A caracterização civil-militar em debate: é possível o conceito para definir o Governo Bolsonaro?

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A epidemia que hoje assola o mundo fez do Brasil um local político de excelência. Hoje a cadeira da presidência da República é ocupada por um dos poucos políticos mundiais que ignora a gravidade da situação. Sua displicência irônica, somada ao processo espúrio que o levou à presidência, sem contar as controversas declarações que tem acumulado em sua vida pública, tem revoltado uma parcela significativa da população brasileira. Parte desse conjunto de indignados conta com a contribuição decisiva de uma parcela de intelectuais que tem acompanhado a política nacional cotidiana. Entre artigos, livros e jornais está sendo montado um quadro analítico que nos permita melhor entender o fenômeno bolsonarista. Entre essas contribuições, me deparei com um texto importante, publicado no portal Outras Palavras[1]. Não cabe aqui detalhá-lo, mas apenas indicar, que em deslocamento aparentemente despretensioso, o autor optou por definir o “governo Bolsonaro” como “civil-militar”.

Apesar de partir da imprensa, acredito que a atribuição tem grande relevância histórica. Já não é novidade o processo que faz da História um campo de abordagem dos jornalistas, ainda mais quando tratamos da história que temos vivido. O que não podemos, como historiadores, neste caso, é evitarmos a participação nos debates que teimam em criar conceitos para a configuração política do presente. A “conceitualização” é uma atribuição cara ao historiador. “Arte do reencontro entre poder e palavra ”, entendo que definir o governo Bolsonaro como civil-militar é uma ação necessária e urgente, pois “toda tomada de poder é também uma aquisição de palavra (CLASTRES, 1978, texto de contracapa)”. E os historiadores não podem se manter alijados dessa disputa.

Para os que se interessam sobre o tema, também não é nova a conclusão de que o conceito acima foi responsável por um dos debates mais calorosos da historiografia recente. A atribuição civil-militar popularizou-se, gerando um consenso entre os historiadores e professores de história para definir a ditadura que assolou o país entre os anos de 1964 e 1985. No artigo publicado em Agosto de 2012 – O sol sem peneira, Daniel Aarão Reis afirma que o apoio da sociedade civil foi fundamental para a longa vida da ditadura militar no Brasil. O conceito partiu deste artigo, ganhando não só as pós-graduações, como também as salas de aula e o público não especializado. Mas seria a hora de alargarmos as fronteiras do conceito civil-militar para agora também definir o governo de Bolsonaro, mesmo que seu mandato ainda não tenha acabado?

Parte difícil de se escrever sobre o presente é a forma como a velocidade dos acontecimentos modificam as condições de análise. Entre o momento que decidi abordar o tema e o seu encerramento, a situação do país já deixou de ser a mesma. Novas declarações foram dadas pelos chefes de governo, algumas contraditórias. Posturas confusas seguem sendo tomadas, e novas negociações foram feitas. Contudo, enquanto escrevo essas linhas, é impossível fugir do fato de que a gestão pública do governo Bolsonaro é comandada por militares. Mas antes de partirmos para a caracterização dos postos de governo, vejamos como se comportam suas bases sociais (e civis), outro segmento determinante para a caracterização que aqui proponho.

Durante a campanha que elegeu o atual presidente, foram utilizados diversos recursos de convencimento. Entre eles, a propaganda pela volta de um tradicional autoritarismo das Forças Armadas, além da defesa de situações históricas em que os militares estiveram no poder. Esses são elementos fundamentais para entendermos como foram alavancadas as atitudes pró-Bolsonaro. E não é preciso dizer que eles ainda sobrevivem em meio a seus seguidores mesmo após o presidente eleito. Soma-se a esses fatores a desgastada associação entre militarismo e segurança. A expectativa do eleitorado de extrema direita, responsável por eleger o mais novo presidente traduz-se na crença do salvacionismo. O diálogo entre a base eleitoral se configurou através de uma roupagem nacionalista, onde explora-se a antiga ideia do regime militar e sua defesa pela soberania nacional. E a contradição entre o discurso que movimenta o apoio ao governo e a prática de gestão que se desdobra ao longo desses incompletos três anos de governo, se expressa na administração econômica de cunho liberal. Em que pese o fato de que a ditadura, no revezamento entre os seus generais-presidentes tenha por vezes adotado uma política nacionalista, o seu legado aponta para o “entreguismo” como marca da política-econômica. Em resumo, ao tomar o conjunto onde se insere a associação entre militarismo e segurança (salvacionismo e nacionalismo) e formado o engodo que transita entre a soberania e o liberalismo, está composta a imagem da ditadura militar que sobrevive nas mais débeis consciências da atualidade, ou seja, aqueles que seguem apoiando o mandato de Jair Bolsonaro.

Mas para melhor compreender a ascensão de uma figura como a do atual presidente, é importante recuperarmos a tese do salvacionismo. Entre a experiência do golpe militar e a eleição de Bolsonaro, assemelha-se a forma como foi construída a imagem de um país à deriva. Tanto em 1964 como em 2018, a capacidade de recolocar a nação no eixo foi atribuída a um chefe militar “que assume o papel de condutor da nação em crise” (TEIXEIRA DA SILVA, 2020), responsável por executar a missão militarista de defesa da ética redentora. No primeiro caso, um golpe, no segundo, uma eleição – mas já foi apontado que existe um consenso historiográfico de que o movimento de 1964 contou com o apoio de parte da população brasileira da época.

A comparação entre os distintos períodos históricos é sempre um desafio à historiografia. É fácil recorrermos ao erro da redundância ou generalização entre um recorte e outro, perdendo a capacidade do devido detalhamento de cada problema. Nesse sentido, é preciso o cuidado com as comparações entre a ditadura e o atual governo, entendendo, dessa maneira, que a composição ministerial de Bolsonaro funciona sob o signo da nova República. Isso quer dizer que não podemos perder de vista que entre um tempo e outro existe um marco de mediação que é a Constituição promulgada em 1988. Foi ela que enfim encerrou a ditadura militar no Brasil. Mas não quero dizer com isso que as heranças do regime foram extintas com a promulgação da carta dita cidadã. De outro modo, as comparações entre os períodos devem ser guiadas a partir das brechas deixadas pela Constituição para a continuidade da interferência militar ao longo da Terceira República. E como muitos pesquisadores vem afirmando, os governos democráticos que antecedem Bolsonaro, também devem ser responsabilizados por manter uma tradição de diálogo aproximado com a alta hierarquia militar.

Em geral, o diálogo aproximado entre governo federal e Forças Armadas foi uma constante ao longo da democracia pós-88. No entanto, uma vez radicalizado na ascensão de Bolsonaro, nos deparamos hoje com um verdadeiro “partido militar” dentro do mandato presidencial. O efeito da presença militar nos postos de governo é, em linhas gerais, emprestar a credibilidade que tem as Forças Armadas à gestão de Bolsonaro. Por vezes, esses militares são vistos como os responsáveis por “colocar limites às loucuras” do presidente. Essa independência entre o pretenso purismo político do Exército e a gestão de risco do atual presidente nem sempre se confirma, tendo em vista, por exemplo, alguns encaminhamentos de seus ministros militares, observada no comando desastroso do general Pazuello sob o ministério da saúde, posto que abandonou diante da crise sanitária causada pela recente pandemia.

A transição Temer-Bolsonaro deve ser destacada no que toca à ocupação dos cargos do executivo por militares. Parte fundamental desse processo foi a decisão da liderança MDBista em substituir, no Ministério de Defesa, um político civil por um representante das Forças Armadas. Mas nada se compara com o que fez Bolsonaro como presidente. Atualmente, em último dado que tive acesso, são por volta de 2.500 os militares que se distribuem entre “assessoria ou chefia, em ministérios ou repartições (PENIDO, Ana; RODRIGUES, Jorge; SUZELEY, Mathias; 2020)”. A tese de que existe um verdadeiro Partido Militar dentro do governo é então inquestionável: os militares seriam os principais servidores públicos de Jair Bolsonaro, o que também demonstra o caráter militar de seu governo. Portanto, entre o comportamento de sua base civil e a estrutura militar de seu governo estão as brechas para aceitarmos a definição do atual governo federal como civil-militar. Esses elementos definem a radicalidade da aproximação do executivo com as Forças Armadas e a força com que têm atuado os representantes dessa última instituição.

Se não podemos fugir deste fato, contudo, enquanto historiadores, devemos denunciar as condições de possibilidade dessa aproximação entre gestores civis e Forças Armadas, principalmente quando o passado nefasto de uma ditadura militar insiste em rondar a atual República. No limite, podemos denunciar que a espera salvacionista pela ação militar, por parte do eleitorado brasileiro de direita, remete historicamente ao próprio fato de que foram os militares os responsáveis por inaugurar a República no Brasil, em 1889, depondo os resquícios monárquicos e inaugurando o novo regime. Ou seja, ao recorrer ao acontecimento inaugural, encontraríamos nas Forças Armadas o segmento responsável pela defesa de nossa ordem republicana. Mas olhando mais de perto a configuração da democracia pós-88, melhor é denunciar as jogatinas políticas da constituição pós ditadura militar e da mais recente ordem democrática. Foram elas que puseram em continuidade a disputa pela aliança com o oficialato militar, sua defesa e tutela.

Entre críticas presentes e passadas, o consenso aponta que a brecha maior da constituição foi relegar à Forças Armadas o direito de garantia da Lei e da Ordem à revelia de quaisquer condições. Refiro-me então, ao artigo 142, recentemente reivindicado por Bolsonaro para conter os desmandos de governadores ao executivo, quando os representantes dos estados optaram por manter as medidas de confinamento e distanciamento social ao longo da pandemia. Não por acaso, as bases eleitoreiras da direita foram às ruas no ultimo 1º de maio reivindicando o mesmo artigo, num apelo ao presidente para que ele recorra à condução política das Forças Armadas ainda em sua gestão, ou seja, o seu salvacionismo diante da crise política que se abate no país.

Têm-se então que o espaço aberto na Constituição de 1988 para o livre-arbítrio militar se encontra na liberdade de atuação desse grupo para garantir a chamada “lei e ordem” no território nacional. Essa atribuição sobrevive na racionalidade militar desde sua fundação, e ela encontra eco no desejo dos presidenciáveis em se perpetuar no poder. Ela também conforta a população que clama por nacionalismo e segurança pública. Mesmo que parte do texto do artigo 142, indique “a autoridade suprema do Presidente da República”, a falta de uma definição mais precisa do que significa “a garantia da lei e da ordem” pode levar a interpretação da possibilidade de uma intervenção militar na política brasileira a qualquer hora.

Também me parece que diante do relativo amadurecimento democrático pós 1988, uma possível intervenção militar não se transfiguraria num chamado golpe de Estado. O futuro do país depende dos conflitos que por hora tecem as teias da história política nacional. Por último, temos de ter em vista que não se consolidam valores democráticos ao se caminhar ao lado do militarismo. Manter a autonomia das Forças Armadas é condenar a população à submissão. E quanto aos súditos, estes “estão submetidos ao silêncio do respeito da veneração ou do terror (CLASTRES, 1978, texto de contracapa)”.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

PENIDO, Ana. RODRIGUES, Jorge. MATHIAS, Suzeley. As forças armadas no governo Bolsonaro. Tricontinental, 14 de abril de 2020. Disponível em: https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/as-forcas-armadas-no-governo-bolsonaro/?fbclid=IwAR3chHPIloSiRvhewZKUx7X4pACHRwmGUyOla2HqQmOWNY1Ti2FHaoR0EE4

REIS FILHO, Daniel Aarão. O sol sem peneira. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 83, Ano 7., p. 31-35, 2012.

TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Teses sobre a história dos militares no Brasil. Brasil de Fato, 18 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/01/18/artigo-or-teses-e-falacias-sobre-a-historia-dos-militares-no-brasil.

ZIBECHI, Raúl. A Embraer voa para o nada. Outras Palavras, 06 de Maio de 2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-embraer-voa-para-o-nada/

 

 

 


NOTAS

[1] ZIBECHI, Raúl. A Embraer voa para o nada. Outras Palavras, 06 de Maio de 2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-embraer-voa-para-o-nada/

 

 

 


Créditos na imagem: El Pais, divulgação.

 

 

SOBRE O AUTOR

Filipe Menezes Soares

Doutor em História Social da Amazônia, mestre em História pela UFPE, na linha de Cultura e Memória. Atualmente é professor de História na rede particular de ensino em Recife.

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