O outro desejo e a tristeza

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Há muito que em nossa vida tudo pitimbava. Os nossos dias

passavam como um café sambango, ralo, frio e sem gosto. Cada dia

era sem quê nem porquê. E nós ali amolecidos, sem sustância alguma

para aprumar nosso corpo. Repito: tudo era uma pitimba só.

Escassez de tudo. Até a natureza minguava e nos confundia…

E então deu para faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água,

matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas,

cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejos para os nossos corpos.

Os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado

nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido

no tempo. O que fizeram, então? Deram de clamar pela morte. E a todo

instante eles partiam. E, com a tristeza da falta de lugar em um mundo em que eles não

se reconheciam e nem reconheciam mais, muitos se foram.

(Do conto “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo)

 

O Estado, por sua função no modo de produção capitalista, acena com uma mão a garantia de reprodução da vida, como a formação de uma base de proteção à continuidade da existência humana; no entanto, na outra mão, oculta-se que a meta é a reprodução do desejar mais, da ganância, da posse, forma maior de proteção porque contra ela ninguém pode se proteger, em tese. É uma tese falsa. E o truque existe porque é contraditório pensar que a ganância, como ordenadora dos modos de desejo individuais, tenha as propriedades necessárias para a proteção da vida de todos os indivíduos, senão de bem poucos, a quem cabe, enfim, decidir que vidas devem ser reproduzidas e mantidas para a eficiência material (mão de obra, força policial, escoamento de mercadorias) do modo de vida arquetípico de quem “compreendeu” que o melhor é o desejar sempre mais.

Mas imersas e imersos que estamos, todos os dias, em relações que não são simples de serem definidas, enxergamos vulgarmente apenas algumas luzes em meio à névoa de pessoas de cujos desejos pouco ou nada nos ocupamos, sem saber bem com quem compartilhamos de fato desejos comuns. Essas luzes são apreciadas por muitas pessoas como pontos visíveis em que a humanidade ilumina a si própria, na figura de indivíduos de cuja ganância e aceitação consciente de riscos resultou a satisfação, a vitória na vida, a ponto de esta poder ser dita segura e, consequentemente, feliz.

Mas é uma felicidade muito espaçosa esta, naturalmente. E é na força e em variados tipos de violência que esse espaço é expandido a “confins” em que os desejos têm outra “sustância” – não menos viva, provavelmente o contrário, já que sua reprodução cotidiana nada oculta, pois mesmo o que se conquista não é acumulado e não serve à ambição de se ter mais do que se tem. Certamente não posso afirmar que vejo claramente as raízes dessas outras modalidades de desejo, nem que a realidade seja assim dicotômica, mas sinto com a Terra e com bilhares de outras vidas os efeitos destrutivos – e nada criativos – do encontro entre quem carrega a ambição como guia e as vidas que se desejam como são, ainda que dinamicamente: um encontro que quase imediatamente se tornou, na história das colonizações, confronto de morte, que persiste ainda hoje.

Na nossa história, esse encontro – de que aqui exploro apenas uma de suas facetas – foi fatal, “conduzindo os índios a extremos de desengano, com a perda total do desejo de viver e a total desmoralização a que são levados após sucessivas frustrações”; Darcy Ribeiro expôs isso em 1977 (“Os índios e nós”). É um simples entregar-se à morte? É ainda uma forma de resistência (um ser que se aniquila antes de ser aniquilado)? Sinto não poder responder. Mas os resultados desse encontro-confronto podem ser e são continuamente expostos como feridas em todos os pontos em que o desejo de vida não implica a anulação da alteridade, constituindo, inversamente, uma resistência ativa contra a tristeza. Dessa configuração afrontosa surge, atualmente, a vulnerabilidade acentuada atribuída às comunidades indígenas diante da Covid-19 e a alta letalidade do vírus em seus meios. Caberia a indivíduos suportarem assim uma tristeza que se impõe há mais de 500 anos?

De qualquer modo, é sensível que a tristeza de indivíduos, famílias, grupos, comunidades não é capaz por si de cumprir o papel de extinção desejado por quem os ataca, por quem quer mais e mais – é um outro dinamismo, mas o desejo de vida também leva à expansão, não dentro de um espaço invadido pela cobiça, mas de alianças, como a lançada pela APIB em 19 de junho com a Missão Covid, que propicia atendimento médico a comunidades e indivíduos com acesso a internet; ou a que a mesma APIB firmou com a Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ.

Tal como as condições para a realização do que é ambicionado a partir do capitalismo exigem a expansão da violência no espaço, as subjetividades devem igualmente ser constrangidas para se ajustarem às conformações identitárias de um mundo em que sempre se quer mais, a custo da mortificação da maior parte da energia desejante dos indivíduos. É um exercício de violência similar que está ocorrendo na minimização ou no desprezo aberto do Ministério da Saúde e das Secretarias Especiais de Saúde Indígena à autodeclaração como forma de reconhecimento das populações originárias. Isso leva à afirmação de viés criminoso de que o atendimento especial de saúde conquistado pelas lutas indígenas não se estende a indivíduos que reclamam essa identidade mas se encontram fisicamente nas cidades, fora de suas “aldeias” – vistos como desprovidos de peculiaridades sociais e culturais. Se esses indivíduos morrem, a última violência ainda é praticada pela inadequação de sua posição nas estatísticas e, às vezes, pela negação do cumprimento dos tradicionais ritos de passagem.

Infelizmente, uma vida seria insuficiente para dar toda a atenção devida a tantas maneiras pelas quais são atacadas as formas de vida que não tem como efeito maior de suas atitudes a tristeza; em áreas urbanas, no campesinato, nas florestas, toda vulnerabilidade a ser considerada em nossos tempos tem uma história de morte e de massacre constante do desejo que se nutre da vida própria, em necessária união com todas as forças que, como modificações de uma mesma energia, convêm pelo que geram de alegria, pelo que se importam com os afetos.

 

 

 

isso nos faz perguntar… como podemos “oferecer” alianças, como formá-las?

 

 

 


Créditos na imagem: Candido Portinari. Fragmento de Guerra e Paz (c. 1955).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Santos da Silva

Nascido em 1982, professor de filosofia, pesquisador da Modernidade e de política. Nos últimos anos, os trabalhos têm se envolvido com um arco maior de disciplinas, mas que geralmente culminam em algum aspecto das políticas.

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