almeida, percebi que o que pesquisava não era história indígena, mas sim, o indígena na história brasileira. Mas revolucionário mesmo, foi quando comecei a ler os indígenas por eles mesmos. Conheci então a escrita de Ailton Krenak, Edson Kayapó, Daniel Mundukuru, Graça Graúna, Olívio Jekupé, Ademário Ribeiro, Aline Rochedo Pachamama, Márcia Wayna Kambeba, Aline Kayapó, Christino Wapichana. Cada um com uma trajetória e riqueza que quando a escrita chega no outro e “faz orvalhar estrelas”, como disse Aline Pachamama em vídeo recente na sua página do Instagram.

Em chamada recente para dossiê, aqui na HH Magazine, perguntamos “Quantos autores(as) negros(as) você leu hoje?”. Inspirada por essa pergunta, eu questiono: quantos autores indígenas você conhece? Esses que mencionei, são apenas alguns poucos e, por isso, devo tecer algumas palavras para começarmos a refletir, do porquê é tão importante lê-los.

Para além do óbvio – uma literatura de excelência – ler literatura indígena é uma atitude ético-política. Neste momento, é importante perceber que os textos que venho publicando neste portal se comprometem a refletir a respeito dos estereótipos e preconceitos, que são construídos e perpetuados, sobre os povos originários no Brasil. A partir dessa premissa é urgente percebemos – nós, que somos pesquisadores das Ciências Humanas – o silêncio que é forçado sobre os grupos étnicos e, acima de tudo, uma constante tutela sobre esses povos.

A tutela sobre os povos indígenas é um tema extenso e complexo, e por isso, não tenho nenhuma pretensão de esgotá-lo aqui. O que gostaria de refletir junto ao leitor, é que a tutela sobre os povos indígenas, além de política e governamental, é muitas vezes também intelectual. Podemos ter acesso a inúmeras narrativas, realizadas pelos próprios povos indígenas, mas muitas vezes há uma falha em nossa formação profissional e escolar que nos impede de descolonizar nosso pensamento. Quando nós, enquanto pesquisadores, negligenciamos as vozes desses mais de 300 povos só em território nacional, também estamos exercitando o que chamo aqui de tutela intelectual.

No que tange à legislação brasileira, os indígenas são tutelados desde o período colonial, adentrando Império e República. De acordo com Manuela Carneiro da Cunha, com exceção de um curto período de dois anos (entre 1755 e 1757) em que os povos indígenas tiveram autonomia total perante à Coroa, a legislação previa a mediação – tutela – por parte de não-indígenas. Assim, em uma maioria esmagadora de documentação histórica, são os não-indígenas falando por povos aos quais não pertencem, muitas vezes não se interessam e, ainda pior, desprezam direta ou indiretamente. Qual é, afinal, a validade dessas falas?

Na prática, infelizmente, a validade é considerável, já que a violência do silenciamento forçado sobre esses povos faz com que muitas vezes a única voz que se sobressai é justamente a que oprime. É claro, essa realidade vem mudando nos últimos anos. Como silenciar a voz potente de Ailton Krenak em seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte pela defesa da Emenda Popular da União das Nações Indígenas, em 1987: “o povo indígena tem um jeito de pensar, um jeito de viver”, disse Ailton, do povo Krenak. Esse é o exemplo claro da história indígena, sendo feita. Sendo realizada diante de nossos olhos.

Mas não se enganem, é fundamental falarmos sobre os indígenas na história brasileira, e como a construção de uma história hegemônica é intensamente violenta e, infelizmente, ainda permanece violenta. E isso acontece porque sem uma bibliografia que descolonize nossos pensamentos, que nos faça entender os múltiplos pensamentos ameríndios, em sua filosofia própria, o potencial violento permanece. Se permanecemos encarando a pluralidade cultural de maneira etnocêntrica, o silenciamento e a tutela intelectual resiste aos esforços de descolonização.

Além disso, é preciso dizer que, atrelado ao Estado o etnocentrismo se torna potencialmente etnocida (CLASTRES, 2011) e, imaginem só, a educação está atrelado ao Estado. Quando utilizamos “história indígena” como sinônimo de “indígenas na história do Brasil”, estamos potencializando o silêncio sobre as vozes indígenas, além do próprio epistemicídio desses saberes. História indígena é o que fez Daniel Munduruku no livro “O Karaíba”, em que por meio da literatura o período das “Correrias” ganha protagonismo ao retratar o que a história oral descreve como os “primeiros contatos”, em termos não-indígenas.

Aqui fica, então, um apelo em favor de mais história indígena quando abordarmos os indígenas na história do Brasil. E ao encarar a inevitável bibliografia não-indígena, que ressaltemos as violências simbólicas (e, às vezes, mesmo físicas) que elas trazem sobre esse povos, e que também forcemos a divisão desses espaços em prol dos protagonismos indígenas. Paremos então, de fato, te tutela-los em suas vozes.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista no Século XIX. IN. CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 2006.

CLASTRES, Pierre. Do Etnocídio. IN.: CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo – SP, Editora COSACNAIFY, 2011).

 

 

 


Créditos na imagem: Ailton Krenak em participação na Assembleia Constituinte,1987.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

2 comments

  1. Andrea Sannazzaro Ribeiro 5 agosto, 2020 at 13:13 Responder

    Sempre vou te lembrar que sua conduta ética com seu recorte temático de pesquisa é muito louvável. Um prazer e aprendizado te ler. Parabéns e continue…..

  2. Graça Graúna 22 agosto, 2020 at 20:37 Responder

    Estimada Helena A. P. Almeida: parabéns pelo senso crítico, pelo profundo espírito de pesquisa acerca dos povos indígenas no Brasil. Poucos se dão conta do nosso papel nesse planeta; de que pertencemos à Terra e de que somos mais que 300… Grande honra ver meu nome referenciado em sua pesquisa. Que Tupã nos acolha.
    Graça Graúna (indígena potiguara/RN)

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