História e Historiografia dos povos indígenas

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Primeiramente é preciso entender uma diferença entre “História e Historiografia dos povos indígenas” e “História e Historiografia sobre os povos indígenas”. A primeira se baseia em documentação e relatos (relacionando a uma história oral) produzidos pelos povos originários, salientado seus protagonismos e estabelecendo perspectivas teórico metodológicas decoloniais. A segunda diz respeito às produções historiográficas construídas a respeito desses e daqueles povos, em que se destaca majoritariamente uma abordagem maximamente etnocêntrica e etnocida, de forma a generalizá-los em uma unicidade que exclui suas multiplicidades históricas e culturais, ou ainda dividindo-os em Tupi (propensos à uma dita “civilização”) e Tapuia (indígenas supostamente tidos como “incivilizados”), como denunciou John Monteiro, em “Tupis, Tapuias e Historiadores” (2001). É preciso dizer ainda que, uma história dos povos indígenas pode ser feita a partir de uma história sobre os povos originários, desde que utilizadas as metodologias adequadamente decoloniais.

Dito isso, comecemos então a dissertar quanto à História e Historiografia sobre os povos indígenas. Partindo de uma análise cronológica, é preciso se debruçar sobre a arqueologia que nos traz informações sobre o período anterior às primeiras invasões europeias. Ao que tudo indica, os povos originários se organizaram social e comercialmente de forma regional, apesar dessas redes poderem se expandir em áreas maiores, a depender do período e região estudados, como aponta Carlos Fausto, em “Os Índios Antes do Brasil”. Na arqueologia, Niéde Guidon, em “A Ocupação pré-histórica do Brasil (excetuando a Amazônia)”, demonstra como a complexidade social fazia parte também do convívio entre aqueles povos, sendo isso evidenciado pela ocupação dos territórios, usos de ferramentas e desenvolvimentos da agricultura.

O desenvolvimento do plantio foi negado pelas descrições de muitos viajantes ao longo do período colonial, como Saint Hillaire, e historiadores já no século XIX, como Francisco Adolfo de Varnhagen, pois estes se baseavam exclusivamente na percepção de nomadismo sobre aqueles povos. Ou seja, se eram nômades, eram apenas coletores, incapazes do cultivo, como criticaram John Monteiro, em “Negros da Terra” e Sérgio Buarque de Holanda, em “Caminhos e Fronteiras”. Este último autor, defendeu que se não fossem pelos povos originários e seus conhecimentos, os europeus não iriam sobreviver naquele território.

Ao longo do período colonial, a escrita e o registro sobre os povos originários ficou a cargo dos religiosos, como os jesuítas, ao menos até sua expulsão no século XVIII, dos viajantes e, a partir da criação do “Diretório dos Índios”, dos diretores de aldeamentos, como mostra Adriano Toledo Paiva, em “Os Indígenas e o Processo de Conquista dos Sertões de Minas Gerais”.

Dentre os viajantes, cumpre-se destacar a escrita de “Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goiás”, de Auguste de Saint-Hillaire. Na obra, o viajante aborda a necessidade de ocupação dos territórios inóspitos e ressalta o “vazio de gente”, assumindo que ao escrever isso, se referia ao vazio de gente “civilizada”, excluindo os povos originários. Essa percepção resume muito da abordagem dos colonizadores sobre os indígenas e sobre seus territórios, algo que permaneceria pelos séculos seguintes, até nossa contemporaneidade.

É importante dizer que muito da escrita dos jesuítas, por exemplo, também se baseia nessa percepção, voltada à catequese daqueles povos, a partir de uma atuação “salvacionista”, que visava uma suposta defesa de suas almas. Além disso, a própria crença cristã se metamorfoseou entre os povos indígenas em um hibridismo cultural riquíssimo, como demonstra Ronaldo Vainfas, em “A Heresia dos Índios”.

No entanto, ao mesmo tempo que as culturas se transformam e sobrevivem às violências, físicas e simbólicas, ocorre também a inserção de elementos intensamente destrutivos. Um, dos muitos, que gostaria de destacar, é a infiltração do que viria a ser denominado por homofobia. De acordo com Estevão Fernandes, em “Existe Índio Gay?, a colonização e, com isso, a evangelização dos povos originários inseriu essa percepção em modos de vida em que isso era amplamente aceito, em todo o continente Americano. O autor aponta que parte dessa homofobia se baseava em uma misoginia, que também resultou no apagamento e subalternização das presenças femininas, também na escrita sobre os povos originários. As mulheres apareceriam então, apenas para descrever a nudez, a presença ou falta de malícia, ou o incentivo ao matrimônio, e ainda a divisão de tarefas, como aponta Rita de Cássia Limbertini, em “A Imagem do Índio”.

Um forte expoente que escreveu sobre os indígenas no Brasil, é o já mencionado aqui Varnhagen. Infelizmente, sua obra, incluindo “História Geral do Brasil”, difamou, generalizou e demonizou intensamente os povos indígenas no país que se formava. Ainda colhemos as consequências de suas ideias, a partir da divulgação através de materiais escolares, como foi o caso de Joaquim Manuel de Macedo, com o “Lições de História do Brasil”. Em ambas as obras podemos notar uma ênfase na demonização sobre os indígenas, principalmente relacionando-os indiscriminadamente à antropofagia. É inclusive a partir de uma construção de identidade antropofágica que se estabelece a “guerra justa” contra os Botocudos antropófagos, como demostrou Maria Gilda Baqueiro Paraíso, em “O Tempo da Dor e do Trabalho”.

Além disso, faz parte de uma historiografia as produções literárias do indianismo Romântico do século XIX, menos pela fidedignidade do seu conteúdo, muito distante das etnologias disponíveis então; mas mais pela repercussão e construção de um conhecimento histórico, através de uma cultura histórica, como demonstra Andrey de Oliveira, em “Utopia e Agonia: o indianismo de Gonçalves Dias”. Não cabe aqui tecer longas críticas a essas produções, mesmo porque, nelas ocorreu alguma valorização dos povos originários, em um momento em que ainda ocorria um intenso debate sobre a suposta “selvageria gentia”. No entanto, destaca-se aqui que uma das consequências de se continuar com abordagens pouco críticas sobre essas obras, como “O Guarani”, de José de Alencar, é engessar os povos indígenas, descritos de maneira genérica, em um eterno passado colonial. Como se não estivessem presentes em toda a trajetória da história do Brasil, incluindo em nossa atualidade.

Outro ponto a ser salientado, é que mesmo a etnografia e etnologia existente ao longo do século XIX (e mesmo no século XX) é passível de críticas necessárias e fundamentais, ainda mais se considerarmos os erros de cunho linguísticos, registrado em vários dicionários, principalmente os Tupi-português. É o que salienta Eduardo Navarro, no “Dicionário Tupi Antigo”, demonstrando superficialidades e equívocos de tradução que desencadearam entendimentos empobrecidos sobre as culturas originárias dos séculos XVI e XVII, pesquisadas nos séculos seguintes.

Considerando esses erros de traduções, salienta-se a importância de uma revisão historiográfica, principalmente nas fontes escritas em línguas indígenas (com ênfase no tronco linguístico Tupi, por se tratar de línguas que tiveram várias traduções equivocadas). É também Navarro que traduziu completamente para o português, seis cartas escritas em Tupi, entre Potiguares, durante a Insurreição Pernambucana[1].

Este estudo é fundamental para destacar o protagonismo dos povos indígenas e, aí sim, destacar a abordagem de uma História e Historiografia dos povos originários. Como aborda Carlos Fausto, em “Os Índios antes do Brasil”, é possível conhecer aqueles povos recorrendo à arqueologia, à linguística histórica, às descrições dos colonizadores e ao estudar as populações indígenas contemporâneas. E neste sentido, a própria produção literária indígena atual faz parte da revisão historiográfica mencionada.

A literatura indígena é ligada metodologia de história oral, que guardam as histórias dos mais de 300 povos em território brasileiro, de acordo com o CENSO/2010, já defasado. A historiadora Puri, Aline Rochedo Pachamama, em Boacé Uchô, defende que é preciso denunciar as violências descritas em uma história de matriz colonizadora, enfatizando que a fala dos anciãos, ou seja, suas vozes sejam tratadas com igual importância das descritas pelos viajantes, que tanto deturpam seus modos de vida.

Além disso, as formas de experienciar o mundo são múltiplas, principalmente entre os povos indígenas. Um exemplo disso é a relação entre os seres humanos e não-humanos, como conta Ailton Krenak, em “Ideias para adiar o fim do mundo”. No livro, ao denunciar o crime da mineradora Samarco contra o Rio Doce (o Watu, para os Krenak), o autor comenta a perda de um parente (o rio) que naquele momento se encontrava em coma. Assim, como a Serra Takukrak, que o rio banha, também um parente, que conversa com aquele povo.

Esta é a forma de encantamento da vida que defendem Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas, em “Encantamento sobre Política de vida”. Para os Autores, a colonização, que perdura até nossos dias, resultou em uma lógica mercantilizada, onde o consumo orienta as vidas, trazendo escassez das mesmas. Há muitas outras formas de existir e praticar o saber. É o que apresenta Davi Kopenawa, em “A Queda do Céu”, escrito em cooperação com o antropólogo Bruce Albert. No livro, Davi Kopenawa nos diz o que deve ser encarado como uma crítica para a história sobre os indígenas, que é o desenho de traços em peles de imagens que, na visão dele e dos Yanomamis, se constituem em uma língua fantasma, esvaziada de sentimentos e sensibilidades, necessários para entender e compreender os xapiris. Kopenawa denuncia então a incapacidade do não-indígena em escrever uma história dos povos indígenas. Talvez, com o tempo e incentivo prático da Lei 11.6458/08, isso seja possível.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Como conta na referida reportagem: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-11/cartas-na-lingua-tupi-sao-traduzidas-na-integra-pela-primeira-vez . Acesso em 29/02/2024.

 

 

 


Créditos na imagem: Os Índios (Jean Baptist Debret, 1768). Foto: Domínio Público

 

 


SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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