Algumas reflexões sobre o Dia Internacional dos Povos Indígenas e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas

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Escrever sobre o dia Internacional dos Povos Indígenas é algo que sempre será incompleto, pois não é possível tecer em algumas poucas linhas a complexidade sobre as etnias existentes. Se no Brasil são mais de 300 povos originários, qual será o número exato no mundo? Sim, estou falando do planeta Terra, não apenas das Américas. E é importante dizer que temos a questão do conceito que define o ser “indígena”, algo tão difícil de ser delimitado quanto o próprio conceito de cultura. Mas o dia Internacional dos Povos Indígenas é algo que vai além disso, pois nele estão representados os povos originários no mundo: desde os Tikuna, etnia tradicionalmente do atual estado do Amazonas e com o maior número de indivíduos no Brasil, aos Ainus, os indígenas japoneses que vivem tradicionalmente na região Tohoku.

Diferentemente do “Dia do Índio” brasileiro, o Dia Internacional dos Povos Indígenas foi uma data escolhida em acordo com inúmeras etnias que se manifestaram na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1995, ano que se estabeleceu a primeira década internacional dos povos indígenas (1995 – 2004). É fundamental perceber que estas ações foram (e são) necessárias, para destacar as constantes violências físicas e simbólicas que os povos originários, em todos os lugares do mundo, sofrem. Uma data que muitos consideram “comemorativa” é, ao menos fundamentalmente, um marco, conquistado por estes povos, para tentar demonstrar aos não-indígenas, os abusos e opressões que sofrem.

Ao contrário do “Dia do Índio” (19 de abril), o 9 de agosto salienta a atuação dos inúmeros povos originários ao redor do mundo, em sua diversidade cultural, étnica e política. As crianças não saem das escolas com cocares de papel crepom ou com o rosto pintado, mas também não há a abordagem devida sobre as demandas indígenas que os povos originários salientam. Este ano, esperei a data para poder terminar este texto, com intenção de destacar o que, em suas próprias vozes, gostariam de salientar.

Na live que se iniciou às 17 horas no canal da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), lideranças dos grupos Xacriabá, Tikuna, Guajajara, Pataxó, Terena, Maxacali, Kaingang, dentre tantos outros conversaram e se fizeram ouvir, sem intermédios ou tutela. Salientaram a necessidade de ajuda, por parte de seus povos, pois além do enfrentamento da pandemia, permanecem na resistência de grileiros, grandes latifundiários e do próprio Estado em sua negligência. Se a situação dos grupos étnicos já era precária, atualmente a realidade intensificou suas necessidades mais básicas. Não podemos nos esquecer do veto do presidente Jair M. Bolsonaro, em relação à pandemia que enfrentamos. Dentre os vetos se destacam o acesso das aldeias a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos. Ou seja, os itens preliminares para sobrevivência, configurando como um atentado genocida aos povos originários.

Também foi a APIB que, na sua conta do Instagram, fez uma comovente publicação sobre o Kuarup, ritual de homenagem aos mortos comum a muitos grupos no Xingu, realizado um ano após o falecimento. É lembrado então que daqui a um ano, muitos Kuarupes serão realizados, em honra aos parentes perdidos para a pandemia, mas principalmente para a negligência governamental e da sociedade.

Mas o dia Internacional dos Povos Indígenas traz à tona, todos os anos, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, documento aprovado em Assembleia Geral em 2007. Neste momento que vivemos, creio que seja importante destacar dois tópicas desta Declaração: 1) a preocupação com “fato de os povos indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado, entre outras coisas, da colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos, o que lhes tem impedido de exercer, em especial, seu direito ao desenvolvimento, em conformidade com suas próprias necessidades e interesses”, e 2) “Tendo em mente que nada do disposto na presente Declaração poderá ser utilizado para negar a povo algum seu direito à autodeterminação, exercido em conformidade com o direito internacional” (DECLARAÇÃO, 2007, p. 3 e 5, respectivamente).

Quando a Declaração aborda as injustiças históricas que os povos originários sofreram, é preciso entender que estas ações não se encontram apenas no passado, infelizmente. É urgente destacar que a subtração de terras se relaciona também com o crime ambiental feito pelas empresas Vale e Samarco, no município de Mariana, em Minas Gerais. Esse crime desencadeado uma verdadeira avalanche de detritos ao longo do trajeto do Rio Doce, arrasando flora e fauna em seu percurso, contaminando não só a água, mas tudo o que ela tocou. O povo Krenak não perdeu apenas seu sustento naquele momento (como se isso já fosse pouco), mas se desconectou dos seus encantados, pois o rio é sagrado. Estiveram “vivos em uma natureza morta”, como destaca a série documental homônima, realizada pela Canal Futura.

O rio é sagrado para os Krenak, como deveria ser para todos nós. Fechados em uma lógica constante de “progresso” material, os não-indígenas não reconhecem as consequências de seus atos no planeta. “A disciplina da história existe tendo como pressuposto que nossos passados, presente e futuro estão ligados por uma certa continuidade de experiência humana” (CHAKRABARTY, 2013, p. 3), como já apontou Dipesh Chakrabarty no texto “O Clima da história: quatro teses”. O autor indiano destaca a conexão entre os tempos, lembrando a nós historiadores, mas também demais profissionais das ciências humanas e sociais, de que somos e estamos todos em conexão com algo que nos transcende e como as consequências de nossos atos, enquanto seres humanos, consolidou o chamado Antropoceno (que, de acordo com Chakrabarty, é a era geológica que vivemos, quando o ser humano se tornou agente geológico).

Bom, mas a tradição oral indígena já fala sobre isso também, a algum tempo. Em “O Amanhã não Está a Venda”, Ailton Krenak escreve, em contexto de pandemia, como estes aspectos são tão urgentes de serem debatidos e entendidos maximamente, pois “o ritmo de hoje não é o da semana passada nem o do ano novo, do verão, de janeiro ou fevereiro. O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos” (KRENAK, 2020, p. 85). E porque as ações humanas interferem intensamente no planeta, que por sua vez está completamente interligado, vivemos o que vivemos hoje. E isso também interfere em como se lê a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Em um mundo (no Antropoceno) em que o lucro e “progresso” regem as ações, também governamentais, têm se questionada cada vez mais a capacidade de restauração histórica de terras, territórios e recursos pois, afinal, o que produziriam os indígenas? É aqui que vamos para o segundo ponto que gostaria de destacar na Declaração de 2007, pois há ainda, também por parte da sociedade civil a negação de autodeterminação, incluindo aí também a autodeclaração, além do que já foi mencionado aqui. É comum, infelizmente, pessoas indígenas ainda esconderem suas ascendências, tentando evitar perseguições, ao mesmo tempo que há a negação por parte do Estado de reconhecer etnias inteiras, como é o caso dos Puri, presentes tradicionalmente em Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Para o Estado, e junto a este, FUNAI, os Puri fazem parte de um grupo extinto, o que está LONGE de condizer com a realidade, como destaca Aline Rochedo Pachamama, dos Puri da Mantiqueira.

É por estes e mais motivos que se destaca o Dia Internacional dos Povos Indígenas, como fundamental para promoção e proteção dos Direitos dos Povos Indígenas, além de salientar as OBRIGAÇÕES do Estado para com eles. Mas também, cabe a nós, cidadãos em ações ético-políticas, demandar que essas obrigações sejam cumpridas.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Instagram da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB): https://www.instagram.com/apiboficial/ .

CHAKRABARTY, Dipesh. O Clima da história: quatro teses. Sopro 91, julho/2013.

Krenak, Ailton. O amanhã não está à venda. Companhia das Letras. Edição do Kindle, 2020.

História em Diagnóstico #8: Povos Originários, Povos Indígenas: passado, presente, futuro. Canal do curso de História da UEMG-Campanha, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BRDE0R7s3Zs&list=PLcrjtxchZaN4GwoXUMTymaLsPQm8zZGxO&index=2 .

 

 

 


Créditos na imagem: Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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