Haydéa Santiago e o papel das palestras e conferências de artistas no Brasil do século XX

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Nascida no Rio de Janeiro em 1896, a artista plástica Haydéa Lopes se mudou ainda criança para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde iniciara seus estudos de forma autônoma. Aos dezesseis anos, volta ao Rio de Janeiro, onde passa a frequentar cursos livres na Escola Nacional Belas Artes (ENBA) durante seis anos. Haydéa é uma das artistas mais mencionadas em publicações do período de 1920 até os anos próximos a seu falecimento, em 1980. O presente texto tem como objetivo central apresentar alguns aspectos importantes de sua trajetória e dos eventos em que a artista participava, sobretudo as conferências, palestras e salões, onde verificam-se novas possibilidades para o estudo da atuação feminina nas artes no Brasil do século XX.

Na ENBA, Haydéa foi aluna de pintores renomados como Modesto Brocos (1852-1936), Rodolfo Amoêdo (1857-1941) e Eliseu Visconti (1866-1944), tendo participado com frequência das Exposições Gerais de Belas Artes, promovidas pela Escola. Foi também na academia que a artista conhecera seu futuro marido, o pintor Manoel Santiago (1897-1987). Nas Exposições Gerais, a artista recebeu uma menção honrosa de 2º grau em 1923 e outra de 1º grau em 1924, além da Medalha de Bronze em 1925, a Pequena Medalha de Prata em 1926 e a Grande Medalha de Prata em 1927. Já casados, neste mesmo ano de 1927, Manoel recebeu a principal premiação ofertada nas Exposições: o Prêmio de Viagem, que consistia em uma bolsa para estudos na França, epicentro da arte acadêmica na qual o Brasil se inspirava. O casal participou do Salão dos Artistas Franceses em 1931, fato noticiado apenas pontualmente na imprensa brasileira. Logo após sua volta em 1932, Manoel e Haydéa promoveram uma exposição no Palace Hotel da Associação dos Artistas Brasileiros, a fim de apresentar ao público as produções do período de estudos em Paris.

A partir deste ano, a participação da pintora em eventos voltados às artes irá se tornar mais ampla. Isto porque, para além das exposições coletivas ou com o esposo, Haydéa passa a ministrar palestras sobre arte e sobre as vivências femininas no campo artístico. A edição nº1321 do Diário Carioca noticia a participação da pintora na palestra “A mulher brasileira nas artes”, organizada pela escritora Rachel Prado (pseudônimo de Virgília Stella da Silva Cruz, nascida em 1891 e falecida em 1943). Na ocasião, além de Haydéa, outras importantes artistas estiveram presentes para proferir trechos da palestra, dentre elas: a escultora e poetisa Margarida Lopes de Almeida (1896-1979), as pintoras Regina Veiga (1890-1968) e Georgina de Albuquerque (1885-1962), a cineasta Gilda Abreu (1904-1979) e a musicista Ogarita del Amico. É possível observar que o evento marca uma concepção importante para a pesquisa em História da Arte que tenha a perspectiva de gênero como foco: as trajetórias das mulheres artistas devem ser compreendidas não apenas no âmbito individual, como também no coletivo, uma vez que este último desempenha importante papel na ruptura com os cânones e com outras limitações que estas artistas vieram a enfrentar. Haydéa, em suas entrevistas, falava pouco sobre seus trabalhos, mas se posicionava firmemente a favor de uma melhor estrutura educacional artística no Brasil. A distância para com os cânones artísticos também era um objetivo central em sua trajetória e, para isto, a técnica impressionista era fundamental, como dirá ao O Jornal:

 

Pinto ao ar livre (…) por que ahi deparo campo para minha fantasia, para minha imaginação, para o sentimento exacto da pintura que procuro fazer. Já não é possível pintar pela mesma technica de duas gerações anteriores, quando tudo era convencional, das cores com que se pintava o nu até a composição da paizagem (…).

 

Ainda assim, é preciso que consideremos que Haydéa era também esposa de um artista, papel que, muitas vezes, poderia recair sobre a questão da desigualdade de atenção por parte da crítica de arte no século XX. Em algumas publicações levantadas, vimos que havia a tendência de tratar da arte de Manoel antes da arte de Haydéa, além do texto dedicado à pintora ser mais resumido. O periódico Festa: Mensario de Pensamento e Arte trouxe, em nota sobre o Salão da Associação Christã de Moços (1934), um comentário sobre a participação de Haydéa, elogiando-a por não abdicar de seu “eu mulher” e pelas pinturas que tinham como cenário a cidade de Teresópolis (Rio de Janeiro), pelas quais receberia premiações; em contrapartida, o texto é dedicado quase integralmente a seu marido. Em 1934 a artista ministrou outra conferência, “A pintura franceza”, na loja Orpheu da Sociedade Theosophica do Brasil. Haydéa e Manoel mencionavam com certa frequência seus estudos e opiniões acerca de asuntos religiosos ou esotéricos, aspecto que pode estar diretamente ligado aos locais onde por vezes faziam participações em eventos. Algumas obras da artista, inclusive, se voltavam para as mitologias ameríndias, característica pela qual obteve destaque e fora mencionada no Vida Doméstica (edição 209 de 1935) na matéria “A mulher brasileira nas Artes Plásticas”. O aspecto espiritualista do casal também está presente na entrevista concedida à Gazeta de Notícias no mesmo ano de 1935; a imagem do casamento de Haydéa e Manoel passava constantemente pela conexão criativa e espiritual entre os dois artistas. Após a década de 1940, as menções a Haydéa se tornam menos frequentes nas publicações que analisamos, e o casal volta a ser mencionado brevemente em 1952 por ceder seu ateliê para a realização de um curso de pintura gratuito oferecido pelo Departamento de Difusão Cultural da Prefeitura do Rio.

É também na década de 1950 que começamos a identificar Haydéa e Manoel como parte de um grupo de grande importância na transição da arte acadêmica para os modernismos que já haviam despontado nas décadas anteriores. A noção de emancipação dos moldes acadêmicos brasileiros propostos por este grupo se contrapõe, no entanto, à intenção de continuidade do vínculo com tendências europeias como o impressionismo, aspecto que cercearia a carreira de Haydéa, Manoel, do casal Lucílio e Georgina de Albuquerque e de Regina Veiga por algum tempo, sobretudo após o destaque alcançado pelo Grupo dos Cinco através do movimento Modernista. Embora alguns dos colegas do casal tenham sido considerados mestres conservadores com o avanço do modernismo, o grupo no qual Haydéa se insere continuará se movimentando para repensar os canônes artísticos. Isto se refletiria também em suas trajetórias individuais, onde poderemos identificar, em Manoel e Haydéa, três importantes fases: a primeira situada no período anterior à viagem para a Europa; a segunda marcada pela volta ao Brasil e a terceira, pontuada pelo crítico Quirino Campofiorito (1902-1993) como aquela que se segue à década de 1950.

A discussão sobre a figura de Haydéa enquanto mulher e artista só seria efetivamente posta em pauta em fins da década de 1970, onde podemos citar como exemplo o texto de Walmir Ayala (1933-1991) para o Jornal do Brasil (edição 327 de 1978), onde o autor destaca o impacto do machismo nas artes na valoração das obras da artista frente às de Manoel. A discussão sobre a revisão dos instrumentos teóricos de análise da História da Arte, recente e em destaque na contemporaneidade, tem como um de seus principais desafios a concepção de que a atuação das artistas para além do ateliê é igualmente importante aos questionamentos acerca de sua formação e participação em eventos pelo Brasil e no exterior. Para o estudo da trajetória de Haydéa Santiago, destacamos a importância de voltarmos nosso olhar a outras possibilidades para a profissão artista para que seja possível ampliarmos o conjunto de fontes primárias e, consequentemente, construírmos concepções mais aprofundadas a respeito da atuação das artistas brasileiras. As obras de Haydéa tendem a não focar em temas sociais, mas suas realizações fora do ambiente de produção das obras mostram sua relevância no que diz respeito à cena artística e seu processo de abertura às mulheres em outras funções além de expositoras.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Artes – Guia semanal/ compra, venda  serviços. Jornal do Brasil. 5 de mar. 1978, p. 51. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/120171

Dupla união: pelo sentimento affectivo e pelo ideal artístico. Gazeta de Notícias. 8 de mai. 1927, p. 9. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/103730_05/22352

Na intimidade de nossos artistas – Uma hora amável na residência de Manoel e d. Haydéa Santiago. O Jornal. 7 de nov. 1926, p.1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/110523_02/29186

NETTO, Silveira. Nota 8. Festa: Mensario de Pensamento e Arte. Julho. 1934, p. 18. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/164526/326

SGARBI, Octávio. A mulher brasileira nas Artes Plásticas – Artistas consagradas e artistas que se fazem. Vida Doméstica. Agosto. 1935, p. 91-93. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/830305/22928

Uma conferência feminina cheia de interesses e novidades. Diário Carioca. 27 de nov. 1932, p.13. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/093092_02/8854

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Rua de Teresópolis. In: Catálogo das Artes. Distrito Federal: Catálogo das Artes, 2018. Disponível em: https://www.catalogodasartes.com.br/obra/AcDeAe/.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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