Um nome menor: sobre o pseudônimo bell hooks

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Marginal não tem nome.

Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus

 

 

1. Barrados no baile: muitos eus

Muito antes de morrer, bell hooks (1952-2021) já tinha conquistado um lugar entre os grandes pensadores capazes de dimensionar o que chamamos de mundo contemporâneo, repleto de problemas instantâneos e que demanda um pensamento audacioso, atento e amoroso. bell hooks conseguia pensar assim e sua obra prova isso. Hooks conquistou um lugar próprio no campo do pensamento reflexivo tão marcado pela razão excludente e pelo racismo, pelo preconceito conceitual e pela misoginia. Ler e reler bell hooks, citá-la, investigar a obra dela e pensar-junto com essa filósofa é cada vez mais necessário. Por isso mesmo, precisamos falar mais de bell hooks. Precisamos falar muito do nome dela.

Recentemente, tentei participar de um evento acadêmico internacional de ciências humanas. Minha proposta incluía ideias e ensaios de hooks. Contudo, meu trabalho foi rejeitado. No parecer, fui acusado de ser “negligente” por escrever “por mais de duas vezes”, bell hooks em minúsculas. Respondi por e-mail, mas não obtive resposta. Confesso que a ignorância do Parecerista – em maiúsculas, sempre! – me chocou um pouco. E não participar do evento não me incomodou tanto quanto o fato do Parecerista não perceber o padrão nas citações da autora em questão, sempre em minúsculas; enquanto as citações dos outros autores apareciam em maiúsculas. Essa percepção o redimiria da ignorância. Posso parecer intransigente, aqui, mas é obrigação de um pesquisador em atividade acadêmica saber dessa questão – quanto mais um Parecerista capaz de recusar trabalhos acadêmicos!

Quando uso, no título do presente ensaio, o termo menor, estou me referindo conceitualmente aos textos de Kafka: por uma literatura menor, de Felix Guattari (1930-1992) e Gilles Deleuze (1925-1995). Para esses dois filósofos, com uma literatura menor tudo é político, tudo é completamente diferente, a enunciação individual perde lugar para a enunciação coletiva e, com ela, contata-se que “só o menor é que é grande e revolucionário” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 54). Um nome menor, em minúsculas, provoca tudo isso em graus mais intensos e radicais, afinal, hooks se reinventou e tornou-se o personagem conceitual que precisava ser, fazendo do seu nome, do problema desse nome, uma questão pessoal-político, uma questão de maioria menorizada e um convite para que outras pessoas marcadas como menores, como marginas, e outras mulheres, sobretudo, outras mulheres pretas possam se tornar grandes como de fato são. Por todas essas questões é que, para hooks, o pseudônimo atinge

 

o eu não como ‘um eu’, mas a junção de “muitos eus”, o eu como a incorporação de uma realidade coletiva passada e presente, família e comunidade (hooks, 2019, p. 69).

 

Resolvi, então, enfrentar a questão do nome para tentar tocar o coração de outros Pareceristas. E assim, quem sabe, evitar que bons trabalhos sejam outra vez barrados no baile simplesmente por não sofrerem de mania de grandeza. E porque sei que se felix guattari e gilles deleuze fossem nomes escritos em minúsculas todos saberiam que é assim e colocariam essa questão com muita propriedade.

 

2. Notas de rodapé minúsculas

Basta uma breve pesquisa nas redes – sites de busca/google acadêmico/periódicos capes – para se constatar que o nome “bell hooks” é tratado de maneira resumida em notas de rodapé que se multiplicam feito praga, em artigos broxantes, que malemá dizem “seu nome é grafado com minúsculas”. Esses artigos são assinados por pessoas que usam algum texto da filósofa apenas para citar uma autora negra, mesmo que en passant, citando por citar, sem elaborar as ideias de hooks, sem se envolver com o pensamento dela. Claramente, trata-se de oportunismo para assinalar uma decolonialidade vazia, mas que passa no jogo perverso que aproxima branquitude e pesquisa acadêmica.

 

3. Ancestralidade: eu (não) sou uma embalagem

Gloria! Gloria! I think they got your number (Gloria!)
I think they got the alias, Gloria!, that you’ve been living under (Gloria!)

Gloria, Laura Branigan

 

bell hooks é o pseudônimo escolhido por Gloria Jean Watkins para assinar os próprios textos. Trata-se de um posicionamento estético-político da filósofa, voltado para a ancestralidade. Talvez seja nos ensaios do livro de estreia, Erguer a voz (2019), o lugar onde hooks aborde a questão com mais detalhes. Ao longo dos textos, a filósofa explica que

 

uma das muitas razões pelas quais escolhi escrever usando o pseudônimo bell hooks, um nome de família (mãe de Sara Oldham, avó de Rosa Bell Oldham e minha bisavó), foi para construir uma identidade-escritora que desafiasse e dominasse todos os impulsos que me levavam para longe da fala e em direção ao silêncio. (hooks, 2019, p. 38)

 

Já no ensaio “À Gloria, seja ela quem for: sobre usar um pseudônimo”, presente no livro citado, hooks cria, com o pseudônimo, um deslocamento do indivíduo autoral, com nomes, hierarquias, títulos, posses de ideias e conhecimentos. O nome em minúscula, para hooks, evidencia

 

Dentro dessa sociedade capitalista consumista, o culto da personalidade tem o poder incluir ideias, de transformar em produto a pessoa […] Usar o pseudônimo tem sido uma forma de evitar me tornar um “produto”. É parte de um esforço contínuo de manter meu bem-estar interno enquanto me envolvo em um processo de partilha pública, tanto através do meu trabalho como da discussão pública. (hooks, 2019, p. 334)

 

Assim, com um nome menor, hooks recusa o pensamento-branco-colonizador e a esfera eurocêntrica da filosofia e das ciências humanas. Ao mesmo tempo, cura a ferida hegemônica do pensamento formal, daquilo que ela mesma chamou de “elitismo acadêmico” (hooks, 2019, p. 79). Que, como todo elitismo, quer sempre machucar o que é pequeno e raro, e cuidar apenas do que é grande e ordinário.

 

4. Categorias de resistência, segundo hooks

 

a este desejo darei

outro nome

outro destino

o desfiar deste rosário:

a cada manhã o sacrifício renovado.

sobre ele uma perfura coroa

e um solo movediço

que vague errante e solitário

na inalcançável leveza do meu poema

“ascese”, Thaise Diaz

 

Em uma sociedade que esconde a própria fraqueza e serventia atrás do termo “textão”, talvez vinte linhas seja demasiado grande para se pensar sobre um nome, mesmo dentro do campo acadêmico. Ou talvez seja coisa demais para se pensar uma questão proposta por uma mulher preta. Clarice Lispector (1920-1977) comentou, com ironia e humor, o que o crítico literário Sérgio Milliet disse a propósito do lançamento de Perto do coração selvagem: “…essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo… E não era: era meu nome mesmo” (Cf. LERNER, 2007, p. 20). O comentário de Milliet reverbera o machismo que tudo diz sem qualquer autocrítica. Ainda é comum que escrevam Clarisse, contudo, não se trata de pseudônimo, mas, sim, de erro. Não raro, também escrevem Lígia Fagundes Telles quando, o correto, é Lygia Fagundes Telles. Errar o nome das mulheres é algo naturalizado, mas errar o nome dos homens é erro crasso. A professora, pesquisadora e filósofa Carla Rodrigues no texto “A filosofia (brasileira) não é feita só por homens” (2016), considera que o uso do nome é

 

uma forma de discriminação de gênero muito comum em relação às mulheres, em geral denominadas apenas pelo prenome, já que, como bem lembra a filósofa Gaiatry Spivak, o patronímico é histórico privilégio masculino. (RODRIGUES, 2016)

 

Há, portanto, uma recusa ao sobrenome das mulheres e uma afirmação do sobrenome dos homens. Como se o pensamento e a criação das mulheres fossem informais, sem importância, diferentes do pensamento e da arte dos homens. Por isso, comumente se diz, “segundo Conceição” e “segundo Drummond”, nunca “segundo Carlos”. Continuamente lê-se “segundo Hilda” e “segundo Guimarães Rosa”, nunca “segundo João”. Tive essa intuição tanto em minha dissertação, Filosofia irada: ensaio com a raiva de Clarice Lispector, quanto na minha tese Filosofia selvagem: ensaio com o pensamento de Clarice Lispector, e sempre recorri ao sobrenome dela que “parece duro como um diamante” (LISPECTOR, 1999, p. 369).

E talvez a questão seja mesmo essa – a falta de importância que se dá ao nome das mulheres porque, no fundo, sabem o quanto esses nomes importam, sabem que valem muito, que são nomes incríveis, brilhantes e que produzem, na arte e no pensamento, joias tão raras. Por isso tentam apagá-los com proposital ignorância. bell hooks ainda afirma que

 

Nos ambientes acadêmicos, testemunhei o extremo apego de pesquisadores às suas ideias, agindo como se fossem propriedades a serem controladas, mantidas a qualquer custo. Entre pensadoras feministas, testemunhei a relutância em mudar percepções sobre a natureza da experiência da mulher branca, do movimento pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos. Parecia muitas vezes que a hiperidentificação com ideias, vendo-as não meramente como expressões de um eu, mas como representações absolutas do eu, impedia a criatividade, o pensamento crítico e o crescimento intelectual. Ao usar o pseudônimo, eu conscientemente procurei fazer a separação entre ideias e identidade para poder estar aberta ao desafio e à mudança. (hooks, 2019, p. 330)

 

O que bell hooks nos ensina é que é possível reinventar nosso pensamento e mesmo nossas vidas quando desmantelamos padrões autoritários e escravizantes e, no lugar deles, lançamos categorias de resistência, como invenção, desafio, transgressão e ousadia. Assim, nossos desejos e afetos, e também nossas pesquisas, poderiam abandonar a norma e o parecer, ou seja, o pensamento-aparente caracterizado pela autoconivência e o dogmatismo acadêmico, e trilhar caminhos grutais, profanos, selvagens.

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

DIAZ, Thaise. “ascese”. In: DIAZ, Thaise. O enigma da tarde. Belo Horizonte: Caravana Editorial, 2021.

GLORIA. Compositor: G. Bigazzi. U. Tozzi. T. Veitch. In: Branigan. Intérprete: Laura Branigan. New York City: Atlantic RecordsWarner Music, 1982. 1 Disco, faixa 02.

hooks, bell. Erguer a voz. Trad. Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favela. São Paulo: Ática, 2014.

LERNER, Julio. Clarice Lispector, essa desconhecida. São Paulo: Via Lettera, 2007.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rocco: Rio de Janeiro, 1999.

RODRIGUES, Carla. “A filosofia (brasileira) não é feita só por homens”. Disponível em: https://www.anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/a-filosofia-brasileira-nao-e-feita-so-por-homens2. Acesso em: 18/03/2024

 

 

 


Créditos na imagem: Fotógrafo: Mark Simons, ano 2014.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Pablo Vinícius Dias Siqueira

Escritor e Filósofo. Mestre em Literatura/Estudos Literários e Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dissertação e tese sobre Clarice Lispector. É professor colaborador da Universidade Federal de Uberlândia - UFU - e integrante do GT de Filosofia e Gênero da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - ANPOF.

1 comment

  1. Thaynara 30 março, 2024 at 13:58 Responder

    Lendo esse texto me lembrei do conceito de assentamento das religiões de matriz africanas. Um assentamento é conectar a força de um orixa a um objeto, bell hooks fez do seu nome um assentamento, conectou força e ancestralidade no seu pseudônimo. Um assentamento requer conhecimento e somente quem o tem, pode fazê-lo, pois aquilo que não temos, não fazemos. Um texto de justo reconhecimento que merece, também, ser reconhecido. Bravo!

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