O Brasil atual como modelo de decadência rankeana

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Sem medo de incorrer em anacronismo, ousamos refletir de que modo o historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886) nos ajuda pensar no Brasil atual de Jair Bolsonaro. Admitimos que nossa reflexão é um tanto extemporânea, que Ranke passa longe de ser uma referência nos meios historiográficos profissionais atuais e, em casos extremos, visto até como um historiador ultrapassado. De todo modo, é um nome imprescindível quando se pensa na profissionalização da ciência histórica, que se estabeleceu enquanto disciplina acadêmica no século XIX. Mais do que isso, ele é considerado o pai do historicismo[1], que em seu caso significa essencialmente um olhar individualizante sobre os fenômenos históricos.[2] Não por acaso, Ranke era um duro crítico da filosofia da história (principalmente a de Hegel), que se constituiu basicamente para evidenciar um sentido da história, racional e progressivo, etc. Em O conceito de história universal (um de seus poucos escritos teóricos), Ranke afirma que a história se coloca em oposição à filosofia especulativa da história, pois esta quer submeter o processo histórico às suas leis e abstrações. Diz ele: “ela reconhece a verdade da história [Geschichte] unicamente na medida em que ela se submete ao seu conceito. É o que se chama de construir a história [Historie]”. (RANKE, In: MATA, 2010, p. 204). Se isso fosse realmente verdade, pontua Ranke, a história não seria autônoma, o interesse pelo particular se extinguiria e a diversidade seria o puro desdobrar do conceito. Fiel à sua formação protestante, ele ainda via a dignidade de Deus se manifestar em cada fenômeno histórico: “[…] a história reconhece o infinito em cada coisa viva, algo de eterno vindo de Deus em cada instante, em cada ser; este é seu plano vital”. (RANKE, In: MATA, 2010, p. 206).

Segundo tais ideias, não seria difícil rotular Ranke de relativista, aquele que não consegue fazer distinções morais, e ele mesmo acreditava que períodos como a Idade Média não deveriam ser interpretados de forma inferior ao Renascimento (ou qualquer outro período histórico), mas simplesmente de forma distinta, seguindo o seu princípio religioso. Não obstante, de um ponto de vista secular e científico, conseguia avaliar o desenvolvimento dos povos de acordo com os critérios do progresso e da decadência; o que ele não concordava, era o fato da filosofia da história querer determinar isso de forma constante e inexorável. Num outro pequeno texto, Sobre as épocas da História (1854), Ranke traz à tona essa reflexão ao observar que o conceito de progresso, compreendido enquanto vontade geral que orienta a evolução e a natureza espiritual para um fim determinado, carece de demonstração e, no limite, suprime a vontade e a liberdade humana. Já do ponto de vista moral, seria possível observar elementos de grande evolução histórica, um poder exercido pelo espírito humano de continuidade desde os primórdios.[3] Neste processo, alguns povos estariam excluídos, seja por um critério de desenvolvimento civilizacional ou por algum deles entrarem em decadência. Ainda seria possível perceber momentos de progresso, indicando uma tendência:

 

Em cada época da humanidade se manifesta, […] uma grande tendência dominante, e o progresso não consiste em outra coisa senão que cobre o corpo de cada período histórico um certo movimento do espírito humano que destaca ora uma tendência ora outra e se manifesta nela de modo peculiar (RANKE, 1986, p. 58-59).[4]

 

Longe de defender uma perspectiva positivista da história, Ranke tinha muito claro que compreender o caminho da humanidade do pior para o melhor seria ser injusto com o valor substancial que cada geração carrega, ou, em sentido religioso, seria o mesmo que dizer que as gerações não têm contato com a divindade. O importante de se destacar é que isso não resulta para ele na impossibilidade da conexão entre os períodos históricos, pelo contrário, havendo mesmo certo progresso, só que não em linha reta. Assim, no âmbito moral, admite que o indivíduo (podemos dizer também uma comunidade, povo, nação, etc.) tem chance de progredir e não a humanidade como um todo, um ideal limitado pelo fato do homem ser finito (concepção similar ao da antropologia filosófica). Por isso, Ranke conclui que o conceito de progresso não deve ser aplicado em todas as circunstâncias, que não há progresso moral que tenha relação direta com a divindade.

Desse modo, as reflexões do “velho” Ranke nos ajudam a pensar que o Brasil vem sofrendo um processo de decadência, que julgamos ter se deflagrado a partir das jornadas de junho de 2013, quando tivemos certamente o maior acontecimento de manifestações populares da nova República (embora tais manifestações tenham sido cooptadas pelos movimentos de direita), passando pelo processo de impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016, que culminou com a chegada do líder de extrema direita, Jair Bolsonaro, à presidência da república em 2018. Como Ranke, aqui não temos medo de fazer uma análise essencialmente moral e também política do que temos vivido nesta última década, que em nosso caso, se vincula ao campo da esquerda.

Tratando aqui do governo de Jair Bolsonaro, é fácil dizermos que o Brasil está em pleno processo de decadência, o difícil é saber até onde tudo isso pode nos levar. Encontramos no próprio campo da direita pessoas que concordam com esse tipo de análise: o historiador Marco Antônio Villa, por exemplo, combatente assíduo do Partido do Trabalhadores (PT) quando este estava no poder, hoje é também um duro crítico do atual do governo, denunciado por ele de submisso aos interesses dos Estados Unidos, incompetente em melhorar os índices econômicos do país, pária internacional, etc. Do nosso lado, o filósofo Paulo Arantes fala em “derrocada da civilização brasileira”[5], cujo impacto devastador seria de uma proporção maior do que o golpe militar de 1964. Para nós, é até difícil conseguir listar a série de políticas e ações desastrosas deste governo, mas vejamos algumas.

Começando pela crise recente mais grave, ou seja, a pandemia da Covid-19. A política de combate à doença no Brasil tem sido catastrófica, com um número de mortos que já chega a mais de 150 mil. Esse número impressionante de mortos não é resultado apenas da dimensão biológica da doença, muito pelo contrário, está intimamente ligado às decisões políticas tomadas para combatê-la, e os dois conceitos que sintetizam isso hoje são o da biopolítica e da necropolítica. Assim, desde o início da pandemia no país, há um negaciosismo do governo federal sobre a gravidade do problema: minimização de seus efeitos (o próprio presidente disse várias vezes que era apenas uma “gripezinha”), incentivando publicamente o uso da cloroquina, uma remédio contraindicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS); adotou uma política arbitrária de isolamento social, incentivando os trabalhadores a continuarem trabalhando, e que só não foi mais desastrosa por conta do congresso nacional ter conseguido aprovar um auxílio emergencial de R$600,00, enquanto o governo desejava aprovar apenas o valor irrisório de R$200,00.

Ainda em ataques à classe trabalhadora, ano passado, o governo conseguiu sancionar a reforma da Previdência, tornando as regras de aposentadoria mais duras aos mais necessitados, enquanto nada fez para alterar os privilégios previdenciários dos que ocupam os altos cargos da República. Esse ano ainda quer passar uma reforma administrativa que, novamente, não toca os privilegiados. No campo da ciência, educação e cultura, a coisa é ainda pior: temos diminuição de investimentos, sucessivos ataques contra os profissionais da educação, desprezo total pela cultura, proselitismo religioso, ministros e secretários engajados em pautas fascistas (como o ex-secretário de cultura Roberto Alvim, que num dia muito infeliz, parodiou o ministro de propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels, a respeito de como deveria se desenvolver a arte no Brasil),  negaciosismo científico (muitos bolsonaristas, membros do governo ou não, são terraplanistas, uma teoria que era para estar, supostamente, perdida nas  “catacumbas da história”), etc.

Na política internacional, a palavra que sintetiza esse governo é vergonha! Nunca tivemos tão alinhados aos Estados Unidos, no pior sentido da coisa, entrando em conflitos que historicamente nunca tivemos papel de protagonismo, quando muito, apenas para propor uma saída pacífica. Por exemplo, para agradar o “Tio Sam”, agora o Brasil se diz parceiro incondicional de Israel nos conflitos com a Palestina, gerando uma série de animosidades com os palestinos, cujos efeitos, para ficar apenas no campo econômico, tem resultado em boicote de nossos produtos (como a carne e a soja), algo que vem se generalizando por todo Oriente Médio e outras regiões do mundo. No caso da Argentina, terceiro parceiro comercial mais importante do Brasil, Bolsonaro e seus filhos têm protagonizado episódios infantis de ataque ao país, que elegeu recentemente o socialista Alberto Fernandéz. Na posse do presidente, ameaçaram tentar tirar o país do Mercosul, criticaram as medidas de isolamento social radicais de Fernandéz em relação à Covid-19, entre outros episódios. Em relação à Venezuela, se alinhando novamente à Casa Branca, defendem o golpista Juan Guaidó (não que Nicolás Maduro possa ser defendido), ao invés de buscar uma mediação pacífica e constitucional. Entre outras tantas relações desastrosas que o Brasil vem desenvolvendo com o resto do mundo, não poderíamos deixar de mencionar que, sem dúvida alguma, temos o pior Ministro de Relações Exteriores de todos os tempos: sujeito sem decoro, mentiroso e desonesto intelectualmente (disse outro dia que o Nazismo seria um “movimento de esquerda”), lacaio de Olavo de Carvalho, o guru dos bolsonarista. Desde que assumiu o Itamaraty, Ernesto de Araújo só envergonha  o cargo. Araújo é adepto de uma definição de que o comunismo domina a cena cultural moderna, que o PT encarna os mesmos anseios da antiga URSS, e nisso ele se alinha de forma incondicional aos Estados Unidos, numa luta global contra o que chama de “marxismo cultural”. Esse alinhamento ideológico com os vizinhos do norte tem diminuído as relações do Brasil com a América Latina e África, que foram antigas conquistas do período Lula e Dilma. Longe dos BRICS, ironicamente, Araújo recebeu  duras críticas da revista The Economist, do jornal New York Times e a revista Jacobin o classificou  de “o pior diplomata do mundo”.

Como dissemos anteriormente, é difícil listar todos os problemas desse governo, sua atualização é de uma velocidade imensurável. As questões de corrupção da família Bolsonaro, principalmente o escândalo das “rachadinhas” envolvendo o senador Flávio Bolsonaro e seu parceiro Flávio Queiroz, as fake news e o apoio norte-americano no impulsionamento da campanha de Jair Bolsonaro em 2018, ou mesmo o afrouxamento das leis ambientais (e o problema das queimadas das florestas) mereceriam outros artigos. Como isso vem sendo amplamente noticiado e comentado nos meios de comunicação e nas redes sociais, trouxemos apenas alguns exemplos para demonstrar a obviedade de que o Brasil está em plena decadência.

Essa discussão é importantíssima, tanto em seu aspecto político quanto historiográfico, pois se estamos afirmando que o Brasil está em plena decadência, isso quer dizer, do ponto de vista lógico, que houve momentos na história desse país que foram muito melhores em comparação ao que temos vivido. Revela, por exemplo, que não podemos atribuir as mazelas do presente simplesmente pelo passado colonial e escravista, ainda que o atual momento carregue traços desse período, mas, que, de acordo com Ranke, os povos apresentam momentos de progresso e decadência. Ou, para lembrar o célebre historiador francês Marc Bloch, o ídolo das origens é algo a ser evitado por aqueles que se empenham em compreender a história, pois como diz o provérbio árabe, por ele citado “os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais” (apud BLOCH, 2001, p. 60).

E aqui não podemos fugir de uma comparação entre nosso presente e nosso passado recentíssimo, isto é, quando um partido de esquerda governava o país: sim, houve muita corrupção, adoção de políticas neoliberais, pouco incentivo à indústria, aumento da riqueza da burguesia nacional (sobretudo dos bancos), mas também houve sonho, esperança e vontade de construir um país mais justo. Petista ou não, ninguém pode negar os avanços nesse período: expansão e ampliação das universidades públicas, possibilitando pela primeira vez na história do país um acesso maior dos negros e mais pobres ao ensino superior, de qualidade e gratuito; políticas de redistribuição de renda através de programas como o Bolsa Família; aposentaria rural ampliada; saída de milhões de pessoas da extrema pobreza para uma condição mais digna; aumento real do salário mínimo; pleno emprego em certos momentos; acesso facilitado ao crédito aos mais pobres; acordos bilaterais históricos com a América Latina, África, China, Rússia; inviabilização da ALCA, mostrando soberania frente aos interesses norte-americanos, etc.

Hoje a conjuntura política é tão sombria que, de forma retroativa, até o partido político que mais antagonizou com o PT nas últimas décadas, o PSDB (Partido Social-Democrata Brasileiro), aparece agora como uma força “progressista”, se lembrarmos do período Fernando Henrique Cardoso na presidência (não o PSDB atual de João Dória, é claro, outro político que “surfou” na onda bolsonarista para se eleger governador de São Paulo), tendo diferenças pontuais com o primeiro, se tivermos como referência o “desgoverno” de Jair Bolsonaro. Arantes fala mesmo em período “feliz” do Brasil, que teria durado de 1994 a 2014, nessa análise retroativa bem ao estilo hegeliano, embora ele admita que nunca fora um pleno entusiasta desses governos sociais-democratas, mas admite que sentiu o “baque” como todos sentimos nos últimos anos.

Também admitimos que os erros do PT são parte importante de nossa tragédia atual. Por outro lado, não se deve ignorar uma conjuntura internacional mais ampla de avanço do neoliberalismo e dos governos de extrema-direita pelo mundo, fatores estes que contribuem para uma sensação geral de desesperança em relação ao futuro, somados aos problemas ecológicos e sanitários. Se com a queda do socialismo real no começo dos anos de 1990, Francis Fukuyama sonhava com a democracia liberal ser o ponto final da história, esse sonho hoje parece ter se tornado um pesadelo, ou melhor, uma tragédia.

Voltando ao “velho Ranke”, quem nem liberal ou socialista era, a história é um palco aberto de progressos e decadências, cabendo a nós, no presente, a decisão que rumo tomar, o que para Allan Badiou significa “tomar as rédeas da história”, tentar levar a cabo a “hipótese comunista”, não como uma lei da história, mas como decisão ético-política. No caso específico do Brasil, independente de uma situação global também adversa, precisamos “tomar de volta o que é nosso”, lembrar que nossa história não foi feita apenas de tragédia (escravidão, colonialismo, ditadura, autoritarismo), que temos entre nós uma força para rejuvenescer, para fazer “os ratos” voltarem dos bueiros de onde nunca deveriam ter saído. Para tanto, precisaremos de muita coragem, autocrítica, olhar para os fenômenos atuais sem querer achar que são apenas espelhos do passado (como querer ler Bolsonaro apenas pela ótica da ditadura, sem entender o que há de novo nele e na extrema-direita em geral) e ousadia de pensar num futuro melhor. Uma coisa é certa, independentemente da posição política que Ranke supostamente teria hoje, certamente interpretaria que a “civilização” brasileira está em franca decadência. Acordemos!!!

 

 

 


REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador; prefácio de Jacques Le Goff; apresentação à edição brasileira, Lilia Moritz Schwarcz; tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

RANKE, Leopold von. Leopold von Ranke: história/ organizador [da coletânea] Sérgio Buarque de Holanda: [tradução de Trude von Laschan Solstein]. – São Paulo: Ática, 1979

RANKE, Leopold von. Pueblos y Estados en la Epoca Moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.

RANKE, Leopold von; MATA, Sérgio da. O conceito de história universal. São Paulo: Contexto, 2010.

 

 

 


NOTAS

[1]  Em sentido geral, o conceito significa um olhar singular sobre os fenômenos históricos, mas pode significar muitas outras coisas com intenções completamente distintas, como é o caso de ser tratado por alguns como filosofia da história, positivismo (Karl Popper) ou mesmo como relativismo (José Assunção de Barros).

[2]  Em 1824, Ranke escreve seu primeiro livro, Histórias dos povos latinos e germânicos de 1494 a 1514 (Geschichtes der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514). Foi no prólogo dessa obra que disse sua famosa frase sobre a história: “mostrar aquilo que realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen), estabelecendo duas leis para o historiador: 1. exposição rigorosa dos fatos; 2. unidade e trajetória dos mesmos.

[3] Devemos admitir que este a forma moralizante de Ranke analisar os fenômenos históricos também apresenta equívocos, e isso foi bem reconhecido por um dos nossos maiores historiadores, Sérgio Buarque de Holanda, que, num pequeno artigo, Ranke: o atual e o inatual, reconheceu o valor de Ranke, sem deixar de notar o eurocentrismo do mesmo: “Fora da Europa, da sua Europa e, quando muito, fora das terras colonizadas por europeus, só existiam para ele o caos e o cemitério”. (Holanda, 1986, p.29)

[4] Tradução nossa.

[5]  Ver https://www.youtube.com/watch?v=wXnhzCyLpps.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto: detalhe do retrato de Ranke, por Adolf Jebens (1875) / Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Renato Paes Rodrigues

Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UNIRIO, com a pesquisa intitulada: A atualidade da filosofia da história hegeliana nas obras de Fukuyama e Zizek. Atua principalmente nas áreas de história intelectual, filosofia e teoria da história e história da historiografia alemã. É membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Históricos (NIET) e do grupo de estudos Historik.

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