Personagens, intelectuais e trajetórias indígenas

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Se iniciarmos por uma trajetória histórica cronológica do descobrimento/invasão do que viria a ser o território brasileiro, poderíamos iniciar destacando a figura do chefe Tupiniquim, Tibiriçá. Theodoro Sampaio, em “O Tupi na Geografia Nacional” (1987), afirma que seu nome significaria “vigilante da terra”, remetendo sua importância sobre proteger e vigiar os interesses de seu povo, frente à presença (invasão) dos bandeirantes em seu território originário. Vale destacar que as traduções de Theodoro Sampaio foram criticadas por Eduardo Navarro, autor de “Dicionário Tupi Antigo: a língua indígena clássica do Brasil” (2013).

No entanto, Sampaio utiliza desse significado para destacar a figura de Tibiriçá, em uma tentativa de valorização dos indígenas, na primeira metade do século XX. Tibiriça é relacionado, em uma certa historiografia, referente à presença indígena no Brasil, à fundação da futura cidade de São Paulo e fundação da capitania de São Vicente. De acordo com John Manuel Monteiro, em “Negros da Terra” (1994), Tibiriçá estabeleceu aliança com os portugueses visando as vantagens que isso lhe traria (individual e coletivamente) contra seus inimigos tradicionais, respondendo primeiramente a uma dinâmica interna de organização social indígena, compartilhada também pelos Tupinambás, como também demonstrou Florestan Fernandes, em “A Função Social ad Guerra na Sociedade Tupinambá” (1970). Batizado então pelos Jesuítas como Martim Afonso, o personagem foi chefe da aldeia de Inhapuançu, ou Piratininga, como aponta Silvana Godoy, em “A Nobreza Indígena e seus descendentes nos campos de Piratininga no século XVI”.

Vincula-se ao prestígio de Tibiriçá, o aumento das aldeias ao redor de Piratininga, sendo isto fundamental para o povoamento da região, pelos europeus.  Além disso, essa população indígena, após a catequização, também foi base principal da mão de obra utilizada então. O Padre José de Anchieta escreve em carta de 1563, que foi o próprio Tibiriçá um dos responsáveis por construir a primeira Igreja na região, local em que foi enterrado com glórias, quando morreu naquele ano. É preciso dizer que alguns autores, como John Hemming, em “Ouro Vermelho”, aponta que aqueles povos indígenas cumpriam os interesses dos colonizadores europeus. No entanto, destaca-se, como afirmou John Monteiro, em “Negros da Terra” e “Tupis, Tapuias e Historiadores”, que os interesses defendidos por líderes, como Tibiriçá, eram coordenados pelas estruturas sociais daqueles povos.

A estratégia, por exemplo, de casamento entre mulheres indígenas e europeus corroborou esta hipótese. Foi o próprio Tibiriçá que incentivou o casamento entre sua filha M’bicy, conhecida popularmente como Bortira, e o português João Ramalho. Essas estratégias também demonstram como é equivocado utilizar de uma perspectiva assimilacionista e passava para caracterizar as relações entre indígenas e colonizadores, colocando os povos originários como meras vítimas de um processo de descaracterização étnica, como defende Maria Regina Celestino de Almeida, em “Os índios na História do Brasil” (2020). Muito pelo contrário, essas interações culturais demonstram o dinamismo dessas culturas, destacando a importância das mulheres indígenas em tais dinâmicas. A própria Bartira, depois batizada como Isabel Dias, encabeça uma longa descendência de famílias tradicionais paulistas, como aponta Adalzira Bittencourt, em “A Mulher Paulista na história” (1954). É importante ressaltar que esses casamentos eram caracterizados como polígamos e/ou concubinatos (pelos europeus), prática frequente do processo de dominação portuguesa e estabelecimento de prestígio entre os indígenas, como aponta John Monteiro. O prestígio de João Ramalho foi tanto que ele assumiu o modo de vida Tupiniquim, como defende Ronaldo Vainfas, em “A Heresia dos Índios” (1995), mostrando assim a intervenção indígena no modo de vida dos europeus.

Outro personagem histórico indígena importante, ainda no período colonial foi um homem indígena que não teve seu nome registrado, mas que habita as páginas escritas pelo frade francês Yves Devreux, em “Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614”. Esse homem indígena, nomeado recentemente pelo pseudônimo de Tybyra (no livro “Tybyra: uma tragédia indígena brasileira”, publicado em 2020 por Juão Nym) foi preso e assassinado, amarrado na boca de um canhão, acusado de ter relações homoafetivas com indígenas e colonizadores. No livro “Existe Índio Gay? A colonização das sexualidades indígenas no Brasil”, Estêvão Fernandes demonstra como a existência do que conhecemos hoje por homofobia foi importada das religiosidades cristãs, desenvolvidas também na Europa. Tybyra foi um personagem retomado pelas vozes indígenas da atualidade para compor o panteão de referências originárias de resistência, na história do Brasil.

Outro personagem que ilustra as resistências indígenas do Brasil, foi Mandu Ladino, indígena que se juntou aos Kariri, no atual Piauí, em uma revolta contra um fazendeiro. Leslie Berthell, que organizou “História da América Latina”, indica que o fazendeiro era responsável pela caça de indígenas, capturados anteriormente e assassinados por decapitação. Mandu foi líder dessa revolta responsável pela morte do fazendeiro e pela expansão do levante até regiões do atual Maranhão, como aponta Rafael Chambouleyron e Venice Melo, em “Governadores e Índios: guerras e terras entre o Maranhão e o Piauí (primeira metade do século XVIII)”.

O destaque para esses personagens (poucos de tantos outros) se dá em oposição ao esquecimento e apagamento construído pelo ideal nacional. Ou melhor, como escreveu Walter Benjamin: “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie” (1986). Destacar esses personagens é começar a redimir a historiografia de um erro histórico, que é o silenciamento e a invisibilização de personagens e intelectuais indígenas ao longo do tempo, e que infelizmente, ainda se perpetua.

Sobre intelectualidades indígenas contemporâneas, destaca-se Ailton Krenak, liderança do povo Krenak, ambientalista e Doutor Honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Ainda na década de 1980, Ailton Krenak protagonizou discurso na Assembleia Constituinte de 1987, na redemocratização do país. Enquanto discursava, pintava seu rosto de jenipapo, seguindo as tradições de batalhas, compartilhadas por muitos povos originários, principalmente falantes de línguas do tronco linguístico Tupi. Nos últimos anos, Ailton Krenak escreveu uma quadrilogia de livros, cujos títulos são: “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), “A Vida não é Útil” (2020), “O Amanhã não está a venda” (2020) e “Futuro Ancestral” (2022). Os livros estão organizados em falas realizadas pelo autor, em que ele denuncia o processo de destruição das florestas e do planeta, por um “clube exclusivo da humanidade”. Talvez o mesmo clube que perpassa a “Declaração Universal de Direitos Humanos”, publicada em 1948, em um pós-guerra que não contemplava os povos originários… mesmo porquê, não há ainda um “pós-guerra” para eles. A “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas” só viria a ser concluída em 2007, 59 anos após a primeira.

Ailton Krenak denuncia a destruição do planeta terra, como planeta vivo, a partir da teoria de Gaia. Uma destruição que se baseia na ilusão de que iríamos continuar existindo eternamente. Uma ilusão que ignora que somos seres finitos, que morrem, “herdeiros de Yoasi”, como nos ensina Davi Kopenawa, outra liderança indígena importante em nossa contemporaneidade e autor de “A Queda do Céu: palavras de um xamã Yanomami”, escrito em cooperação do antropólogo Bruce Albert (2015). No livro, Davi Kopenawa nos mostra que os homens brancos, remetendo-se não só as colonizações europeias ao redor do mundo, mas também à permanência delas em nossa contemporaneidade, são a “gente de Yoasi”, xapiru relacionado às epidemias e ao esquecimento. Podemos dizer que o esquecimento, o silenciamento, a invisibilização dos povos indígenas são frutos dessa herança de Yoasi, e de sua gente. Kopenawa denuncia, a partir da cosmogonia dos Yanomami a violência do apagamento político, social e histórico. Ele ajuda a “por no devido lugar as famosas ideias fora do lugar”, como apresenta Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio “Recado da Mata”.

Outra liderança indígena de grande importância no século XX é o Cacique Raoni Metuktire, do povo autodenominado Mebêngôkre, conhecido por nós, não-indígenas, também como Kayapó. O Cacique Raoni, como é popularmente conhecido, foi indicado ao prêmio Nobel da Paz, em 2020. Apesar de não ter sido contemplado com o mesmo, a indicação demonstra o reconhecimento internacional por seu ativismo em defesa dos povos originários e da floresta Amazônica, desde a década de 1950. Raoni recebeu apoio de políticos e de instituições brasileiras, como a Fundação Darcy Ribeiro, Faculdade Indígena Intercultural (FAINDI), da Universidade do Estado do Mato Grosso. O Cacique também foi contemplado com o título Doutor Honoris causa pela mesma Universidade, em 2019. Sua trajetória contempla ainda a negociação de demarcação de Terras Indígenas (TI) na década de 1980, como mostra Roberta Neves, em “O Ícone Raoni: líder indígena Mebêngôkre no cenário global (2014).

Infelizmente, como aponta Eduardo Navarro, no “Dicionário Tupi Antigo”, temos poucos registros escritos pelas mãos originárias, anteriores ao século XX, e isso pois, em larga medida, muitos deles foram destruídos pela colonização portuguesa (diferentemente do que aconteceu nas colônias espanholas). Destacar o protagonismo originário em nossa contemporaneidade é fundamental para a construção da história do Brasil plural e diversa, como são os mais de 300 povos indígenas, só em território brasileiro. É, assim, realmente disponibilizar as histórias indígenas.

Finaliza-se aqui com a menção do protagonismo das atuais lideranças Sônia Guajajara, frente ao Ministério dos Povos Indígenas, Joênia Wapichana, na FUNAI e Célia Xacriabá, na Câmara dos Deputados, além das novas gerações de lideranças indígenas, como é o caso de Txai Suruí, que discursou na COP26, em Glasgow no ano de 2021. Sua fala foi preenchida de denúncias contra as mudanças climáticas e atentados contra ambientalistas e lideranças indígenas. Txai Suruí está na “linha de frente”, como disse ela mesma, contra esse atentados, resistindo aos avanços da mineração, do agronegócio e contra o silenciamento e racismos estruturais.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Almeida, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2010.

Bittencourt, Adalzira. A Mulher Paulista na história. 1954.

Chambouleyron, Rafael; Melo, Vanice Siqueira de. Governadores e Índios: guerras e terras entre o Maranhão e o Piauí (primeira metade do século XVIII). Revista de História São Paulo, N.168, 2013.

Fernandes, Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. , 1970.

Godoy, Silvana. Martim Afonso Tibiriçá: A Nobreza Indígena e seus descendentes nos campos de Piratininga no século XVI. Recôncavo: Revista de História da UNIABEU, Volume 4, Número 7, Julho – dezembro de 2014.

Hemming, John. Ouro Vermelho: A conquista dos índios brasileiros. São Paulo: EDUSP, 2008.

Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. A Queda do Céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

—————————-. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docência Área de Etnologia, Subárea História Indígena e do Indigenismo Disciplinas HZ762 e HS119 Campinas, agosto de 2001.

Navarro, Eduardo de Almeida. Dicionário Tupi Antigo: a língua indígena clássica do Brasil. Global Editora, 2013.

Nym, Juão. Tybyra: uma tragédia indígena brasileira. São Paulo: Editora Burro 2020.

Sampaio, Theodoro. O Tupi na Geografia Nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987.

Vainfas, Ronaldo. A Heresia dos Índios. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

 

 

 


Crédito na imagem: Acique Tibiriçá e Neto, tela pintada pelo artista José Wasth Rodrigues.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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