O 19 de abril e a caracterização dos povos originários como “índio”

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Neste 19 de abril de 2021, completarão 78 anos que Getúlio Vargas criou o “Dia do Índio”. Bom, na verdade foi pelo Decreto-Lei N° 5540, de 3 de junho de 1943, então esse aniversário é comemorado em uma data simbólica. “Comemorar” também não me parece ser o melhor termo para abordarmos o “Dia do Índio” …, mas vamos por partes! Afinal, qual a ideia desse dia?

A posição oficial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) é de que em 1940 ocorria o primeiro Congresso Indigenista Interamericano em Patzcuaro, no México. Lá, com a presença de lideranças indígenas, a data haveria sido firmada e, com a pressão do Marechal Cândido Rondon, incorporada no calendário festivo nacional a partir de 1943. A sensação que tenho é que nem a própria instituição parece saber justificar o porquê do 19 de abril, nem em um tempo longínquo em que as principais preocupações diárias não eram a perda de milhares de vidas ou atentados contra a democracia brasileira. Em publicação de 2011, a página da FUNAI se preocupa mais em dizer o que fazia em relação aos povos indígenas (e tudo bem, também. Não vejo problema nisso), do que responder ao título da publicação “Por que o dia 19 é dia do Índio?”. Em outras páginas, a partir de uma rápida procura on-line, é possível encontrar justificativas que a data teria sido escolhida no Congresso mencionado, também a partir de lideranças indígenas presentes.

De qualquer forma, é preciso desconfiar dessas posições mais oficiais e considerar que a presença indígena no evento não se torna sinônimo de agência. Como em muitas outras situações ao longo do século XX (e mesmo antes disso), muitos indígenas eram convidados a determinados eventos como adereços e uma espécie viva de “ilustração”. Me vem à mente, enquanto escrevo esse texto, a imagem de determinado programa infantil, no final dos anos 1980, em que a ideia de “brincar de índio” era exaltada.

Além disso, é preciso considerar que o então governo de Getúlio Vargas persistia em um projeto específico de nação, e os povos indígenas faziam parte fundamental. Ou melhor, não faziam! E este é um problema latente que herdamos do século passado. É durante o Estado Novo que ocorre uma intensificação de uma marcha para o Oeste, em um projeto de expansão das fronteiras agrícolas (desde a Primeira República) e interiorização do território brasileiro. E aqui é necessário dar um passo atrás, pois estes projetos eram divulgados a partir de uma retomada de projetos coloniais: fixação de população em território supostamente “vazio” para também garantir a estabilidade das fronteiras nacionais. Esta é uma obsessão que continuaria ainda nos anos vindouros, passando pelo período militar e culminando em nossa atualidade, através de ilusões saudosistas de um projeto civilizatório que ocorria também durante a ditadura.

Um dos pontos iniciais que me parece necessário destacar, é que aqueles territórios não estavam vazios! Parece óbvio não é mesmo? Mas a realidade é que este é um problema de longuíssima duração (BRAUDEL, 1990), e quem vem sustentando a forma que os governos republicanos e ditatoriais lidam com os povos indígenas. Uso o termo “lidar” porque persistia ainda a ideia de que os povos originários eram sinônimo de empecilho ao progresso nacional. Então vejam, ao mesmo tempo que a ideia do “Dia do Índio” era divulgada para supostamente exaltar aqueles povos como base do povo brasileiro, o governo era cúmplice de assassinatos, roubos de terra, estupros e rapto de crianças e adultos. Era cúmplice pois, desde 1908, o Brasil sofria acusações internacionais desses crimes, como foi o caso da denúncia de Alberto Vojtech Frič no XVI Congresso Internacional de Americanistas, em Viena. E continuou sendo cúmplice, pois foi durante o golpe civil-militar que também era construído o que veio a ser conhecido como Relatório Figueiredo, um documento de mais de 7 mil páginas com relatos dos mais horrendos crimes, cometidos pela Ditadura Militar e antes dela, já que o documento foi produzido entre as décadas de 1950 e 1960.

Deve-se mencionar também a existência da Expedição Roncador-Xingu, entre os anos 1941 e 1948, que vinha, por meio desta ideia de marcha para o oeste, organizar explorações no interior do território brasileiro. Este é um tema que mereceria um texto próprio para debate. Por enquanto, cabe destacar que esse projeto, além de fazer parte da expansão das fronteiras agrícolas e populacionais no governo Vargas, também lança atenção sobre o nome dos irmãos Villas-Bôas que, futuramente, iriam chefiar as próximas expedições, assim como também iriam criar o Parque Indígena do Xingu.

Este era o clima em que foi criado o “Dia do Índio”, e em uma rápida busca on-line conseguimos encontrar publicações defendendo a legitimidade dessa comemoração porque havia “índios presentes” pela decisão de tal data e pela figura indígena ser a “base da nação”. Destaco que realmente não há dúvidas sobre os indígenas serem base do povo brasileiro, já que, como muito bem demonstrou Sérgio Buarque de Holanda, em “Caminhos e Fronteiras” (1957), os europeus não teriam sobrevivido nessa terra sem o conhecimento originário. A questão que deve ser salientada aqui é os povos convidados ao então Congresso, não participaram de início, já que se sentiam desconfiados perante os não-indígenas. Ora, não era para menos, já que as relações estabelecidas até então eram majoritariamente violentas, física e simbolicamente. Além disso, temos em contrapartida ao 19 de abril a data 9 de agosto, o Dia Internacional dos Povos Indígenas, esta sim uma comemoração que deve ser destacada com mais intensidade. Mas por quê?

Há quem diga que o 19 de abril serviria para ressaltar a importância dos povos indígenas para o Brasil. Bom, se for isso mesmo, já começamos mal. “Índio” é um termo pouco reconhecido por parte dos povos originários no Brasil, que ressaltam ser um termo depreciativo e redutor da pluralidade étnica existente entre os mais de 300 povos originários, só em território nacional. O termo “índio” serve para denominar o elemento químico de número atômico 49, mencionado em qualquer tabela periódica, não os povos que habitam o país. Já o termo “povos indígenas” ressalta a pluralidade desses povos que são sistematicamente invisibilizados por parte dos não-indígenas. Além de ser uma data escolhida, realmente, por povos de diferentes localidades ao redor do mundo, destacando sua presença nos territórios colonizados ao longo do tempo.

Mas é importante destacar que mesmo esse infame “Dia do Índio”, no 19 de abril, vem sendo ressignificado pelos povos indígenas, que vem utilizando dessa data para destacar suas lutas ao redor do Brasil. Nos últimos anos, pudemos acompanhar o destaque para campanhas que visavam desmistificar estereótipos, preconceitos e desinformação. Além das campanhas específicas por demarcação de terras, contra o genocídio e etnocídio indígenas, contra o próprio silêncio que é forçado sobre essas mesmas demandas. O “Dia do Índio” então vem se tornando, através da pluralidade das vozes originárias, uma data para destacar as suas lutas.

É por isso também que não podemos mais aceitar a mulher branca fantasiada de “índia”, e que geralmente se limita a publicar uma foto com um cocar, mais inspirado em uma ancestralidade originária norte-americana do que a diversidade de ornamentos que poderíamos encontrar nos territórios mais ao sul. Ou porquê não devemos incentivar as crianças a se pintarem ou fazer saias de papel crepom, se não forem acompanhados por explicações de como e porque esses ornamentos são feitos. De que adianta, ao fim, dizer que se valoriza as culturas indígenas no Brasil, se não reivindicamos a efetiva vacinação desses povos contra a COVID-19? Ou pior, se não há uma revolta geral contra os garimpeiros ilegais de Terras Indígenas que são vacinados no lugar daqueles povos?[1] Esta é uma notícia publicada praticamente na mesma semana do dia 19 de abril…

Em março celebrei o primeiro aniversário dessa coluna para a HH Magazine e na seção de comentários, um grande autor do povo Guarani, Olívio Jekupé, comentava assim: “Os ruralistas não se fantasiam de índio, o que eles fazem é nos humilhar e até matar”. Finalizo com a fala desse grande escritor, porque para que consigamos mudanças é preciso debater e agir. As violências simbólicas se tornam físicas, e ambas coexistem nesse 19 de abril. A violência de muitas vezes querer falar PELOS povos originários, ao contrário de falar COM eles e de, principalmente, ouvi-los em suas demandas. Por que, afinal, adianta esse 19 de abril se não for para ouvi-los em seus protagonismos? É por isso que não podemos esquecer do parecer emitido pela Advocacia Geral da União, em janeiro desse ano, a partir do qual a FUNAI tentava fixar critérios adicionais para a autodeclaração indígenas, ou em outras palavras, como um não-indígena poderia contrariar uma autodeclaração indígena…

Por isso, faço o apelo para que o leitor ouça o que os povos indígenas têm a dizer, e minhas sugestão é de segui-los através das suas redes sociais e realmente acompanha-los através de suas falas. Sigam, no Instagram, as páginas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (@apiboficial), do Coletivo Tybyra (@indigenaslgbtq), da Mídia Índia (@midiaindiaoficial), da Rádio Yandê (@radioyande), do Conselho Indigenista Missionário (@cimi_conselhoindigenista). Encare essas páginas como um início de conversa e, principalmente, de escuta dos povos originários no Brasil. Que isso possa ser o começo de uma diferença em oposição ao silêncio opressor.

 

 

 


NOTAS

[1] Leia a reportagem realizada em 13 de abril de 2021, por Fabrício Araújo e Valéria Oliveira para o portal go G1 em https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/04/13/servidores-da-sesai-vacinam-garimpeiros-contra-covid-em-troca-de-ouro-afirma-lider-yanomami.ghtml . Acesso em 15/04/2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Foto – Marcelo-Camargo-Agencia-Brasil. Colagem-HH-Magazine.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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