Antes mesmo de entrar na faculdade de História comecei a perceber como professores e estudiosos das humanidades eram, cada vez mais, questionados e deslegitimados acerca de seus trabalhos. Depois que ingressei na faculdade pude ver como isso ocorre quase que integralmente. Digo “quase” por que não pretendo admitir uma única versão para explicar esse fenômeno. Na verdade, pretendo expor uma de minhas hipóteses aliada ao raciocínio colocado por Hans Ulrich Gumbrecht, em Depois de ‘Depois de aprender com a história’, o que fazer com o passado agora.

Ao longo do ensaio, Gumbrecht segue a ideia de que a Historia tenha perdido a capacidade de oferecer um conteúdo pragmático para as pessoas em assuntos políticos, filosóficos, existenciais. Ou seja, a História – bem como a historiografia – perderam a competência em ensinar. Ao mesmo tempo, o autor também afirma que isso não fez com que as pessoas perdessem o interesse na história, somente houve uma mudança de foco e na forma de encarar o conteúdo.

A história, então, tem sido cada vez mais procurada segundo um fascínio. Explicado de maneira antropológica, as pessoas têm visitados museus, igrejas, consumido livros de histórias justamente por que nunca poderão alcançar aquela realidade ou mesmo um momento histórico específico. Outra forma de explicar esse interesse seria um viés puramente estético, na medida em que turistas apreciam pinturas e esculturas antigas sem conhecer absolutamente nada da época ou das sociedades no tempo que foram produzidas. A atenção é instantânea e dura tão somente quanto é novidade nas redes sociais. Da mesma forma que o fascínio por uma época pode ser rapidamente substituída por outra.

Uma das causas responsáveis por essa verdadeira crise na História ocorreu a partir dos anos 70 do século XX. Onde escritores como: Lyotard e Hyden White propõem que as narrativas criadas pela História não são capazes de abranger infinitos pontos de vistas a respeito de um único fato que seja. Isso coloca em xeque a condição das narrativas históricas em dizer a verdade e, consequentemente, legitimidade. Junto a isso, outras correntes de pensamento que, através do estudo do passado e do presente, pretendiam oferecer um curso para a humanidade mais progressista[1] e aperfeiçoado também começavam a ser veementemente questionadas, sobretudo depois das duas guerras do século XX como também durante a Guerra fria.

Não é a minha proposta aqui discordar das colocações de Gumbrecht – até por que efetivamente não discordo – apenas tive a ideia de apresentar outra hipótese para esta crise que a História tem enfrentado e que parece se agravar na medida que os anos se passam e que a tecnologia, sobretudo, tem dominado grande parte de nosso cotidiano.

Esta, tem a ver com a análise de Martin Heidegger, em seu breve ensaio chamado Serenidade, cujo argumenta se volta para a evolução da técnica e das tecnologias e como tem ocupado cada vez mais espaço nas nossas vidas e influenciado cada vez mais nossa maneira de pensar.

Heidegger define que existem dois tipos de pensamentos: o pensamento calculado e o pensamento reflexivo. O primeiro, respectivamente, é aquele que necessita de um propósito. Condições prévias são mobilizadas a fim de atingir um determinado objetivo. A construção de prédios, por exemplo, necessita do exercício do pensamento calculado; gera quase sempre um produto palpável, de maneira que não se esgota como um fim em si mesmo. Já o segundo é aquele exercido na meditação, no debate consigo mesmo, onde coisas como belo, arte, amor, liberdade podem ser elaboradas e discutidas. É importante ressaltar que o pensamento reflexivo necessita ser praticado, afinal ter a capacidade não significa ter a dominância propriamente.

O gradativo avanço das tecnologias na rotina das pessoas tem significado uma dependência maior destas mesmas. Não é preciso mais sair de casa para trabalhar ou fazer uma graduação; cozinhar e limpar a casa é reduzido ao mínimo de esforço para que se poupe tempo; até as interações interpessoais se tornaram mais simples e rápidas no geral. O que nos oferece uma verdadeira ironia, em razão de que, se cedemos espaço para as tecnologias atuarem por nós a fim de ganharmos mais tempo, é natural pensar que o pensamento reflexivo poderia ser melhor exercitado. Todavia a realidade nos mostra que o tempo se reconverte em mais exercício do pensamento calculado, numa espécie de paradoxo onde tempo que se ganha nunca é aproveitado. É preciso que aulas na internet sejam rápidas para que se possa ver outras tantas; ou então não se assiste a uma entrevista completa no podcast quando há a possibilidade de acessar somente os cortes que interessam. Não parece haver disposição em sentar, escutar e refletir sobre o todo.

Como as pessoas estão cada vez mais habituadas a pensar somente de maneira calculada sempre se espera algum produto desta, uma praxis. Logo, na medida em que o estudo da História não tem esse retorno, afirma-se que não tem nada a oferecer para a sociedade. Pois em vez de nos possibilita ganhar tempo, ela requer o consumo deste. Alega-se que a História não é “útil” na vida das pessoas. E isso vale para as ciências humanas em geral. Quem nunca ouviu alguém dizer que “de que serve história se já passou?” ou mesmo que “Filosofia não serve pra nada… não muda nada na minha vida”. Todas as relações tomam como referência o que é palpável e o que é funcional tal qual as tecnologias oferecem para nós.

Sem falar que o domínio das redes sociais na vida das pessoas exige que sempre se esteja atualizado sobre as últimas novidades seja em qualquer âmbito. Isso nos ajuda a explicar por que as pessoas tiram selfies em museus, com estátuas, em igrejas, e postam logo a seguir sem ao menos querer saber sobre a história por trás de tal obra. Sem ao menos refletir nos detalhes, nos sentimentos de tal arte. Não há tempo para saber a respeito das coisas por que isso significaria perder tempo para tirar outras fotos com outras tantas obras.

É preciso evidenciar que não devemos inibir o crescente avanço das tecnologias – creio que seja impossível também. Todavia cabe usar desta com serenidade, ou seja, com o propósito que tal técnica tenha e sem nos fazer escravos da mesma. Um exemplo: que seja importante registrar um momento com uma igreja, uma foto. Mas que também haja o momento de admiração, de reflexão sobre esta mesma. Exercitar o pensamento reflexivo. Talvez assim a historiografia e o conhecimento que a História oferece poderia ser respeitado maneira que merece e cujo alcance é maximizado pelas tecnologias e não recortado. Os próprios estímulos que as artes e monumentos históricos produzem não são passíveis de um delineamento. Não pretendo afirmar aqui a solução máxima para os problemas levantados por Gumbrecht, porém me parece um caminho melhor pavimentado para o reconhecimento.

 

 

 


REFERÊNCIAS

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de ‘Depois de aprender com a história’, o que fazer com o passado agora?. In. Aprender com a história?: o passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, pp. 25-42 

HEIDEGGER, Martin. Serenidade, 1955. pp 9-27

 

 

 


NOTAS

[1] O que aqui se considera como “progressista” é o conceito de Progresso elaborado, inicialmente, por Kant e depois desenvolvido por Hegel direcionado à história propriamente

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Revista Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588704-nao-existe-ciencia-exata-e-vamos-combinar-que-todas-sao-humanas#

 

 

 

 

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