Ratos de Porão em Mariana e o batismo de um transe performático

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No ano em que comemoram o trigésimo aniversário de lançamento do disco Brasil, um dos álbuns mais aclamados do grupo, o Ratos de Porão marcou presença em Mariana (MG). A banda punk (ou punk hardcore, para quem preferir) se apresentou na Praça dos Ferroviários, na primeira capital de Minas Gerais, no último dia 4 de maio, no UAI Festival. Na ativa desde 1981, os membros do Ratos (agora com a formação João Gordo, Jão, Boka e Juninho) exaltaram performaticamente o princípio norteador do grupo e de uma cultura rock ontológica (representada pelo punk do Ratos de Porão).

Por essa ontologia, podemos compreender a manifestação de um sentimento rebelde ou de uma cultura que vinga, em seu surgimento, como sustentáculo inconteste de uma política sedimentada e opressora, presente sobretudo na figura do Estado. Essa ontologia seria, possivelmente, a grande incompreensão revelada no show de Roger Waters em São Paulo, em 2018, quando o artista do Pink Floyd se apresentou com sua turnê Us + Them e foi vaiado por exibir #EleNão e por mencionar o nome de Jair Bolsonaro em uma lista de líderes neofascistas, como classificou Waters. E essa política sedimentada e opressora, agora neofascista para o musicista, seria, possivelmente, a força motriz da cultura rock, que, ao contrário do que questionaram integrantes do público de Roger, encarrega-se sim de organizar afetos e arregimentar um sentimento político medido pelo impulso de rebeldia ou de um grito mobilizado – para não dizer militante.

Sobre isso, vale lembrar que, ainda durante a apresentação, parte do público abandonou o espetáculo, queixando-se de que havia ido assistir a um show de rock, não uma manifestação política ou partidária. Talvez tenha faltado a esses indivíduos, arriscamos a dizer, o batismo do rock, a chave que dá acesso a um transe performático para a escuta e o gesto interpretante/performático desse rock “antiesvaziamento” ou “antissufocamento político”. O show do Ratos de Porão foi a ocasião exata para quem ousaria se abrir a esse batismo pró-experiencial do rock, de um modo geral, em suas muitas cenas culturais, musicais e modalidades de gênero.

É fato que essa performance pode, por vezes, ser confundida com o jogo da agitação, do headbanging (o bate-cabelo), do vocal gritado do punk, do gesto visceral e irascível, do transe ao subir ao palco e dele se jogar (o stage diving, comum de fãs em apresentações ao vivo do Ratos). Até mesmo o palco seria o espaço responsável para esse batismo; ao sair dele, todos estariam supostamente dotados de uma sensibilidade exigida pelo rock. Entretanto, essa é apenas a ilusão de uma transformação por categorias componentes do gesto irascível, o que não dá a ver o real sentido que buscamos aqui: atingir, por esse batismo de um transe performático (que não se resume ao que destacamos acima), o próprio gesto irascível – no qual se compreende esse transe performático.

Para deixarmos essa explanação mais palatável, podemos recorrer a um caso do show. Em determinado momento da apresentação em Mariana, o vocalista do Ratos, João Gordo, lançou uma provocação que nos convida exatamente a entender esse batismo: “Quem está vendo um show do Ratos pela primeira vez levante a mão”. Surpreso com a quantidade de pessoas que se manifestaram, tornou: “quanto cabaço, hein?!”. O show era gratuito e nem todos eram fãs ou conheciam a banda. Na apresentação, foram tocadas músicas dos anos 1980, que, segundo Gordo, fazem mais sentido hoje do que há trinta anos. Entre cada canção, os músicos e o público entoavam, em coro: “Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”. Surge, em meio a isso, um elemento interessante para tensionarmos esses afetos regidos pela cultura rock – do punk rock ao indie, do heavy metal ao grunge, passando por inúmeras modulações – enquanto mobilização e resistência.

Se tomarmos por uma etnografia da Praça dos Ferroviários (o local do show) a ideia de que se trata de um espaço versátil ou eclético, que abriga, nas noites marianenses e nos feriados, variados eventos musicais e culinários, feiras e exibições cinematográficas, e que, durante os dias comuns, é povoado por meninos velozes em suas bicicletas, garotos de skate, adeptos de um baseado, cachorros sem dono, beatas famintas da Igreja Católica, entre tantos outros, tão logo teremos a percepção de que esse ethos é certamente a pluralidade de Mariana em dégradé; de uma cidade que não se pauta pelo título de “interior mineiro” (também muito distante politicamente do Texas brasileiro, o interior paulista) e foge da sensação de cidade grande que nos atropela (seja capital provinciana, como Belo Horizonte, seja capital atribulada e tirânica, como São Paulo ou Brasília, cada qual a seu modo). No entorno da Praça dos Ferroviários, é possível ouvir, no mesmo prosaico quase sacralizado, casas com moradores a cantarem o Falamansa “rindo à toa”, o MC WM fazendo “fuleragem”, os tocantinenses Henrique & Juliano andando pela “rua recaída”, entre tantos outros mixes de cenas musicais. Esse ethos ferroviário é, ao mesmo tempo, a beleza sem fim de um entre muitos cotidianos mineiros, nostálgico à la Banda Djavú ou Clube da Esquina. Não fosse o bastante, a primeira capital das Minas Gerais escolheu, em 2018, Fernando Haddad para seu presidente, com 62,59% dos votos válidos no segundo turno, mantendo uma tradição de preferência pelo Partido dos Trabalhadores (PT) desde, pelo menos, a ascensão da Era Lula, em 2002.

Sob essas condições, a Praça dos Ferroviários e a própria Mariana se tornam lugares propícios para o que Beatriz Sarlo nos faz chamar aqui de “transe performático” garantido no ao vivo de um show da música rock (aqui, na veia punk hardcore), à medida que assimilamos o rock como um programa militante de potencial subversivo. Não à toa, João Gordo lançou outra provocação, alcunhando ironicamente o público de “comunista” – termo que nos faz recorrer ao “espírito de contestação” dito por Sarlo (1997):

 

O rock foi mais que uma música; moveu-se desde o início com o impulso de uma contracultura que se espalhou pela vida cotidiana. O rock se identificou de modo extramusical: sustentada pela música, a cultura rock definiu os limites de um território onde houve mobilização, resistência e experimentação. A droga, que tinha sido um hábito privado de burgueses curiosos, poetas decadentes, dândis e exploradores da subjetividade, foi parte da cultura do rock e, no interior dela, adquiriu um caráter de reivindicação pública e de fronteira transitável. Até hoje, no imaginário coletivo, ela é associada aos jovens de um modo moralista e persecutório. O rock foi um desafio juvenil […] e não se equivocaram aqueles que assinalavam seu potencial subversivo fundado na emergência de ideologias libertárias. A rebeldia do rock anuncia um espírito de contestação que não pode ser separado da onda juvenil que entra no cenário político em finais dos anos sessenta. Podiam não ser os mesmos protagonistas, mas ainda que fossem diferentes, ainda que nem se conhecessem, eram parte de um clima cultural. (SARLO, 1997, p. 34-35)

 

Assim, parece-nos mais evidente levar em conta que, sob as figuras “organizadoras” dos membros do Ratos, marcados na persecutória temporalidade dos anos 1980 e convocadores da irascibilidade de que falamos, passam a ser regidas sociabilidades de um público heterogêneo, em Mariana, que se batiza pró-experienciação (do punk e de seu esteio na hegemonia do rock) pelo trânsito de uma afetividade nada dócil sentida pela máxima “Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”. Como interpretar essa sentença senão pela chave de Sarlo (1997), da mobilização engajada que vinga não pela redenção, mas pelo levante, e abre caminhos para uma sociabilidade minimamente outsider (mas com este inserido forçosamente pelo e no “sistema”), que se introjeta nos indivíduos pelo desejo de combate a um Estado, mercado ou ideologia de cunho opressor?

Essa assertiva está também nas letras do Ratos de Porão. Em Crucificados Pelo Sistema, canção executada no show e pertencente ao álbum homônimo de 1984, responsável por um dos momentos de frenesi da apresentação, encontramos: “Nascer para liberdade / E crescer para morrer / Crucificados pelo sistema / Morrer sem esquecer / O povo que ficou”. De volta ao álbum Brasil, que tem embalado os concertos recentes da banda paulista, na canção Aids, Pop, Repressão, deparamo-nos com o seguinte manifesto: “Sexo, drogas, rock n’ roll / Quem está nascendo agora isso não vai conhecer / Temos que nos proteger / Os prazeres dessa vida já viraram maldição / Aids, Pop, Repressão / O que é que eu fiz para merecer isso? / O rock brasileiro é uma farsa comercial / O sexo é apenas uma forma de morrer / As drogas representam um caso policial / Aquela antiga frase não dá mais para falar”. Presente nessas composições e encenado no transe performático identificado no show, o gesto irascível está na não monopolização do rock pelo maniqueísmo mainstream – como pensar “o que é bom e ruim aos ouvidos”; e seria bom pelo valor estético, não político, como se ambos devessem, via de regra, estar apartados (a crítica feita a Roger Waters). A pintura musical da cultura rock, do ponto de vista político, apresenta seu teor e sua qualidade estética compreendidos entre esse mesmo político e as subversões que se fazem dele. Das viagens abstratas da piscodelia de Pink Floyd (ou de Waters, mais precisamente) às vozes hematológicas e composições/arranjos musicais carregados de distúrbio do Ratos de Porão, o transe está carimbado e ritualizado por nuanças políticas e contratos de jogo e experienciação mais ou menos desvelados, mais ou menos explícitos.

Nessa mesma esteira, o transe performático é a irascibilidade, a subversão daquilo que se autointitula imaculado perante a sujeira rock e dela se proíbe embeber. Na contramão, a ausência desse embevecimento se arremessa defronte as vanguardas históricas (políticas e estéticas) do rock como seu pior inimigo (antes mesmo do pop[1]), posto nas trincheiras da subversão como frango para o abate. E é disso, em meio a outras reivindicações, que se trata a temida subversão: destruir o puritanismo caiado e flagelante de uma cultura sedimentada que é dada à repressão, ao controle e ao moralismo para, por fim, atingir o prazer pela liberdade como ideal e não como commodity do neoliberalismo.

Assim, a música rock revela convenções de consumo e fruição muito peculiares quando pensamos as mobilizações políticas articuladas em torno de uma expressão artística como a obra e performance do grupo Ratos de Porão. São convenções elaboradas na manifestação do transe em uma união entre punks de hoje e de ontem (jovens de 20 anos e também jovens de 50 anos, presentes no show). Ou elaboradas, também, numa plateia mais expansiva que isso, composta por: casais de idosos que dançavam fora do tom, mas internalizavam a música em seus corpos de maneira sui generis e também legítima; metaleiros; universitários indie de classe média; moradores das regiões periféricas de Mariana; ávidos consumidores de cerveja artesanal; vendedores de cachorro-quente, crepe e espetinho de carne; carrinhos de churros; meninas de macacão e babador; e garotinhos de tênis com luzes que piscam.

Mecanismos de escuta e performance do punk num show ao vivo extrapolam compreensões do próprio gênero e movimento. As dinâmicas evocadas nos espetáculos exibem uma lógica de conversação conceitual entre a conjuntura interfacial ou sensível do espaço em que se executam as músicas e se performam as regras e liberdades do punk. Aliada a isso está, na figura do espaço, a formação de um caldo cultural na cidade de Mariana, na Praça dos Ferroviários. E a contar com uma manifestação engendrada por preceitos desse transe performático do punk, posto que residem, nesta performance: as convocações, chancelas e realizações do transe; uma sessão de batismo que conduz a linha fina entre a abertura ou receptividade ao gesto irascível do punk rock; e a própria cultura do rock perante o espaço em que se manifesta e a legibilidade social, histórica e política que essa manifestação mobilizada faz revelar.

 

 

 


NOTAS

[1] Para Sarlo (1997), o pop pode ser compreendido como o irmão mais novo do rock (a ovelha-negra da família). A despeito das discussões sobre representação, representatividade e “aprofundamento político” no pop, este saqueia – atesta a autora – seu irmão mais velho, agora convertido em estilo pelos “traidores do movimento”: “o rock cumpriu um de seus destinos possíveis: deixou de ser um programa para transformar-se num estilo. A expansão tardia do rock na cultura juvenil menos rebelde acompanha a reciclagem de mitos românticos, satânicos, excêntricos. Como estilo, o mercado recorre a ele, saqueia seus pais fundadores, subtrai o que neles havia de música pop. […]. Irmãos e inimigos, o rock e o pop marcharam por caminhos cruzados, inclusive nos momentos de maior qualidade estética. Por isso, hoje, tudo pode ser remetido ao rock, na medida em que este se tornou um filão da cultura moderna, e com o desaparecimento de seus aspectos subversivos após a morte de seus heróis ou na emergência de discursos mais piedosos (ecologistas, naturistas, espiritualistas, new age) adotados pelos remanescentes” (SARLO, 1997, p. 35; grifos no original).

 

 

 


Créditos na imagem: A banda Ratos de Porão durante uma de suas apresentações. (Foto: Reprodução/Instagram – Ratos de Porão Oficial).

 

 

 


REFERÊNCIAS

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Tradução de Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

William David Vieira

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto e Bacharel em Jornalismo pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa "Quintais: cultura da mídia, arte e política" (UFOP/CNPq). Suas pesquisas contemplam os seguintes temas: mídia e música, cultura pop, videoclipe, performance, experiência estética e melancolia.

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