Por que a crítica da fantasia de índio?

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Em meu primeiro texto publicado aqui na HH Magazine, obtive um comentário do autor indígena Olívio Jekupé. Fiquei emocionada ao perceber que o autor a quem acompanho por tantos anos, havia lido um texto meu. Fiquei pensativa ao ler o comentário, que indagou qual seria o problema de se fantasiar de índio, já que os ruralistas que assassinam todos os dias seus parentes, não precisam se fantasiar. O que entendo é que o autor destaca que enquanto estamos preocupados em debater as representações, ações brutais são tomadas com a perda de inúmeras vidas. E isso soou como um sinal de alerta pra mim.

O debate é necessário para identificar inúmeros problemas na sociedade e faz parte do trabalho dos profissionais das ciências humanas, e isso deve sempre permanecer em destaque. No entanto, o alerta de Jekupé se faz urgente, visto que em uma situação de pandemia, como a que vivenciamos, temos no dia de hoje (22/06/2020) 7208 casos confirmados de pessoas indígenas contaminadas, com 332 mortos e 110 povos atingidos[1]. Esses são os números confirmados, em uma realidade de subnotificação. No Censo de 2010, foram contabilizados mais de 305 povos com mais de 896.917 pessoas. Ou seja, em dados desatualizados, mais de 1/3 dos povos indígenas já foram atingidos com aproximadamente 4,6% de óbitos. O alerta não é só importante, mas fundamental e, ainda, não o vejo tão descolado do problema do índio enquanto fantasia.

Bom, no texto que escrevi anteriormente, eu destacava o problema de se falar sobre o índio (que já é um termo bem genérico) enquanto fantasia de carnaval. Bom, vamos estender mais algumas palavras sobre essa fantasia que não é só física, ou seja, ela não se aparamenta apenas na confecção do vestuário. A fantasia sobre o índio é estrutural, ela é imagética, simbólica e, mais precisamente, imaginária. Mas como assim? Bom, os não-indígenas têm uma visão extremamente limitada do que é de fato ser indígena, porque obviamente isto vai muito além do vestuário. Assim, a fantasia começa a ter forma desde os anos escolares iniciais, quando a informação que é oferecida nas instituições de ensino não avança muito para além do cocar.

A fantasia se desdobra com o decorrer do tempo, vai sendo solidificada pela ideia de que os indígenas ainda vivem em um estágio cultural evolutivo de “infância”, como defendiam os positivistas do século XIX e XX. Permanece a ideia de indígenas, nus, exclusivamente na natureza, algo também divulgado por autores do indianismo romântico. É essa fantasia que vai sendo perpetuada pelas constantes desinformações sobre esses povos que, por sua vez, abrangem uma diversidade cultural muito além dessa veleidade. É com essas fantasias que se justificam o injustificável, na negação das demarcações de terra, no desinteresse populacional, na indiferença perante as agressões.

A própria acunha de “fantasia de índio” é um destaque duplo de um imaginário que vem sendo construído e solidificado ao longo de séculos de permanente colonização, seja política ou de pensamento. O termo “índio” é a generalização máxima de mais de 300 povos, só em território brasileiro. É como se eu usasse de um exemplo único para representar todas as mulheres no Brasil (inclusive as mulheres indígenas), algo que os feminismos já demonstraram não só sua ineficácia, mas principalmente a violência do silenciamento sobre a diversidade de mulheres no mundo. Esse é um ponto importante: o silêncio projetado através do termo “índio”, pois não é um silêncio qualquer. É a censura, feita pelos não-indígenas, sobre as vozes de desses povos.

A fantasia de carnaval não é apenas uma vestimenta sem mal, ou melhor, ela pode até ser, mas ela também representa uma espécie de não-lugar dos povos indígenas e a presença do “índio”, em seu aspecto genérico. Se ressalto aqui a crítica à fantasia de índio, é porque quero destacar a estrutura de privação que ela pode representar, se for apropriada de qualquer maneira, sem o conhecimento devido. Então, se há a possibilidade de usar uma vestimenta que faça referência aos povos indígenas, não seria interessante pensar qual povo representa? Qual o significado da indumentária escolhida? Se a representação escolhida é adequada?

Se existe a abordagem sobre o tema sobre indígenas, por que também não se procura saber sobre a atuação, ou não, das instituições públicas no auxílio desses povos atingidos pela COVID-19? A relação dos povos indígenas com epidemias (ou armas biológicas) destaca sua vulnerabilidade, pois a forma de vida é diferente. É uma forma de vida coletiva e compartilhada. Em dados divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) junto ao Ministério de Saúde, em abril de 2020, já destacava que ao menos 1/3 das mortes envolvem infecções respiratórias. Essa informação foi destacada no episódio 24 do podcast “As Árvores Somos Nozes”, como algo que favoreceria o genocídio dos povos originários.

Creio que o problema da “fantasia de índio” é ao mesmo tempo estrutural e metafórico, que pode ser representada pelas vestes populares no carnaval. A fantasia do índio passado, que permanece no passado, e para aqueles que não estão lá, resta o silêncio sepulcral da “fantasia” (definida pela inexistência real) “do índio” (generalização da multiplicidade).

 

 

 


NOTAS

[1] Dados monitorados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena e pelas organizações indígenas de base de Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Disponível em: http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/ . Acesso em: 22/06/2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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