Escrever (n)a quarentena, ou pequeno não-diário de isolamento social

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Pero también es preciso desalinearnos. Los Gobiernos llaman al encierro y al teletrabajo. Nosotros sabemos que llaman a la descolectivización y al telecontrol. Utilicemos el tiempo y la fuerza del encierro para estudiar las tradiciones de lucha y resistencia minoritarias que nos han ayudado a sobrevivir hasta aquí. Apaguemos los móviles, desconectemos Internet. Hagamos el gran blackout frente a los satélites que nos vigilan e imaginemos juntos en la revolución que viene.[1]

 

Desde que tudo isso começou (contar os dias já me parece tão fútil quanto contraproducente), escrever me tem sido a mais impossível das coisas. Uma impossibilidade dolorosa, já que a escrita foi meu grande refúgio durante os tempos duros da adolescência, vem sendo um dever profissional na última década.

 

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Como professora de teoria da história, há tempos vejo muito debate e pouca prática sobre o potencial das experimentações narrativas para conduzir nossa disciplina a territórios incógnitos, idealmente a uma renovada relevância social.

Tento, aqui, reproduzir um exercício algo arriscado que fiz no epílogo da minha tese de doutorado.[2] Como escrevi naquele momento, a ideia é me afastar (de uma certa concepção) do rigor acadêmico para – como não tive coragem de escrever, mas costumo dizer com uma salutar dose de autoironia – tentar manter a sanidade mental. Em outubro de 2018, isso me pareceu necessário para dar conta de concluir um trabalho que tinha como problema central a atuação pública dos juristas, um trabalho preocupado em pensar a permeabilidade das fronteiras e comprometido com certos valores cosmopolitas, em meio a um cenário eleitoral assustador, cujos então incertos desdobramentos hoje nos interpelam diariamente. Agora, o desafio é extrair algum sentido de uma pandemia, de uma espécie de suspensão do tempo e do espaço, de um enclausuramento que se prolonga de forma indefinida.

 

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Até que estou conseguindo trabalhar, digo para mim mesma, em um parcial autoengano falsamente reconfortante. Abandonei pelo caminho aquele artigo sobre aquele ex-juiz-ex-ministro (não sei se por medo, feminina insegurança, falta de inspiração, planejamento insuficiente ou mera pandemite), mas escrevi aquele projeto em língua estrangeira, terminei aquele texto que estava devendo desde sempre, enviei e-mails e mais e-mails. Tudo isso entrecortado por irritantes mas aparentemente incontornáveis lives, por extensas videoconferências, por fazer e refazer aquela playlist de artistas mulheres que já dura quase dezesseis horas, pelas tentativas fracassadas de terminar os mesmos livros que estou lendo desde janeiro, por uma cáustica e persistente sensação de que não estava fazendo o suficiente, em ritmo suficiente.

Acho desumana a pressão por produtividade, e ao mesmo tempo vejo no trabalho, ou nos fragmentos que restam dele, formas de continuar a existir.

 

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Talvez o absurdo maior seja o confronto entre essa vida reduzida às necessidades mais básicas – dormir, acordar, comer, escovar os dentes, de vez em quando tomar um banho, de vez em nunca tirar o pijama – e as demandas nada básicas que insistem em se acumular.

Como escolher a melhor tese do programa, como aprender a orientar uma dissertação, como emitir pareceres, como escrever um artigo acadêmico neste mundo em que já não se pode nem sair de casa sem contribuir para a coletivização da morte?

 

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Mas me esforço para lembrar de que estou, em um sentido bastante literal, reclamando de barriga cheia. Sou a própria funcionária pública do Paulo Guedes,[3] afastada do ambiente de trabalho e com a geladeira abarrotada.

 

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Ironicamente, é a cozinha, ambiente que nunca fiz muita questão de ocupar, o único refúgio que me tem sido verdadeiramente acolhedor. Mas, como nada parece simples agora, as aventuras culinárias vêm acompanhadas da pilha interminável de louça suja, das incontáveis larvas que insistem em invadir meu pequeno bunker e se multiplicam em uma velocidade comparável à da proliferação do Sars-Cov-2. Parecem providencialmente enviadas para não me deixar esquecer a putrefação que nos envolve a todos, e talvez sobretudo a todas.

 

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Agradeço a mim mesma por ter escolhido um apartamento tão simpático, espaçoso, que me permite ver árvores, o céu, um pouquinho de ar livre, montanhas. Sofro por antever que, na minha memória, este lar meio passageiro estará sempre contaminado pelo vírus.

Não deixa de ser irônico assistir à dissolução da vida pública observando uma praça.

 

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Estes também têm sido tempos de encontros e reencontros, mediados pela tela do celular ou do computador. Encontros e reencontros que rompem distâncias de alguns quarteirões ou de um oceano inteiro, mas que raramente conseguem me deixar menos sozinha.

Talvez eu seja antiquada, obsoleta, anacrônica, mas não posso parar de pensar que encontros e reencontros simplesmente não têm o mesmo sabor quando falta presença.

 

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A suspensão do repertório musical estridente e de péssimo gosto (segundo os meus parâmetros pequeno-burgueses, um bocado esnobes e pretensamente diferentões), que me atormentava com sua aglomeração desumana de decibéis a cada noite de domingo, não trouxe o alívio esperado. Melhorou a qualidade do meu sono, mas não trouxe alívio.

Talvez porque agora todo dia é domingo, mas todo dia é segunda-feira, também.

Talvez porque, ainda que fizesse meu senso estético gritar, aquela balbúrdia era um lembrete semanal da alegria.

 

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“Tem alguma coisa muito errada e feia acontecendo, mas não consigo definir o que é. Sabe, uma coisa é a gente sonhar e correr riscos mas ter esperanças, outra coisa muito diferente é o que está acontecendo. Uma situação sem saída e sem explicação, direitinho como no filme do Buñuel. Uma tensão insuportável e sem nenhuma perspectiva de nada. Já nem sei mais onde está a verdade e onde está a mentira”.[4]

Essas palavras, retiradas de uma carta a uma amiga que Ana Rosa Kucinski teria escrito na clandestinidade, pouco antes de ser desaparecida por agentes do Estado brasileiro, vêm-me assombrando há semanas. Caíram no meu colo de forma quase mística, poucos dias depois que me surpreendi pensando em como havia algo da experiência do refúgio político ou do exílio em tudo isso que estamos vivendo. Em como havia, neste encerrar-se portas adentro, muito da claustrofobia que senti lendo Jamais o fogo nunca. Em como, de alguma forma, somos todas e todos clandestinas e clandestinos, desterradas e desterrados, não por nossas próprias escolhas políticas, mas por aquelas que outros fizeram, supostamente em nosso nome.

As palavras reapareceram um pouco mais tarde, como epígrafe em um trabalho de doutorado sobre a fragilidade da construção histórica dos direitos humanos no Brasil. Outro dos professores da banca começou sua arguição expressando um sentimento que, penso, era o de todas e todos ali virtualmente reunidos: “eu me senti ainda mais em quarentena lendo sua tese”.

O anjo exterminador foi, neste período de isolamento, um dos poucos filmes que consegui ver do começo ao fim, sem me dispersar ou cair no sono. Não sei se por masoquismo ou por curiosidade mórbida. Talvez por algum desejo subterrâneo de reviver paixões antigas.

 

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Não resisto à tentação, contrario os conselhos, abro um jornal, deparo com um empresário dizendo: “Haverá mortes de CNPJ”.[5]

Como se ficções jurídicas pudessem viver ou morrer. Podem matar, é certo, é o que mais uma vez se prova.

 

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Por falar em ficções, vem-me à mente a mensagem de WhatsApp que vislumbrei por entre poltronas de avião quando me preparava para decolar em direção a Congonhas, em um voo repleto de representantes dos altos estratos empresariais do país, logo depois de votar no primeiro turno das últimas eleições presidenciais: “É fake, mas eu concordo”.

Difícil pensar em uma definição mais precisa, e justamente por isso mais desoladora, dos nossos tempos.

 

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Tenho-me apegado à esperança (ou, talvez seja mais preciso dizer, à lembrança) de que existe um mundo do lado de fora, que há de voltar a existir.

Com as notícias que uma vez ou outra chegam de lá, tenho mais é vontade de o esquecer. Ou de o reinventar. De o reescrever, linha por linha.

O que não se faz, ou pelo menos não se faz bem, em isolamento.

 

Belo Horizonte, 7 de maio de 2020.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Daniel. Servidor não pode ficar em casa, com geladeira cheia, enquanto brasileiros perdem emprego, diz Guedes. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/servidor-nao-pode-ficar-em-casa-com-geladeira-cheia-enquanto-brasileiros-perdem-emprego-diz-guedes.shtml. Acesso em: 7 mai. 2020.

KUCINSKI, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 [2011].

LOVISI, Pedro. Com Bolsonaro no STF, empresário diz: “Haverá mortes de CNPJ”. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/07/interna_politica,1145275/com-bolsonaro-no-stf-empresario-diz-havera-mortes-de-cnpj.shtml. Acesso em: 7 mai. 2020.

PRECIADO, Paul B.. Aprendiendo del virus. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html. Acesso em: 7 mai. 2020.

SILVEIRA, Mariana de Moraes. Desloca(liza)r o direito: intercâmbios, projetos partilhados e ações públicas de juristas (Argentina e Brasil, 1917-1943). Tese (Doutorado em História Social). Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

 

 

 


NOTAS

[1] PRECIADO, Paul B.. Aprendiendo del virus. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html. Acesso em: 7 mai. 2020.

[2] SILVEIRA, Mariana de Moraes. Desloca(liza)r o direito: intercâmbios, projetos partilhados e ações públicas de juristas (Argentina e Brasil, 1917-1943). Tese (Doutorado em História Social). Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 489-497.

[3] CARVALHO, Daniel. Servidor não pode ficar em casa, com geladeira cheia, enquanto brasileiros perdem emprego, diz Guedes. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/servidor-nao-pode-ficar-em-casa-com-geladeira-cheia-enquanto-brasileiros-perdem-emprego-diz-guedes.shtml. Acesso em: 7 mai. 2020.

[4] KUCINSKI, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 [2011], p. 48.

[5] LOVISI, Pedro. Com Bolsonaro no STF, empresário diz: “Haverá mortes de CNPJ”. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/07/interna_politica,1145275/com-bolsonaro-no-stf-empresario-diz-havera-mortes-de-cnpj.shtml. Acesso em: 7 mai. 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Infinite thanks by Roger Ycaza.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Mariana de Moraes Silveira

Professora adjunta de Teoria da História e História da Historiografia na Universidade Federal de Minas Gerais, onde colabora com o Projeto Brasiliana: Escritos e Leituras da Nação e o Studium Iuris - Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica. Suas principais áreas de interesse são: história intelectual, história do direito, história da historiografia brasileira e argentina, história dos livros, das edições e da leitura.

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