Carta para José

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“E agora José?

Para onde?”

 

Guardei domingos e festas, mas esqueci os demais mandamentos bíblicos.  Fim de festa é sempre horrível para mim, principalmente quando a música para. Lá se vai todo o meu tesão momentâneo, todos os gozos, até que a esperança se atreva a sair da caixa de pandora: Vai ter after lá em casa! “Opa, digo bora!” e, tudo que eu quero é que o Dj coloque músicas animadas. Assim, na falta de alguém que se arrisque, me proponho a conduzir a festa. Ninguém nunca reclamou do meu gosto por brega. Aliás, o brega reúne vários ritmos, agrada muitos gostos.

Fiz Drummond de recalque! Faz anos que o lia com certa regularidade e, alguns outros que se quer pego em seus livros, adivinha? Eu sei os meus favoritos de cor. Nunca superei “E agora José?”. Parece final de festa: produção de adrenalina vinda direto dos rins, produzida pelas glândulas adrenais e, de repente, a música para. De repente o mundo parou. No Brasil, porém “só depois do carnaval”.

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A covid-19, é uma nova gripe, começou a espalhar-se na China no fim do ano passado. Dadas as gravidades de seu contágio e a sua rápida transmissão, evitar contato com as pessoas, manter distância física e usar máscaras ao sair de casa para realizar as tarefas necessárias, é o melhor método para frear sua transmissão, diminuir as mortes e os infectados pelo vírus, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), noticiários de TV, etc e tals. 2020, o primeiro ano da década, soou como o som desligado no fim da festa de forma abrupta, cortando a onda da galera “geral sentiu” (LETRUX, 2020”).

E se, você ler o poema de Drummond e o José for você, ou se fosse o seu nome no lugar do nome do José? “E agora, para onde?”. Ao escrever “Futuro Passado” Koselleck, trabalha a sua teoria do “horizonte de expectativa”, que também diz respeito ao motor das experiências humanas: o passado, uma vez que ele diz sobre as nossas memórias individuais e coletivas. Então eis o nosso ímpeto de nos projetar para um futuro imaginário e dá-lo vida.

Questionar conceitos, pensá-los e repensá-los como forma de traduzir experiências individuais ou coletivas, da infância à (não) velhice, da chegada e do encontro, do eu do outro, nos move. O que podemos perceber dadas a tantas descobertas sobre si mesmo e as representações dos sentimentos pelas formas das mais variadas expressões, é que elas também propuseram a autorreflexão, como aparecem nas Madalenas Renascentistas, nos poemas de Byron, em Nietzsche, mais tarde no movimento pós-impressionista, e uma infinidade de outros pensamentos.

Preferimos e optamos por uma opção de uma série de antagonismos: raso ou fundo, baixo ou alto, chamativo ou discreto, noite ou dia, esquerda ou direita. As cores, por exemplo, estão diretamente vinculadas às essas perspectivas e, nos permitem perceber os códigos do mundo visual, ademais optar sem perceber e perceber sem optar, colore o nosso cotidiano. Noite e dia, são noite e dia, o dia aberto de amarelo do sol e a noite escura pela ausência dele.

O fim de festa é o after, o sono bom, a ressaca, o devir da água, o tempo, a espera, a esperança, a música, a dança e o agora. Melancolia também é José, Drummond, eu e você.

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Estava no 9º ano do fundamental II, quando uma professora me deu de presente: uma miniatura da Torre Eiffel, e me disse que um dia eu conheceria a França. Eu não me lembro do nome dela, mas lembro que não conseguia desenhar bem, mas amava fazer rabiscos pelo papel e dali tirar desenhos. Visto isso, ela me falava sempre de obras abstratas e no conceito por detrás dos meus rabiscos. Então nunca parei de rabiscar, recentemente tomei algumas aulas de desenho e tenho treinado anatomia e técnicas de pintura, mas sou fã de super telas abstratas e, sempre serei. Por algum motivo, elas me lembram a França.

O que dizer do tempo? “Se não me perguntam, eu sei o que é, se me perguntam não sei responder”. José dos Reis trabalha a percepção de Santo Agostinho dentre outros filósofos sobre o tempo, tempo antagônico: do devir e da morte e a superação do mesmo: a eternidade. Se para nós o tempo tem sido de devir, poder-se-á sentir o tempo também como uma passagem demorada, do fim de festa, a sombra dele mesmo. É por isso também, que a arte tem sido o nosso refúgio, além de estar em tudo.

Preenchemos o tempo com arte o tempo todo, eu tenho arriscado alguns desenhos. Podemos sentir falta das conversas da mesa de bar, das aulas, das praças, da pressa, do desacelerar, dos amigues, da rua, do supermercado, das festas e de nós mesmos. Preenchemos o tempo em nós mesmos, preenchemos o tempo do outro e de repente, ainda sobre o efeito de adrenalina o tempo nos sobra, nos falta e acaba, de repente. Mas “apesar de você amanhã há de ser outro dia”. (BUARQUE, Chico, 1970).

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Estava em uma ligação com uma amiga por esses dias. Ela me disse em algum momento “a poesia tá doendo”. Não entendi sua a dor, no entanto quando olhei pela janela do meu quarto, vi um mundo cru, por isso optei por levar a poesia comigo e, me lembrei de “No meio do caminho” de Carlos Drummond.

Perguntei aos meus familiares isolados comigo, sobre os seus sentimentos, suas projeções futuras e se a quarentena de alguma forma, pareceu para eles um final de festa. As respostas foram as seguintes:

“Decepção, vem de acepção, então para nos decepcionarmos temos que aceitar coisas na nossa vida. Não há como nos decepcionar com coisas que não estão na nossa vida. Eu não aceito a decepção, ela vem, ela nos ensina a viver e não criar esperança. Não gosto dela (a esperança), porque ela é incerta. Se eu tivesse certeza não teria esperança, mas a mantenho. Para o Brasil não! Busco amor próprio, pensar demais nas pessoas nos torna frágil, tenho sentido solidão. Batalha de rima, “amigos” tem sido a minha companhia nesse momento. ‘Viva como se não houvesse amanhã, mas sonhe como se fosse viver para sempre’. Sim pareceu fim de festa.” Emerson, 18 anos.

“Ansiedade, a falta de liberdade de busca de objetivos, ter mais cuidado com os lugares que frequento. Sinto falta de estar perto e conversar com pessoas. Sonhar, imaginar que quando tudo acabar vou completar os meus sonhos. Nessa quarentena meus sentimentos estão mais fortes, busco neles força para viver. Eu tenho tocado violão, batalha de rima e Free Fire com meus amigos. Adquiri mais conhecimento e força de vontade, me fez pensar fora da caixa: prisão dos meus sentimentos. Sobre a esperança, por vezes ela quebra a nossa expectativa. Para mim não pareceu final de festa, continuei com as minhas metas”. Henrique, 18 anos.

“Não mudou muita coisa, continuei trabalhando na quarentena. Eu achei necessário, pra tudo, porque não podemos parar por completo, mas fez bem para a minha saúde mental. Quero que tudo volte igual era antes, talvez as pessoas se reinventem, mas quero que toda essa preocupação passe. Ouço muita música, faz passar o tempo, estou com tempo de sobra. A quarentena não pareceu final de festa pra mim, faço as coisas de antes”. Gustavo, 20 anos.

Me surpreendi com as respostas e com as suas esperanças, me renovei, confesso… e tirei alguma força dessas nossas conversas. Sinto falta de perguntar-lhes mais vezes sobre os seus sentimentos. Por fim, desenhei um quadro e mais uma vez pensei que, além de sermos o próprio tempo, somos o fim dele mesmo. Que pensamento confuso! Por isso, acho persistente a ideia de alguma eternidade. Essa quarentena me deixa irritada, é um sentimento novo para mim, um pouco mais inquietante que a sensação de fim de festa e da ânsia por mais um dia de carnaval. Espero que em breve possamos nos ver.

 

 

 


Créditos na imagem: Arte da autora.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Rafaela Martins Soares

Estudante de Licenciatura em História pela UFOP, 23 anos, desenhista nas horas vagas, fã de Carlos Drummond, etc e tals.

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