A insuportável dor de viver

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É para ser um dia como qualquer outro, e é – acessamos a primeira rede social, antes de levantar da cama, e nos deparamos com a notícia do tiro que perfurou outro corpo negro e jovem de uma mulher que andava na rua; tiro advindo da arma de um policial que reagiu ao roubo de sua moto. Abate-se sobre nós, igualmente, a lesbofobia no metrô de São Paulo, praticada pelos seguranças ao impedirem uma mulher de usar o banheiro feminino, já que estava vestida “como homem”. Humilha-nos, logo cedo, a desfaçatez de representantes do governo ao perseguirem um ator e diretor negro e sua esposa por declarações críticas e pelo filme Medida Provisória. E é como se esses afetos nos alimentassem tanto quanto um café da manhã; mas nos alimentam de quê?

Em verdade, afetos tristes assim dificilmente são nutritivos. Não nos fazem levar bem o dia. Talvez nossa fome que seja alimentada: você tem fome de quê?, recita nossa geração desde fins dos anos oitenta. Fato é que não há paz – e parece justificar-se assim a busca de alternativas magnetizadoras no labirinto de medicinas paralelas, como disse Elizabeth Roudinesco em um texto de 20 anos atrás. A busca é larga, está na figura da mulher que lê a mão na Praça da Sé ou defronte ao Elevador Lacerda; na disseminação de coachs que fazem parecer que a vida pode ser completada da superfície para cima; está na maioria dos metros quadrados da igreja que diz ser o Reino de Deus – em qualquer espaço e tempo que promete uma esperança que aja nesse ambiente de sofrimento instalado não sabemos desde quando.

Cabe a pergunta: devemos esperançar com qualquer coisa que esteja disponível? Ou ainda, especialmente para os dias que correm: devemos nos anestesiar diante do que está instalado e procurar ajuda em algum psicotrópico que nos tranquilize e que possa agir nessa dor psíquica que inevitavelmente sentimos? Se o fazemos, não é por dever – e muito pouco por escolha. Contudo, dispositivos para aplacar sintomas nunca foram tão disponíveis, nunca antes foi tão possível ter a anestesia à mão. Os remédios atuais prometem muito, e o mercado farmacêutico no Brasil é um dos maiores do mundo e segue em expansão. A pandemia atingiu negativamente muitas áreas da indústria, mas a produção, distribuição, comércio e consumo de fármacos cresce mais de 10% ao ano, merecendo destaque os seguintes produtos e medicamentos: Antidepressivos; Suplementos e vitaminas; Relaxantes; Produtos de beleza, nutrição e higiene (Dados da IQVIA, 2022).

É reconhecida a importância dos fármacos para regular os primeiros momentos de dor psíquica; assim surgiram: os ansiolíticos fizeram o louco falar e o psicótico ficar mais tranquilo. Mas quais fármacos são estabelecidos, e por quem? Qualquer resposta reducionista – como a que inutiliza completamente as pesquisas da farmácia e da medicina – encobre mais o problema. O que não pode ser minimizado, nunca, é que seu uso indiscriminado e a busca por medicações cresceram em dimensão tão grande que há uma revolução nas representações da dor psíquica, uma que propicia a ampliação do universo de dependência. Desde a segunda metade do século passado, quando surgiram os psicotrópicos e a clorpromazina e elas tiveram bons efeitos no tratamento de pessoas com sintomas psicóticos, a busca por remédios cresceu e um novo racionalismo se instaurou: essas “camisas de força” químicas estão por toda a parte e acompanham a banalização de diagnósticos, deslocando a reflexão acerca da dor psíquica e direcionando a sociedade em um caminho sem volta para a organogênese – para a simplificação da causalidade orgânica.

Mas nem toda dor deve ser medicada. Não deve haver anonimato nessa totalidade orgânica. É preciso dar voz e sentido aos conflitos humanos, deixar o afeto falar. Certo é que afeto se imprime e se expressa; porém, como ocorre com praticamente tudo, o tempo das expressões é atomizado ou mesmo pervertido pelas relações capitalistas. Não somente há dores a não serem medicadas, é preciso considerar que morre nisso, muitas vezes, o apego que temos a nossos apegos, cujo cultivo é dos mais próximos daquilo que podemos considerar como liberdade apesar do capitalismo. Hemos de considerar como necessária a vida como pluralidade – simultaneamente e em sucessão – de afetos que nos fazem ser. Talvez uma parte da ideia que tanto atrai da ausência de afetos como paz tenha fundamentos sólidos, mas não pode haver tranquilidade diante do fato de que essa ideia se tornou, ela própria, matéria para a produção e venda de mercadorias.

Muitas de nossas singularidades, as quais nos fazem irrepetíveis, sufocam se amarradas a padrões de intensidade afetiva que não dão conta nem de sua coerência interna, pois exagero e contenção total são requisitos equivalentes na árida arte de sobreviver sob o capitalismo, o qual se expande e convulsiona simultaneamente. No passar dos dias e anos, é fácil perder de vista que critérios tivemos e temos para modular intensidades convenientes em nossos encontros, nossos trabalhos, nos lazeres – em parte porque a experiência não precisa ser raciocinada para nos fazer aprender; mas também porque parte dessa experiência não está sendo sentida, ou está segundo padrões que em nada podem compreender o diverso e o singular. São adormecidas e deslocadas dores que se arrastam, apesar disso, e pesam nossos movimentos: o abraço que faltou no momento de um pequeno acidente na cozinha; o telefonema esperado que não ocorreu; o desejo de ser cuidada(o) e não saber como; a palavra que não veio no pior momento da vida – tudo isso é nosso e não pode deixar de sê-lo, e não significa que precisemos carregá-lo sós.

Não há o que seja trivial, se tomamos tempo para refletir; e nada deve pesar constante e exclusivamente. Todo critério é construído pelo que vemos do mundo, e sempre estamos no mundo que vemos, então é preciso compreender a necessidade do que temos em comum e do que temos “só” nosso, uma mesma necessidade que entrelaça possibilidades de autocompreensão e autoformulação a partir das teias afetivas que ajudamos a tecer no mundo, cujo conjunto dinâmico mostra bem como é amplo e diversificado o que temos a entender com e da natureza humana. A medida dos afetos, nesse sentido, é divisada sempre em conexão com nossas potências imaginativas que nos relacionam a alteridades e as envolvem nos movimentos internos a que podemos chamar personalidade.

O tempo trançado coletivamente resiste melhor à atomização e rotulação capitalistas, por isso a luta organizada recobre tantos efeitos psicofísicos. Não que toda luta coletiva seja “boa” e seus efeitos nos indivíduos sempre libertadores; mas atentemos que o tempo capitalista no incapacita para lutas assim na medida em que transforma nossas existências em uma busca da sobrevivência; os tempos pandêmicos prejudicaram inúmeros comércios, pessoas foram empurradas à miséria, as ruas passaram a abrigar muito mais indivíduos. As tragédias não foram poucas. Tivemos tempos de reorganização, certamente, mas também de desarticulação e de fragilização de pontes vitais a empreendimentos afetivos de maior alcance transformador. Tais tempos não findaram, mas já vivemos outros – tentemos fazer com que não permaneçam medicadas dores que hão de ser sentidas.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Chronosfer. Porto Alegre.

 

 

 

SOBRE OS AUTORES

Daniel Santos da Silva

Nascido em 1982, professor de filosofia, pesquisador da Modernidade e de política. Nos últimos anos, os trabalhos têm se envolvido com um arco maior de disciplinas, mas que geralmente culminam em algum aspecto das políticas.

Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva

Professora Associada da Universidade Federal de Goiás onde exerce atividades de ensino, pesquisa e extensão. Coordena o VEREDAS, grupo de estudos, pesquisa e extensão, vinculado ao LAGICRIARTE - Laboratório de Geografia, Imaginário, Criatividade e Arte.

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