Ensino de História e Cultura Indígena: a Lei 11.645/08

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Primeiramente é preciso dizer que a lei 11.645/08 foi revolucionária. Ela alterou a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96) que, por sal vez, já havia sido modificada pela 10.639/03. Percebe-se ainda que foi preciso mais cinco anos para a obrigatoriedade da temática indígena aparecer no escopo das regulamentações. Apesar da lei demonstrar a abordagem do tema em “todo o currículo escolar”, destaca-se em especial as disciplinas de arte, literatura e história. Uma das consequências disso é que a lei não responsabiliza também as “ciências duras”, como se o conhecimento originário não as tivesse influenciado, como aponta Denise Vilela, em “Reflexões filosóficas sobre uma teoria da etnomatemática”. Além disso, essa abordagem (ou não-abordagem) faz parte de uma estrutura racista, como explicado por Silvio de Almeida, e, “O que é o racismo estrutural?”, além do epistemicídio óbvio, como desenvolvido por Boaventura de Souza Santos, em “O fim do Império Cognitivo”, dentre outras obras.

Dessa forma, compreende-se a inovação da lei 11.645/08, em conjunto com as devidas críticas para sua real aplicação. Dentre elas, salienta-se a própria abordagem metodológica necessária para sua efetivação, ou seja, a utilização de perspectivas decoloniais para o entendimento da presença indígena no Brasil. Difere-se o ensino de história indígena, promovido junto e por vozes originárias, do ensino da presença indígena na história do Brasil, caracterizado pelo tratamento de como os indígenas são abordados pelas fontes, maximamente colonizatórias. Aqui não se trata da escolha de um método sobre o outro, mas de contemplar ambas as abordagens no esforço de combater um racismo estrutural e da intensificação do combate contra um apagamento sobre os protagonismos originários, como sustenta Vitor Ferreira da Silva, em “Preconceitos, (IN)visibilidades indígenas e ensino de história”.

Em 2022, a Lei 11.645/08 completa quatorze anos, com um longo caminho ainda por ser percorrido. A aplicação da lei deve ser direcionada à todos os níveis escolares, desde o ensino básico até o superior e pós-graduação. Afinal, o pensamento intelectual indígena não se limita ao ensino básico ou às disciplinas destacadas pela lei, como destaca Uisllei Uillem Costa Rodrigues, em “O que você veio fazer na sala de aula? Intelectuais indígenas brasileiros na educação”.

No que tange especificamente ao ensino de história, destaca-se a urgência das abordagens decoloniais, contra o acompanhamento de uma “ação genocida do Estado brasileiro” cuja qual as escolas acompanham, como demonstram Edson Kayapó e Tamires, em “A pluralidade étnico-cultural indígena no Brasil: o que a escola tem a ver com isso?”. A partir disso, denuncia-se a continuidade do uso de conceitos etnocidas, como “chegada” dos portugueses, “descobrimento” e o uso das cosmogonias tradicionais como “mitos” e folclore”. O etnocídio, assim, é promovido pelo Estado de forma a naturalizar o epistemicídio e a “destruição sistemática dos modos de vida”, como apontou Pierre Clastres, em “Do Etnocídio”.

Infelizmente, muitas das abordagens feitas nas escolas se baseiam na manutenção de estereótipos de uma imagem indígena idealizada, além de muito enraizada em um indianismo Romântico, do século XIX, como mostra Roque Spencer de Barros, em “A Significação Educativa do Romantismo Brasileiro: Gonçalves de Magalhães”. É preciso, é claro, a leitura de tais obras, mas sem a utilização de uma perspectiva decolonial tende-se à permanência do engessamento da figura indígena em um passado colonial, e de forma idealizada, além de serem personagens criados por autores, homens, brancos, voltados para uma perspectiva universalista que sistematizava o mundo a partir de um eurocentrismo, como apresenta Immanuel Wallerstein, em “O Universalismo Europeu: a retórica do poder”.

Outro ponto importante a ser denunciado é a permanência de uma abordagem, a partir de materiais diversos, sobre um estereótipo indígena representando uma suposta barbárie, enquanto a colonização e os europeus são a representação da civilidade, da modernidade e, mais tarde, o progresso, principalmente a partir da Primeira República brasileira. A oposição entre selvageria/barbárie e civilidade faz parte de uma estrutura, construída em uma perspectiva de longa duração, que consolidou, também a partir da educação, a ideia de um indígena incivilizado, e isso ainda pode ser encontrado com uma frequência alarmante, como aponta Ana Vera Lopes Macedo, em “Estratégias pedagógicas: a temática indígena e o trabalho em sala de aula” e John Monteiro, em “O desafio da história indígena”.

A partir destes apontamentos compreende-se também uma permanente abordagem estereotipada sobre o tema, e isso de maneira muito semelhante aos materiais escolares do início do século XX, como destacou Leonardo Machado Palhares, em “Entre o verdadeiro histórico e a imaginação criadora: ilustração sobre história e cultura dos povos indígenas em livros didáticos de História”. Percebe-se que as críticas de Ana Vera Macedo e John Monteiro, realizadas em 1995, antes da lei 11.645/08, ainda são pertinentemente atuais.

Neste sentido para a aplicação das perspectivas decoloniais mencionadas, faz-se necessário a utilização de materiais desenvolvidos pelos próprios intelectuais, historiadores, autores e artistas indígenas, em seus próprios protagonismos. É o que defende Aline Rochedo Pachamama, historiadora Puri, sobre a urgência de “não fazer das pessoas objeto, mas participantes de uma construção histórica”, no livro “Boacé Uchô: a história está na terra”. Para a autora, especificamente sobre a disciplina de história, formaliza-se a aplicação da lei 11.645/08 quando as vozes originárias estiverem presentes na sala de aula.

O mesmo pode ocorrer com a utilização da “oralitura”, ou seja, das tradições orais escritas em literatura (dentre outras artes), como aponta Leda Martins em “Performances sobre a oralitura: corpo, lugar de memória”. Um exemplo da aplicabilidade do método é o livro de Daniel Munduruku, “O Karaíba”. Na obra literária, o autor subverte os conceitos de “descobrimento”, “colonização” e “colonizadores”, por “invasão”, “tempo das correrias” e “caçadores de almas”, respectivamente. E mais, o autor demonstra que se a sociedade brasileira aprendeu sobre os indígenas através dos estereótipos Românticos, as vozes originárias oferecem pluralidade e diversidade.

Outra necessidade que a Lei 11.645/08 não destaca diretamente, mas é de vital importância para as demandas dos movimentos indígenas é o ensino-aprendizagem sobre o estatuto jurídico dos povos indígenas. As tentativas de destituição dos direitos originários sobre suas terras, sua educação, sua autonomia e acesso à saúde foram muitas ao longo da trajetória histórica do Brasil. E apontar isto, por meio do ensino de história, é fundamental para a real extinção do poder de tutela, que defendia a “capacidade relativa dos silvícolas”, como escrito no Código Cilvil de 1917. Foi só na Constituição de 1988, com a atuação de lideranças indígenas como Ailton Krenak, Cacique Raoni Mebengôkre, Mário Juruna, dentre outros, que os povos indígenas conquistaram o direito à diferença “rompendo com a busca da assimilação”, como pontuam Pedro Paulo Funari e Ana Piñon, em “A Temática Indígena na Escola: subsídios para professores”.

O que falta destacar é que, apesar das inovações políticas e sociais, trazidas pela Constituinte Cidadã e pela Lei 11.645/08, muito ainda tem de ser feito para a real efetivação das mesmas, principalmente no investimento na formação de professores e formação continuada dos mesmos. Tornar obrigatório o ensino de história e cultura indígena para o ensino básico, de maneira isolada e não incluir o ensino superior, é continuar com a estrutura racista e colonialista sobre um “índio” genérico, engessado no passado, invisibilizado e silenciado no presente.

Neste sentido, a decolonialidade, desde a formação docente, é vital para a desconstrução das metodologias eurocêntricas, como defende Aníbal Quijano, em “La Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. Assim, o ensino da presença indígena na história do Brasil precisa ser descolonizado para que as histórias e culturas indígenas no Brasil tenham lugar efetivo, junto à Lei 11.645/08. E mais precisamente, como aponta Álvaro de Azevedo Gonzaga, em “Decolonialismo Indígena”: Não existe borracha histórica. O decolonizar indígena é o devir dos povos originários em que pensamos no futuro pós-colonização e escrevemos uma nova história com a tinta vermelha de garantir direitos”. Assumir as violências cometidas e denunciá-las são ações urgentes, e que precisam ocupar o lugar da banalidade de um “dia do índio” nas escolas.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DA SILVA, Aracy Lopes da. “Estratégias pedagógicas: a temática indígena e o trabalho em sala de aula”. In: DA SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Liuís Donisete Benzi (Orgs.). A temática Indígena na Escola. Brasília: MECMA-RI/UNESCO, 1995, p. 527-568.

FUNARI, Pedro Paulo; PIÑON, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Editora Contexto, 2011.

GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Decolonialismo Indígena. São Paulo: Matrioska Editora, 2021.

MARTINS, Leda. Performances sobre a oralitura: corpo, lugar de memória. Letras, Santa Maria, n.26, p. 63-81, 2003.

MONTEIRO, John. O desafio da História Indígena no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís D. Benzi (Orgs.) A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1.° e 2.° Graus. Brasília: MEC/ Mari/ Unesco, 1995. p. 221-228.

MUNDURUKU, Daniel. O Karaíba: uma história do pré-Brasil. Brueri: Editora Amarilys, 2010.

PACHAMAMA, Aline Rochedo. Boacé Uchô: a história está na terra. Rio de Janeiro: Pachamama editora, 2020.

PALHARES, Leonardo Machado. Entre o verdadeiro histórico e a imaginação criadora: ilustrações sobre história e cultura dos povos indígenas em livros didáticos de história. Orientador: Júnia Sales Pereira. 2012. 228 páginas. Dissertação (Mestrado) – Mestrado em Educação, Departamento de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2012

QUIJANO, Aníbal. “La Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. En: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:  CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Davi Pinheiro e Thiara Montefusco. https://www.ceara.gov.br/2019/04/18/todo-dia-e-dia-de-indio-a-educacao-intercultural-das-escolas-indigenas/

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena Azevedo Paulo de Almeida

Bacharel, licenciada, mestra e doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP), do Grupo de Pesquisa em História, Ética e Política (GHEP/NEHM/UFOP), do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UFOP), do Laboratório e Grupo de Estudos de História Política e das Idéias, da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES), da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede, do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Matrizes Antropofágicas e Educação - GEPEMAE na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas (IHGSM), onde desenvolve pesquisa em História da Educação, História do Ensino de História, Ensino de História e Ensino de Temática Indígena. Trabalhou no museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA/UFJF), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, sediado no Escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e mais recentemente na Universidade Federal de Ouro Preto como professora substituta, pelo departamento de História, como professora e tutora no Centro de Educação a Distância (CEAD-UFOP), como professora de história do Curso Preparatório Luisa Mahin e como colaboradora externo do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF-SUDESTE)

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