É preciso estabelecer que as pesquisas sobre e com os povos indígenas devem partir primeiro de uma descolonização das metodologias, principalmente quando tais aprendizados são desenvolvidos por e para não-indígenas. Por isso, é preciso entender o imperialismo presente no colonialismo como parte dos registros históricos nas versões de modernidade dos e sobre os povos originários, como aborda Linda Smith, autora Maori, em “Descolonizando Metodologias: pesquisa e povos indígenas”. Nesse sentido, é importante apontar que esses registros históricos também passam pelo “crivo” da masculinidade e da heterogeneidade. Excluindo mulheres e sujeitEs da comunidade LGBTQIA+ da escrita da história.

A partir disso, destaca-se aqui a limitação daqueles invasores, sobre o que se tornaria as Américas: a limitação de apenas conseguirem enxergar o que conheciam e o restante era ignorado ou demonizado, como demonstra Laura de Mello e Souza, em “O Diabo e a Terra de Santa Cruz”. É por isso que muitos registros de viajantes, ao longo do período colonial, dividem o trabalho entre os povos indígenas a partir de mulheres (coletoras, responsáveis pelas crianças e habitação) e homens (guerreiros e caçadores), enfatizando a força masculina e uma suposta “fragilidade” feminina. Essa divisão é suportada pela divisão de tarefas europeia, ou seja, uma divisão espelhada no que o mundo europeu conhecia até então. Sabemos hoje da multiplicidade cultural dos povos originários, e como a divisão de tarefas entre o feminino e o masculino é mais uma redução cultural que o colonialismo foi inserido, em uma perspectiva de longa duração, sobre aqueles povos.

Cabe então mencionar aqui o relato de Francisco de Orellana, na primeira metade do século XVI, que relatava a existência de mulheres guerreiras na trajetória do que ficou conhecido como Rio Amazonas. Sérgio Buarque de Holanda, em “Visões do Paraíso” e Luiz Hott, em “As Amazonas: um mito e algumas hipóteses”, indicam a possibilidade de a história de Orellana ser um relato (mais ou menos fidedigno), de mulheres indígenas protagonistas na história, as Icamiabas. Escrevo “mais ou menos fidedigno” pois é necessário considerar ainda o imaginário coletivo, que também criava monstros e animais fantasiosos nestes mesmos relatos de viajantes. Relatos que também eram corrompidos pela percepção etnocêntrica e machista de uma historiografia hegemônica e eurocêntrica, e que poderia ter reduzido tais registros à mitos.

O exemplo traz à tona a emergência de resistências e feminismos a partir da interseccionalidade de povos e tempos distintos, refletindo sobre as pautas feministas, principalmente no que tange à atuação da mulher indígena, para além de suas comunidades tradicionais, como destaca Ângela Sacchi, em “Mulheres Indígenas e Participação Política: a discussão de gênero nas organizações das mulheres indígenas”, sobre o tema em nossa contemporaneidade. Outro ponto fundamental e que dialoga diretamente com a necessidade de descolonização das metodologias diz respeito diretamente à estereotipação do corpo feminino indígena. A nudez aparece desde os primeiros registros sobre os povos originários, voltados em maior frequência às mulheres, relacionando-as à tentação dos homens que invadiam suas terras, como demonstra Rita de Cássia Limbertini, em “A Imagem do Índio: discursos e representações”. A autora demonstra como os relatos sobre a nudes reproduzem simulacros culturais europeus, mais do que dos povos originários. Além disso, a nudez da mulher indígena é relacionada à suposta “disponibilidade sexual”, utilizado como “justificativa” para os abusos que sofreram e, infelizmente, ainda sofrem. Estudo realizado em 2016 pela ONU escancara as violências sobre a mulher indígena, tanto no passado quanto no presente, já que dentre as conclusões, uma das que chama mais atenção é que uma a cada três mulheres indígenas são estupradas ao longo de suas vidas[1]. Este dado é corroborado pelos Relatórios Anuais de Violências contra os Povos Indígenas, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Para compreender as mulheres indígenas e a construção de sua idealização, é preciso partir da dupla inferioridade construída sobre suas existências: a de gênero e a de etnia, como consequência de uma sociedade patriarcal colonial, como defende Suelen Julio, em “Mulheres Indígenas na América Latina Colonial”. No texto, a autora escreve como os abusos sexuais sobre as mulheres eram mascarados de relações consentidas (como ainda é), e em muitos casos, essas mulheres eram raptadas e obrigadas a se casarem com o próprio abusador. Em contrapartida, a Coroa (ou, como a partir do último texto mencionado, as Coroas portuguesa e espanhola) se colocava contra tais abusos, incluindo muitas vezes pela legislação, o que, por sua vez, não eliminou tais atrocidades. O Diretório dos Índios, em vigor durante o século XVIII na colônia portuguesa nas Américas, é um exemplo que reificava tais abusos, ao incentivar o casamento entre homens colonos e mulheres indígenas.

Assim, faz parte do discurso hegemônico instituir um grau de subalternidade dupla sobre a mulher indígena, ao mesmo tempo que se constrói uma idealização da sua figura, em uma perspectiva de identidade única. É o que aconteceu a partir da literatura Romântica Indianista, em que os “lábios de mel” de Iracema, inventada por José de Alencar, figuraram um estereótipo de mulher indígena domada ou a ser domada. Contra isso, há o levante dos feminismos indígenas, que consolidam questões de ordem pública, com questões domésticas e de ordem privada, como defendem Mariana Castilho e Silvia Guimarães, em “Corpo Político e Crítica Decolonial: a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas”. No texto, as autoras denunciam as tentativas de exclusão das mulheres indígenas como agentes políticas do espaço público e destacam suas atuações desde o cotidiano domiciliar (rural e urbano), incluído reivindicações na luta em favor de seus territórios originários contra uma hegemonia subjugadora de gêneros e racista.

Nesta perspectiva, está a Marcha das Mulheres Indígenas, realizada pela primeira vez em 2019, na qual demandavam pela soberania de seus corpos, espíritos e vozes. A Marcha foi idealizada no Acampamento Terra Livre (ATL) de 2016 e, de acordo com Telma Taurepang, então coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB) foi a confluência de demandas dos vários povos que alí se encontravam. Em entrevista consentida ao CIMI, Telma destaca que a diversidade de demandas é tão grande quando os povos originários, pois derivam de diferentes experiências e de diferentes regiões ao redor do Brasil[2]. Nessa esteira se encontra o livro “Guerreiras: mulheres indígenas na cidade, mulheres indígenas na aldeia”, de Aline Rochedo Pachamama, historiadora Puri. Na obra, a autora organizou e apresentou as vivências e experiências de mulheres indígenas com diferentes trajetórias e de diferentes povos, destacando a conexão com seus territórios originários. No texto, é possível perceber, a defesa de que o lugar atual da mulher indígena é no lugar o qual escolher, atuando sempre como protagonista em proteger os conhecimentos ancestrais pois, de acordo com a autora, a mulher indígena é a primeira que ensina às novas gerações sobre seus ancestrais e é quem guarda tais sabedorias.

A diferença de gênero, principalmente sobre a mulher indígena, perpassa a hierarquização de diferenças, transformando-as em desigualdade, como aponta Glória Anzaldúa, em “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro
mundo”, sobre a necessidade de somar ao campo intelectual, às vezes dissonantes e, por isso, também indígenas. Salienta-se então os movimentos das mulheres indígenas como movimentos sociais, que surgem de tensões existentes na sociedade, tanto sobre a falta de representação em um certo feminismo ocidental, quanto também nas próprias organizações indígenas ao redor do país. Assim, a luta contra o patriarcado é remoldada por meio das realidades indígenas, como aponta Fabiane dos Santos, em “Mulheres Indígenas, Movimento Social e Feminismo na Amazônia”, que demonstra ainda um crescimento considerável sobre as atuações femininas indígenas e a organização de coletivos para suas demandas. A autora ainda destaca a necessidade de determinar os limites e desafios do feminismo indígena, visto que obriga os movimentos indígenas a repensarem o sentido de equanimidade pensado pelo próprio movimento, assim como sobre os machismos presentes nos povos indígenas e, em larga medida, importado pelos europeus para tais realidades.

Outro ponto importante que os movimentos de mulheres indígenas trazem é sobre a invisibilização da presença feminina nas sociedades originárias, relacionando-as ao ambiente doméstico e também à uma presença passiva na história e na etnologia, como defende Christiane Lasmar, em “Mulheres Indígenas: representações”. No texto, a autora aponta como tais mulheres eram restringidas ao elemento de estabelecimentos de alianças a partir de parentescos, como conta a história de M´Bicym, filha de Tibiriçá. Conhecida popularmente como Bartira, a indígena foi uma das esposas de João Ramalho e sua presença na escrita da história é limitada, na maioria das vezes, à apenas isto. Lasmar indica que a própria relação dessas mulheres apenas ao ambiente doméstico demonstra o conservadorismo de estudos clássicos da historiografia e antropologia, marcando a resistência de ver a atuação feminina em outros espaços.

Ao mesmo tempo que isso ocorre, observa-se uma onda de representações de mulheres indígenas, contra essas percepções mais tradicionais. Nomes como Eliane Potiguara, Julie Dorrico, Márcia Kambeba, Graça Graúna, dentre tantas outras intelectuais, reivindicam seus espaços como autoras na literatura. Elas tomam de volta seus espaços originários, usurpados por homens não-indígenas. Também atuam no campo político, como Joênia Wapichana, Célia Xacriabá e Sônia Guajajara, para mencionar apenas algumas, de tantas outras. Em publicação recente, de março de 2022, na página da Câmara dos Deputados, pode-se encontrar a informação de uma crescente atuação de mulheres indígenas na política[3].

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ANZALDUA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 1. sem. 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em: 06/05/2022.

CASTILHO, Mariana Wiecko Volkmer de; GUIMARÃES, Sílvia. Corpo político e crítica decolonial: a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas. PerCursos, Florianópolis, v. 22, n.48, p. 319 – 353, jan./abr. 2021.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

JULIO, Suelen Siqueira. Mulheres Indígenas na América Colonial. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015.

LASMAR, Cristiane. Mulheres Indígenas: representações.

LIMBERTINI, Rita de Cássia. A Imagem do Índio: discursos e representações. Dourados: ED. UFGD, 2012.

MOTT, Luiz. As Amazonas: um mito e algumas hipóteses. Revista LPH UFOP, Volume1 NPI 1990.

PACHAMAMA, Aline Rochedo. Guerreiras: mulheres indígenas na cidade, mulheres indígenas na aldeia. Rio de Janeiro: Editora Pachamama, 2018.

SACCHI, Ângela. Mulheres Indígenas e Participação Política: a discussão de gênero nas organizações de mulheres indígenas. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 7, volume 14 (1 e 2), 2003.

SANTOS, Fabiane Vinente dos. Mulheres Indígenas, Movimento Social e Feminismo na Amazônia: empreendendo aproximações e distanciamentos necessários. Revista EDUCAmazônia – Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá. Ano 5, vol VIII, 2012.

SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Curitiba: Editora UFPR, 2018.

SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

 

 


NOTAS

[1] Como pode ser ler na reportagem disponível no portal “Confederação Nacinal dos Municípios”: https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/uma-em-cada-3-indigenas-sao-estupradas-ao-longo-da-vida-aponta-relatorio-das-nacoes-unidas . Acesso em 06/05/2022.

[2] O texto completo pode ser lido em https://cimi.org.br/2019/08/mulheres-em-luta-as-principais-pautas-da-1a-marcha-das-mulheres-indigenas/ . Acesso em 06/05/2022.

[3] A reportagem completa pode ser consultada em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/comissao-de-defesa-dos-direitos-da-mulher-cmulher/noticias/atuacao-politica-de-mulheres-indigenas-cresce-mas-ainda-esbarra-em-racismo-e-violencia-de-genero . Acesso em 06/05/2022.

 

 

 


Créditos na imagem: Nenhuma gota a mais de sangue indígena! Watatakalu Yawalapiti (@watatakalu), mulher indígena do Xingu, durante a @marchamargaridas 2019. Brasília, 14 de agosto de 2019.

 

 

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