A mentira a ser desprezada

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Não é segredo que os riscos estão distribuídos muito desigualmente durante a pandemia, nem era de se “esperar” outra coisa, principalmente no que diz respeito à relação capital x trabalho (em que o mais essencial – o trabalho – estaria mais que nunca submetido à dinâmica do lucro a custo de morte) e à relação condições materiais/território x saúde (uma comunidade sem ou com pouco saneamento e com predominância de trabalho informal está lançada em uma batalha na qual a condição das armas, a princípio, nada promete senão muita dor a quem as maneja). Ainda assim, repetindo a frase pronta de que o vírus é democrático – o que mostra que aplicar o termo “democrático” faz tempo caiu na banalidade –, muita gente passou a dar e a receber notícias sobre a doença com base na fé de que não havia outra opção senão o Estado assumir de vez o controle de toda a situação.

Por aqui, pelos domínios dos territórios brasileiros, nem foi preciso muito para que o Estado provasse outra vez que sua coesão está na violência e na segregação de classe, raça, gênero e urbana. Nada ou muito pouco se desviou da rota de declínio que Unidades Básicas de Saúde já vinham sofrendo em diversas comunidades, e logo viu-se que essas UBS’s não seriam a fonte de esclarecimento (para não falar de atendimento) para as populações locais em relação à Covid-19; logo se viu que nada seria feito em relação às 35 milhões de pessoas no Brasil sem acesso à água potável; logo se viu que a narrativa a ser vendida se apoiava na ignorância de abismos sociais que são aprofundados na linguagem e nas intenções de quem a manipula.

Quanto a este último aspecto, uma das principais frentes da lida tem sido comunicar de modo plural e autônomo – momento em que a internet deve aproximar, mas as iniciativas levam em conta suas limitações – as nuances locais desse “mau encontro” com o vírus. Essa espécie de comunicação exige extensões, porque são necessárias condições materiais, certamente. Já eram quase dois meses de pandemia declarada em São Paulo quando moradoras e moradores da favela de Paraisópolis fizeram a caminhada até o Palácio dos Bandeirantes, dia 18 de maio – a única certeza até ali era a de que não havia nenhuma política pública posta em ação nas comunidades, continuação de uma política de contenção espacial que por definição despreza todas as particularidades e experiências diversificadas de cada região. Experiências que encaminhariam grande parte dessas políticas públicas, se existissem, a um considerável sucesso, pois os agentes públicos as executariam pela contiguidade que teriam com as coletividades locais (sem precisar da imersão de agentes não essenciais às comunidades).

Que existe o contradiscurso do governo, claro – mas não o levarei em conta aqui, pois é repetitivo, mentiroso e nem pretendo avançar em um terreno que não é o meu, como o do jornalismo. Do mais, quem faz tal contradiscurso ignora que existe o abismo de linguagens acima mencionado (ou finge ignorar), pois a ideia de democracia que executa é forçar o consenso – impossível – da maioria na servidão; e é uma ignorância de um suicida com medo da morte, cego na pujança que se sabe limitada, e que não aprende, pois a mesma Paraisópolis tem uma taxa de mortalidade menor que a metade da municipal (por cem mil habitantes).

Claro que os números, por si, têm merecido ser objeto de muita cautela – e muito dessa cautela está em buscar as causas das situações expressas pelos números. A causa dessa menor proporção envolve complexidades relevantes (a comunidade está no interior da cidade e um dos conjuntos é subconjunto do outro), mas se parte dela está na auto-organização, na atuação intensiva das mulheres, na capacitação e solidariedade organizadas (detecção de níveis diversos de vulnerabilidade na mesma região, por exemplo), distribuição de alimentos e vakinhas, entre outras ações – se essas são as causas, mesmo que parciais, já se pode – por outro lado – chamar a ausência de políticas públicas de boicote deliberado do governo e do Estado à maioria das populações e a suas existências.

Assim, a mentira governamental pode ser desprezada e outra frente de guerra está aberta. Se desprezo o contradiscurso e leio o discurso “assinado” por quem age de fato nessas situações (nas comunidades, a partir delas ou com elas), é porque pareço (agora, a mim próprio, no que me é por enquanto alcançável) entender mais firmemente algo lido em Fanon (Os condenados da Terra): que em certas condições – emocionais, diz ele, com tudo o que isso implica de revolta e desejo de liberdade –, a presença do obstáculo acentua a tendência do movimento. Essa acentuação, creio, tende a tornar os abismos mais visíveis para linguagens que os supõem sem os trazer à cena.

Está longe, ainda, de ser conveniente que saiamos andando por aí senão por necessidades bem específicas, o vai e vem de comércios e quarentenas mostra isso. Mas é extremamente necessário, no momento, que atentemos a comunicações e atividades que, mesmo que pareçam dispersas – até porque são experiências vivas, logo dinâmicas –, a ponto de sentirmos como afeto (político) a solidariedade que nos permite não estarmos sós, que permite sentirmos que a guerra não está perdida. Porque se a mentira pressupõe os abismos, a solidariedade é exercício e também investigação constante e multivetorial de alianças contra a ambição de pessoas que vivem e adoecem (até morrem) protegidas pela violência do capitalismo.

 

 

 


Créditos na imagem: Alice Vergueiro / Estadão Conteúdo.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Santos da Silva

Nascido em 1982, professor de filosofia, pesquisador da Modernidade e de política. Nos últimos anos, os trabalhos têm se envolvido com um arco maior de disciplinas, mas que geralmente culminam em algum aspecto das políticas.

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