Por que precisamos falar sobre os povos indígenas?

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Desde quando comecei a pesquisar o indígena na história (a 10 anos atrás), fui questionada do porquê trabalhar com esse tema. No começo, sentia que poderia estar sendo invasiva ao realizar minha pesquisa, que este não seria meu lugar, visto que não sou uma pessoa indígena. Ao longo do meu caminho, percebi que não só devo realizar minha pesquisa nesta área, como também devo falar sobre o que envolve as temáticas indígenas. Para poder fazê-lo é fundamental exercer meu lugar de escuta e usar meu lugar de fala privilegiado para questionar, ressaltar e oferecer qualquer tipo de visibilidade às demandas desses grupos étnicos. É preciso, porque quem exerce e fortalece as violências físicas e simbólicas contra estes povos são, primeiramente, não-indígenas. É necessário exercer esta responsabilidade. Por isso, senti que deveria compartilhar algo como uma resposta à pergunta-título.

Recentemente apareceu no meu feed de notícias que a revista Vogue tinha se envolvido com uma polêmica em meio à pandemia do COVID-19. A capa, que realmente causa espanto ao destacar que vivemos agora o “novo normal”, é estampada pela foto da modelo brasileira Gisele Bündchen, que por sua vez aparece vestindo roupas caríssimas, como se estivesse exemplificando a “simplicidade”. Bom, mas o que isso tem a ver com os povos indígenas?

Ao entrar no Instagram da modelo, procurando por algum comentário que a própria poderia ter realizado, me deparo com outra publicação: o vídeo de divulgação do manifesto pelos povos indígenas, feito pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que viralizou recentemente. O fotógrafo mereceria um texto específico para a sua carreira, mas aqui tentarei me contentar dizendo que em um dos seus trabalhos mais recentes, Salgado retratou povos indígenas na Amazônia. Seu manifesto, aponta os grupos étnicos como exemplo indiscutível da vulnerabilidade desses indivíduos em relação à doença que se espalha pelo mundo. Não haveria nenhum questionamento até aí, certo? Pois é, também pensei isso.

Ao passar os olhos pelos comentários (sim, sabemos o quanto isso é prejudicial para nossa saúde mental devido ao alto nível tóxico que muitos deles carregam…), me deparei com uma série de mensagens profundamente perturbadoras. Dentre elas, muitas direcionavam ataques à modelo por se associar com “petistas” e “esquerda”; outras se limitavam a dizer que Gisele (com o perdão da informalidade) não tinha que comentar nada, pois nem morava no Brasil. Nada muito diferente do ódio diário e, infelizmente, habitual que sempre encontramos nos comentários das redes sociais. Claro, é importante dizer que não tive estômago para ler os 1034 comentários realizados na publicação, até o momento de finalização do presente texto. Então, infelizmente (ou felizmente, não sei ao certo) não poderei analisar estatisticamente a frequência de cada um dos conteúdos.

Algumas mensagens, porém, se despontavam em relação ao mar de ignorâncias. Com o risco de embrulhar o estômago do leitor, peço licença para destacar alguns, apesar de não os citar em sua completude, mas apenas apontar seu conteúdo. Começo então por um tema frequente, que gira em torno da crença de que não haveria casos de indígenas com o COVID-19. Em outro comentário, a “seguidora” além de negar, ainda desafia alguém a “mostrar dados”. Bastaria uma rápida consulta nos sites de busca, para se deparar com a triste realidade da contaminação dos povos indígenas no Brasil e no continente Americano. Por que, afinal, ela saberia do inconsolável falecimento da bebê (que não teve seu nome divulgado) pertencente à etnia Pipipã, do município Floresta em Pernambuco, com apenas 3 dias de vida? Ou do jovem Alvanei Xirixana, vítima Yanomami do COVID-19, aos 15 anos. É necessário falar dos Pipipã, dos Yanomami e precisamos falar sobre o acesso à saúde dos povos indígenas no Brasil, pauta de responsabilidade do Governo Federal.

Em outros comentários no Instagram da modelo, há uma certa frequência do questionamento sobre o isolamento social que os indígenas não estariam realizando. Me parece que, além da ignorância óbvia, existe também uma outra em relação aos inúmeros genocídios sofridos pelos povos originários, devido às armas biológicas utilizadas para dizimação dos mesmos ao longo das invasões realizadas em todo continente americano. É preciso, urgentemente, falar sobre isso.

Seguindo os comentários, sem nenhuma apresentação de dados, há também a presença de acusações aos próprios indígenas como sendo aqueles que teriam ido aos grandes centros urbanos e voltado para suas aldeias infectados. A constância do estereótipo indígena, que só vive na aldeia, isolado dos ditos “brancos”, nus e em suas ocas, salta aos olhos. E esta é apenas uma das gravíssimas consequências das generalizações sobre os grupos étnicos.

Somados à essa imagem homogênea, sobre povos falantes de quase 300 línguas só no Brasil, há ainda o engessamento desses estereótipos em um passado. A visão genérica que muitos não-indígenas possuem é que “índio” é aquele dos livros didáticos (ruins) de história: vivendo em um passado construído ideologicamente e, consequentemente, todos os que não se enquadrem nesse estereótipo, não seriam mais “índios”. Na mente dessas pessoas, como a que fez o comentário mencionado, não há espaço para entender que ser indígena está para além de pinturas corporais; não está relacionado exclusivamente ao usar ou não determinados adornos; ou que, muito menos, se limita a transitar entre diferentes espaços do país. É por isso que precisamos falar sobre indígenas…

Mas devo ressaltar um conteúdo específico que, disparadamente, aparece em maior frequência em relação a tantos outros assuntos: a ministra Damares Alves. Dentre os comentários lidos, há uma constante menção à “líder” do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Deixarei de lado a citação da ministra enquanto “doutora” ( já que é de consciência de muitos de nós a relação equivocada do título com a atuação de advogada), para destacar o quanto é mencionado que a ministra “faz muito pelos indígenas” no Brasil. Destaca-se o comentário, publicado em caixa alta, de que “agora eles estão sendo bem cuidados e protegidos pelos brasileiros competentes”. Confesso que fiquei curiosa e fui olhar o que tanto a ministra faz pelos grupos étnicos.

Em uma rápida busca sobre as principais atuações de Damares junto aos povos indígenas no Brasil, destacam-se: seu trabalho enquanto pastora; a acusação feita pelos familiares de Lulu Kamayurá, sobre seu sequestro (a ministra alega ser sua “cuidadora”); e a defesa da ministra pela “inclusão indígena” na sociedade, em uma clara alusão à assimilação genocida e etnocida, desenvolvida ao longo dos últimos cinco séculos. Além desses tópicos, destaco a fala de Damares em entrevista realizada em agosto de 2019, sobre os dados de infanticídio no Brasil. Nas palavras da própria: “Nós temos uma estimativa, isso não é oficial, inclusive a gente tá criando agora uma notificação, que mais de 1500 crianças são assassinadas por ano nas aldeias do Brasil”.

Pesquisadores das mais diferentes áreas e instituições afirmaram que não há dados para esta estimativa, e defendem que os casos existem, mas que estão diminuindo a cada ano, como aponta também o documentário “Quebrando o Silêncio”, inteiramente dedicado à debater o tema, além de ser feito por indígenas de diferentes etnias, destacando seu protagonismo na obra. Não poderia deixar de mencionar também a acusação de que a ONG “Atini”, fundada por Damares, foi acusada de incitar ódio contra indígenas, além de sequestro e tráfico de crianças. A acusação estava sob investigação pelo Ministério Público, em 2018. É por causa desses exemplos que precisamos falar sobre o que diz respeito às temáticas indígenas.

Um comentário, levemente mais elaborado, ainda relaciona o quanto o governo estadual do Amazonas (na completa ilusão que os indígenas vivem apenas dentro daqueles limites estaduais imaginários) se opôs ao governo do atual presidente, Jair Bolsonaro, e que por isso não estaria dando o devido suporte às comunidades indígenas. Ou seja, na visão do autor da mensagem, seria uma política arbitrária do estado do Amazonas apenas para “depreciar” o governo federal. Me pergunto o porquê do desinteresse do “seguidor”, em procurar também saber o motivo pelo qual a FUNAI disponibilizou apenas mil reais para o combate do coronavirus (como consta em reportagem feito no dia 17 de abril de 2020), sendo que o próprio órgão já havia anunciada uma verba de dez milhões de reais adicionais, para o mesmo fim (em publicação da assessoria de comunicação da FUNAI, feita em 6 de abril de 2020). Pequeno detalhe: hoje, a FUNAI responde hoje ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, cuja responsável já conhecemos.

Então percebam, precisamos urgentemente falar sobre tudo em torno das temáticas indígenas, porque isso nos diz respeito mesmo que sejamos não-indígena. Diz respeito porque o trabalho do intelectual “não pode ser desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (…) é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete” (SAID, 2017, p. 25). E qual maior atuação do intelectual, que não a sala de aula?

 

***

Após a finalização do texto, foi publicado no Instagram da Rádio Yandê, a primeira web rádio indígena no Brasil, as seguintes informações: “Conforme o boletim do dia 03/05, da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) , entre os indígenas são 120 casos confirmados, 6 óbitos, 38 suspeitos, 217 descartados e 63 com cura clínica. A região do Alto Solimões no Amazonas é a mais afetada, com 59 casos positivos”.

 

 

 


REFERÊNCIAS

LINS, Larissa. Vogue Brasil veicula capa polêmica em meio à pandemia de coronavírus. Blog João Alberto, 3 de maio de 2020. Disponível em:  https://www.joaoalberto.com/2020/05/03/vogue-brasil-veicula-capa-polemica-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus/ . Acesso em: 05/05/2020.

Assessoria de comunicação da FUNAI. Funai terá R$ 10 milhões adicionais para ações de combate ao novo coronavírus. Site da FUNAI, 6 de abril de 2020. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/5991-funai-tera-r-10-milhoes-adicionais-para-acoes-de-combate-ao-novo-coronavirus

ALVES, Letícia. Ministra Damares publica vídeo defendendo a “inclusão” indígena. Poder 360, 2 de julho de 2019. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/ministra-damares-publica-video-defendendo-a-inclusao-indigena/ . Acesso em: 05/05/2020.

BALLOUSSIER, Anna Virgínia; LINHARES, Carolina. ONG de ministra é acusada de incitar ódio a indígenas e tirar criança de mãe. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/ong-de-ministra-e-acusada-de-incitar-odio-a-indigenas-e-tirar-crianca-de-mae.shtml . Acesso em: 05/05/2020.

PORTINARI, Natália; SASSINE, Vinícius. A história de Lulu Kamayurá, a índia criada como filha pela ministra Damares. Revista Época, 31 de janeiro de 2019. Disponível em: https://epoca.globo.com/a-historia-de-lulu-kamayura-india-criada-como-filha-pela-ministra-damares-alves-23416132 . Acesso em 05/05/2020.

SAID, Edward. Representações do Intelectual: as conferências de Reith de 1993. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 2017.

TEIXEIRA, Lucas Borges. Damares erra dados sobre mortes de bebês indígenas em Comissão da Anistia. UOL notícias, São Paulo, 9 de agosto de 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2019/08/09/damares-alves-infanticidio-indigena-e-comissao-de-anistia-uol-confere.htm . Acesso em: 05/05/2020.

Reportagem: “PGR cobra Damares sobre FUNAI ter gastado só mil reais contra coronavírus”. Exame, 17 de abril de 2020. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/pgr-cobra-damares-sobre-funai-ter-gastado-so-mil-reais-contra-coronavirus/ . Acesso em: 05/05/2020.

 

 

 


Créditos na imagem: O índio Kwakway trabalha na construção de sua maloca. Foto: Sebastião Salgado.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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