Disparidades conceituais sobre os museus em Bourdieu e Lipovetsky

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Apresenta-se em caráter exploratório a relação da Arte Nova bourdiseana, que foi apresentada na década de 1970, e visa identificar a estratificação social através da apropriação da obra de arte, com a Hyperarte de Lipovetsky apresentada nos anos 2000, em que se apagam as distinções entre arte, negócio e luxo. Os museus, são então os espaços onde ocorre a exposição, interação e apropriação dos indivíduos desses tipos distintos de arte. Nesse sentido, procuro evidenciar como a partir desses conceitos, frutos de seu tempo, o papel do museu parece ter mudado sua lógica ao longo dos anos.

Bourdieu escreve que a Nova Arte, não contempla a todos indivíduos com a mesma intensidade, mas é destinada a uma minoria que é dotada de “dons especiais” sendo a noção desses talentos naturais, fortemente influenciados pela autonomia do juízo e do gosto proposto por Kant e por um conjunto teórico-filosófico voltado para a conceituação das Belas Artes, produzidas por um certo tipo de Gênio artístico. Os museus seriam então, voltados para a contemplação artística, dotada de um componente erudito que proporcionaria um elemento indispensável ligado ao prazer puro.Para o autor, esses espaços  são constituídos por uma disposição estética que visa mesclar obras, como crucifixo e fetiche, exigindo do público que os frequenta um certo esforço para dar ênfase à técnica e não ao tema que exerce a obra de arte, assim objetos que outrora, eram tratados como curiosidade de colecionadores ou documentos históricos se elevem à consagração artística e manifestam por conseguinte, uma onipotência de um certo tipo olhar estético pautado no teor erudita, que resultará no poder absoluto de uma certa contemplação artística caracterizada como a ilusória e indispensável sensação de prazer por excelência.

Em seu livro A distinção: crítica social do julgamento, Bourdieu escreve que ao interrogar membros da classe dominante, a respeito das inovações tecnológicas e pedagógicas que tinham como intuito diminuir o preço das obras podendo fornecer esclarecimentos técnicos, históricos ou estéticos a população como um todo, professores e especialistas de arte, articularam suas respostas em torno de que existia uma separação entre o que se era desejável ao público geral em apreender se comparado a eles. Entretanto o autor contra argumenta que, ao tornar essas peças acessíveis, parcela do mérito impregnado nesses especialistas seria deles retirado e na medida em que eles, aceitam melhorias pedagógicas, entregam de bandeja o tão prestigiado museu (deles) considerado austero, ascético e nobre à vulgaridade popular. O culto à objetos excluídos da apropriação privada e favoráveis a neutralização econômica que define sua dimensão “pura” das obras de arte presentes nos museus, opõem-se a boutiques ou loja de antiguidades, porque oferece objetos suscetíveis de serem contemplados, esses objetos começam a se inscreverem na série dos bens de luxo possuídos por alguém que, ao usufruir deles, não tem necessidade de confirmar, de outro modo, o deleite que e1es proporcionam e o gosto de que são  testemunho. E mesmo não sendo de seu pertencimento pessoal, fazem parte, de algum modo, dos atributos de objetos do grupo ao qual ele pertence.

Em ao público frequentador desses espaços o autor, explicita o labor e desprendimento que o indivíduo tem que exercer com obstinação metódica, para encontrar sua recompensa tanto em sentido de dever cumprido, como no prazer imediato da contemplação, ilustrado por Bourdieu com a fala de um conservador estadunidense, que considera o museu como uma academia em que o visitante se encontra na posição de desenvolvimento da musculatura ótica.  Além disso, outra característica ressaltada é que a frequência dos museus de arte  dependeria exclusivamente do capital cultural (tanto maior, quanto mais baixo for mantido o preço do ingresso) se o turismo, em si mesmo estreitamente vinculado ao capital econômico, não tivesse intensificado tal prática, isso explica que, em relação a classe dominante francesa, a taxa de representação das frações mais ricas em capital econômico é mais elevada nos museus com forte atração turística que nos museus tidos como “comuns”). Essas diferenças de ritmo se associam a qualidade dos lugares de exposição – museus de diferentes “níveis”, exposições mais ou menos “distintas” e distintivas – e, inseparavelmente, na qualidade dos gêneros, dos estilos, dos autores.

Por outro lado, Gilles Lipovetsky propõe através da noção de Hyperarte,  que não simboliza mais um cosmos, não expressa mais narrativas transcendentais, não é mais linguagem de uma classe social, mas funciona como estratégia de marketing para a valorização distrativa, jogos de sedução sempre renovados para captar os desejos do neoconsumidor, assinalando uma faceta de um conceito definido por ele como Capitalismo Artista[1], que ao se adaptar de forma eficaz à multiplicação global das grandes fortunas e colecionadores, dos investidores e especuladores, cria um sistema de comercialização e difusão da arte em escala internacional.  Para o autor, os museus sofreram relativos impactos econômicos que acabou ao longo dos anos mudando sua lógica em relação ao que é exposto e como o visitante se relaciona com a arte nesses espaços.

Lipovetsky diferente de  Bourdieu, escreve que o público durante as visitas aos museus de arte lançam olhares turístico em toda a parte para apreciar paisagens, fotografar os cenários pois, através do incremento do consumo foi imbricado a vasta estetização da percepção, de uma espécie de fetichismo e voyeurismo estético generalizado, fazendo com que os museus  sejam cada vez mais construídos não para expressar a divindade das Belas-Artes, mas sim, para formas espetaculares que contemplam o lazer e o divertimento.

Para o autor a “lógica espetacular” é a forma como são direcionados o número crescente de exposições, onde atualmente os museus organizam espécies de blockbusters fontes de acontecimentos midiáticos, destinados a aumentar as receitas comerciais e o número de visitantes. Tento a multiplicação das “exposições-espetáculo”, que se caracterizam por reconstituições, capacetes infravermelhos, imensas telas de cinema. A expressão simbólica da arte e sua aura não bastam mais: é preciso elaborar uma “ambiência” de sedução, um ambiente distrativo, um espetáculo completo, teatralizado em excesso. Estamos no momento da hibridização do sistema museal e do sistema empreendedor, mas também da arte e do consumo, do patrimônio e do show, da educação e da distração: o capitalismo artista fez surgir o setor híbrido do edutainment, em que se confundem as fronteiras tradicionais entre cultura erudita e distração, arte e lazer, educação e turismo (LIPOVETSKY, 2015. pp.173)

O museu, hoje peça mestra na política de investimento cultural das cidades, se torna polo de atração tanto, se não mais, por si mesmo quanto pelas coleções que abriga, e essas transformações no consumo cultural são expressas na relação com a arte expostas nos museus, pois a estética consumatória que perpetua a cultura atual não está mais envolta ao que o estadunidense citado por Bourdieu, definiu como o “exercício da musculatura ótica”, o consumidor hipermoderno, descontraído, apressado, detendo-se apenas alguns segundos diante das obras-primas da arte penduradas nas paredes dos museus, abstraí a obra à maneira de um turista curioso de tudo e de nada com a expectativa de obter emoções renovadas. “Pessoas deslizam pelas obras de arte como se desliza de patins nas calçadas ou como se navega em alta velocidade pela rede.” (LIPOVETSKY, 2015. pp.230)

Partindo do pressuposto do que é abordado e construído pelo olhar de um autor é sempre algo limitado em contraposição a uma realidade que é infinita, a reflexão aqui apresentada não terá a pretensão de esgotar a discussão, muito menos de privilegiar a construção teórica de um autor em detrimento do outro, pois no Brasil, pode ser que ambas as construções teóricas sirvam de alicerce para estruturar uma larga pesquisa consoante ao assunto.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

LIPOVETSKY, Gilles e Jean SERROY. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015.

 

 

 


NOTAS

[1] Se caracteriza pelo peso crescente dos mercados da sensibilidade e do “design process”, por um trabalho sistemático de estilização dos bens e dos lugares mercantis, de integração generalizada da arte, do “look” e do afeto no universo consumista. (LIPOVETSKY, 2015. pp.09)

 

 

 


Créditos na imagem: British Museum, London. Elliott Erwitt (Magnum Photos).

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Sarah Rocha

Uma viajante no tempo que cantarola a Reza de Rita Lee para espantar o mal, nesses tempos sombrios aos sonhadores.

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