E quando chove? Quando chove faz igual.
A literatura de Lilian Sais, em O Funeral da Baleia (Patuá, 2021), romance de estreia da escritora, mais do que a poesia de Lilian Sais ou a poesia de Lilian Sais mais do que a literatura de Lilian Sais vem de um grito gutural que vem do abdômen, que vem do soco no estômago. Vem da Grécia. Vem da tragédia. Vem do âmago.
Um dia, li no Facebook dois poemas de Lilian Sais que me impactaram. Vi neles uma potência, um vigor, um rigor que me fez escrever para a poeta e, mais, me fez escrever um poema.
Não escrevi um poema como mote, nem conversa, nem continuação ao que havia lido de Lilian Sais. Escrevi sob impacto.
Os textos que lera de Lilian Sais encerravam-se e se abriam na leitura deles mesmos, sem a necessidade de qualquer palavra adicional, muito menos as minhas, muito menos as palavras de um poema movido, mas escrevi movido, como faço agora:
Poema para Lilian Sais \\ Leio dois poemas contundentes \ de uma poeta \ que não conhecia \ e que \ bro \ uma lâmpada \ no escritório \ entre os dentes \ resíduos do jantar \ pensam: \ ação motora, ação descoordenada \ dentes não sabem de nada \ na língua e nas mãos \ certa verdade áspera \ na língua a leitura \ resíduos porrada.
Não imaginava que a contundência que vi ali, nos dois poemas lidos por acaso, mesmo sabendo que os dados não aboliriam o acaso, seria contundência encontrada em prosa, a contundência semelhante que vejo em O Funeral da Baleia.
Uma diferença em relação à leitura do romance ao que me ocorreu com os poemas é que li o romance juntamente com textos de Sêneca, cartas familiares, em que o tema da morte é o principal.
Li O Funeral da Baleia lendo d’A Tranquilidade da Alma e ouvindo Jorge Mautner, nietzscheniano, por escolha. Fui ornando o que lia com o que ouvia e as relações disso estão aqui.
O Funeral da Baleia é uma escrita vigorosa, contundente, crítica e lírica ao mesmo tempo. A narrativa não é linear. É feita de quadros que se sobrepõem, embora tenha um fio condutor, um enredo e ótimos nós narrativos que se amarram dispostos em “O peso”; “O peso das cinzas”; “A poeira do peso”; “A exatidão do peso”; “O preço do peso”; “A concretude do peso”; “As arestas do peso”; “A rotação do peso”; “A constância do Peso”; entre outros capítulos (ou subcapítulos) mais ou menos curtos.
Dentro de um pássaro trágico, Assum Preto, que nomeia uma fictícia cidade, a homônima Assum Preto, é forjada uma tragédia em uma continuidade descontínua narrativa.
Dentro dos de dentro do que se narra erguem-se tragédias. Três, porque três são as personae da estória. Uma delas não está. Ou, está nas citações, alusões, referências que as outras duas fazem: a mãe morta. Quem está mesmo? As três são partes, partículas, partezinhas, átomos umas das outras.
Excluem-se e se complementam em identidades diferentes, em tensão de convivência, com seus pesos, desenhos e densidades deles. São estilhaços da tragédia mor, que é existir.
Em O Funeral da Baleia existir é para (e pelo) trágico que se dá. As personagens são todas muito sofridas, sem ser piegas, nem dramáticas, mas inegavelmente construídas em tom trágico.
A escrita polifônica de Lilian Sais, em O Funeral da Baleia, ecoa frases como “tradição pouco se questiona”; “o mínimo que se esperaria de uma cidade”; “nesta casa se dorme cedo”; “era a forma miúda”; “é de ficar em casa , para não gastar as roupas”; “nunca soube afiar facas”; “o espírito das regras”; “morrer sem as unhas fazer”; “sentada na cadeira errada”; “vida é assim”; “é a recomendação”; “uma casa com uma panela é de fato uma casa”; ecos de falas sociais em bocas particulares, mais que lugares-comuns, lugares da cultura, do inconsciente coletivo.
Há na escrita de Lilian Sais frases, verdadeiros epifonemas, aforismas, máximas, muito fortes e que surpreendem. Há um uso de um vocabulário pouco usual em certa medida. Como em “ poeira gestante”; “gesta”; “gestante”; “poeira gesta”; em que as relações semânticas não são imediatas.
Não é uma prosa hermética a de Lilian Sais, em seu romance de estreia, nem excessivamente clara, pensando a clareza como uma qualidade horaciana de estilo médio em que Lilian Sais não está.
Não, Lilian Sais não escreve no médio horaciano, porque as matérias de O Funeral da Baleia são graves, são altas, daí o tom trágico. Daí o estilo não excessivamente claro, nem hermético.
Às vezes, percebe-se uma certa irritabilidade nas ações das personagens do romance, que reconheço, por exemplo, em uma ou outra narrativa de Lígia Fagundes Telles quando ela narra que uma personagem brigava com louça na pia, ou seja, tinha que lavar a louça, mas o narrador de Lígia diz que ela brigava com a louça.
Não é diante de um mundo harmônico, confortável, que Lilian Sais nos propõe estar em O Funeral da Baleia.
E, de fato, é o desconfortável do mundo (os hábitos arraigados, as convenções, a tradição) que se narra no livro. O diálogo na funerária para compra do caixão e encomenda da cerimônia fúnebre atesta isso.
Entendo que funerais são protocolares. Entendo que protocolos, hábitos, costumes, tradição são a morte da vida. Isso vale para O Funeral da Baleia e vale para quem ler esse funeral.
O desconforto, as saias justas, os incômodos flertam com o trágico no romance que acabo de ler.
As regras são a morte da vida. O cotidiano, o funeral. No transcorrer dos dias, no dia a dia, as ações, a inação, tudo isso são os funerais.
A narrativa é sobre o protocolar. Não é nada protocolar. Lilian Sais faz desfilar o cortejo dos comentários incômodos, das ações que nos tiranizam, nos oprimem, nos chateiam. Os fazeres comezinhos, a vida ao rés do chão.
O nó nervoso do Funeral da Baleia é o trágico. Foi isso que vi no romance o tempo todo.
E quando chove? Quando chove, faz igual. E chove para tudo ficar mais penoso, mais pesado, mais trágico.
Créditos na imagem: Reprodução: Imagem da capa do livro.
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Eduardo Sinkevisque
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